Segundo Roque, o caminho é abandonar a “percepção de guerra contra esse inimigo difuso que acaba sempre sendo incorporado pelo menino pobre da favela”
Paula Bianchi, do UOL, no Rio
A morte do médico cardiologista Jaime Gold, esfaqueado por ladrões em um assalto na Lagoa Rodrigo de Freitas, na zona sul do Rio de Janeiro, e os recentes casos de assaltos com facas tanto no centro quanto na zona sul do Rio de Janeiro, trouxeram à tona o debate em torno de uma suposta onda de violência na cidade, que desencadeou até a aprovação de uma medida proibindo o porte de instrumentos pontiagudos no Estado.
Além disso, algumas UPPs (Unidades de Polícia Pacificadora) -projeto que completa sete anos em 2015- têm sido constantemente atacadas por criminosos que buscam a retomada de territórios hoje ocupados pela polícia, ampliando a sensação de insegurança vivida pelos moradores da capital fluminense.
UOL – Podemos falar em uma onda de violência no Rio de Janeiro?
Atila Roque – Não há uma onda de violência. O que nós temos, não apenas no Rio, mas no país, é uma normatização de uma violência muito seletiva. Devemos evitar nos deixar levar pelos surtos de indignação que um ou outro fato destacado pela mídia provocam. O risco disso é buscar correndo um culpado. E historicamente no Brasil os culpados são sempre os pobres, os negros, os jovens. Há um certo tipo de perfil social que acolhe os preconceitos que a sociedade produz. O que não significa que nós não tenhamos um problema grave de violência e, especialmente, de violência letal. O Brasil mata, por ano, cerca de 50 mil pessoas. Em 2012, foram 56 mil homicídios. Desses, 30 mil são jovens e 77%, negros.
Seria então uma questão de uma percepção maior da violência do que necessariamente um aumento?
O debate sobre segurança pública e violência no Brasil sempre foi muito marcado por uma concepção que trata a segurança mais como um mecanismo de controle social do que um direito. É como se a cidade tivesse territórios diferenciados e cidadãos de primeira e segunda classe. Quando essa violência eventualmente atinge uma pessoa dos territórios reconhecidos como Estado pleno, se dá o espanto. O que não quer dizer que não seja legítimo. Qualquer morte merece ser lamentada, não importa a classe social, onde isso aconteça, ou não deveria importar. Na prática, importa muito. A morte do médico na Lagoa gerou uma comoção justificada, mas, mais uma vez, tratada de forma seletiva. Enquanto a sistemática de mortes e execuções que atinge regularmente uma parte grande da juventude carioca e do Brasil, com algumas exceções, passa desapercebida. A violência precisa ser tratada em uma sua integralidade.
Vivemos em uma cidade violenta…
Vivemos em um país violento. Se você olhar a série histórica de ocorrências no Rio de Janeiro nos últimos dez anos, há uma redução no número total de homicídios. Do ponto de vista da letalidade, a cidade melhorou. Porém o número de mortes continua muito alto. Uma situação especifica do Rio é que a cidade convive com uma força de segurança, uma polícia, que mata muito. Por um lado, há algum esforço das instituições de enfrentar esse problema e, por outro, temos acesso à informação.
Sabemos muito pouco sobre a dinâmica dos homicídios no Brasil por uma carência de dados. Podemos falar do Rio de Janeiro porque o Rio, comparado com o restante do país, é um dos Estados mais transparentes, se não o mais transparente, e é preciso levar isso em conta. Como abordar a questão da segurança na sua integralidade talvez seja um dos principais desafios enfrentados hoje no Rio e no Brasil.
Segurança pública não é uma questão só de polícia, mas de Estado, e diz respeito a toda a sociedade. É preciso questionar se esse é de fato o padrão de sociabilidade que queremos alimentar. Queremos seguir reproduzindo uma dinâmica de exclusão social e de direitos constante?
E como se muda esse padrão?
O primeiro passo é mudar o foco. Sair de uma percepção de guerra contra esse inimigo difuso que acaba sempre sendo incorporado pelo menino pobre da favela por uma perspectiva da preservação e garantia da vida de todas as pessoas. O modelo de guerra ao tráfico, guerra às drogas, está fadado ao fracasso. Hoje, toda a lógica da política de segurança brasileira, e em particular do Rio, segue uma estratégia de ocupação e enfrentamento que, no final das contas, resulta em um quadro de violência letal. Uma segunda questão é garantir um controle externo e uma transparência o mais radical possível da atuação da polícia.
A polícia está preparada para lidar com esse quadro de violência?
O policial não tem formação adequada nem uma remuneração equivalente à responsabilidade da sua função. Não é reconhecido como um profissional de valor, tão importante quanto um médico ou um professor. Com frequência, policiais que se envolveram em eventos que resultaram em mortes no dia seguinte estão na rua, trabalhando muitas vezes com a mesma arma.
Quando o ato de matar não é banal, tem um impacto naquela pessoa. O policial deveria estar ancorado em todo um sistema de apoio, inclusive psicológico, que permita que ele exerça a responsabilidade do monopólio de uso da força da melhor forma possível. E toda vez que ocorra violência por parte do Estado, a investigação não pode deixar nenhuma dúvida de que o uso da força foi legítimo.
E qual é o papel das UPPs (Unidades de Polícia Pacificadora) nesse processo?
A UPP foi uma emenda em um soneto já torto. Qualquer medida que não leve em consideração uma reforma mais ampla da polícia como um todo vai, a partir de certo ponto, esbarrar em algum limite. A preocupação do não enfrentamento, da polícia de proximidade, são elementos positivos e trouxeram impactos, ao menos em um primeiro momento. Mas a ocupação não é uma política de segurança. Não podemos pensar que teremos um território ocupado por um grande contingente de policiais para sempre. Se isso não vier acompanhado de uma política de fato, vamos repetir esse ciclo de espasmos, ondas de violência, reações baseadas em estereótipos. A segurança pública da favela não diz respeito só à favela, mas à cidade inteira.
Recentemente, voltamos a ter casos de guerra de facções, como o que ocorreu no Morro da Coroa, no centro da cidade, em que ao menos dez pessoas morreram. Há um recrudescimento da ação do tráfico na cidade?
O Rio tem uma dinâmica muito particular. O crime se organizou, muitas vezes com a cumplicidade da polícia, em grupos específicos com vários graus de complexidade. Alguns atravessam territórios, presídios, têm ramificações na polícia. Isso exige enfrentamento, que se quebre as cadeias de comando e alimentação desses sistemas, que certamente não estão nas favelas nem nas prisões. Estão fora. Provavelmente na Viera Souto, no Leblon, em São Paulo, no sistema financeiro.
As facções são só a ponta armada e mais pobre do sistema. Outro ponto é o debate da política de drogas. Precisamos, como sociedade, debater alternativas. Não sei se a legalização plena, mas a lógica da guerra e da criminalização já mostrou que não dá conta como resposta a uma questão cultural, presente na história da humanidade desde sempre, que é o uso de substancias que alteram a percepção.
E como você vê a proposta de redução da maioridade penal?
A redução não faz o menor sentido como política de segurança e estratégia de redução de violência. É um reconhecimento, quase uma celebração, da falência do Brasil em lidar com a sua juventude. O que nós precisamos é a aplicação, de fato, do ECA (Estatuto da Criança e Adolescente). O sistema socioeducativo hoje acaba reproduzindo o sistema prisional. A parcela de adolescentes entre 16 e 18 anos que participam de crimes de violência é muito baixa, menos de 1%. Enquanto a representação dessa faixa etária no conjunto de jovens mortos é muito alta. Eles precisam de proteção, o que não significa que os jovens pegos em atos ilegais não devam ser punidos nem responsabilizados diante da Justiça.
Na semana passada, a Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro aprovou uma lei proibindo o porte de facas na cidade…
Isso é focar no detalhe. Um detalhe importante para quem recebe uma facada, claro. Não podemos minimizar o anseio por segurança. Nenhum de nós deve estar sujeito a esse tipo de violência. Mas isso não deve ser pretexto para tomar medidas que vão aprofundar a supressão de direitos.
Em julho completam dois anos do desaparecimento do ajudante de pedreiro Amarildo de Souza na Rocinha. Podemos dizer que de lá para cá a política de segurança no Estado evoluiu?
Infelizmente evoluímos pouco. O caso Amarildo e o resultado dele são um ponto fora da curva. Conseguimos avançar com relação a identificação dos culpados, mas ele não trouxe mudanças estruturais. É preciso refletir no que o Estado foi capaz de avançar em trazer mecanismos de controle, transparência e Justiça em relação a situações que envolvem violência e crimes por parte de agentes do Estado. Deixar claro que isso não irá se repetir.
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Imagem: Roque defende há “surtos de indignação seletiva” com determinados casos (AF Rodrigues /Anistia Internacional)