Moeda é usada para comprar produtos dos extrativistas ou fazer compras no comércio da região
Por Nana Brasil, no ICMBio
Brasília (19/05/2015) – Já imaginou poder ir ao mercado, à farmácia, ao posto de gasolina, ao salão de beleza e até mesmo pagar contas de água e luz sem precisar de um real sequer? E não se trata aqui de cheque ou cartão de crédito, mas de outra moeda: o moex, que circula no município de Canavieiras, sul da Bahia, e vem transformando a realidade do lugar. O nome escolhido remete à Reserva Extrativista (Resex) de Canavieiras, Unidade de Conservação (UC) cuja comunidade foi responsável por sua implementação.
Essa moeda social, como é definida, consiste em um mecanismo local para facilitar a troca entre produtores e consumidores, representando uma inovação na organização comunitária. “A moeda social ajuda a internalizar a renda no próprio município, impulsionando o seu desenvolvimento e evitando a evasão de recursos”, explica o professor da Universidade Federal de Alagoas (Ufal), Leonardo Leal, que acompanha a criação de moedas sociais e bancos comunitários em todo o Brasil.
Com o moex, todos saem ganhando
A política de crédito do banco comunitário de Canavieiras, batizado de Bamex, é voltada para a população extrativista e oferece duas modalidades: o empréstimo em moex, que não acarreta juros e é utilizado sobretudo para consumo (alimentos, remédios, material escolar, etc), e o empréstimo em real, com juros simbólicos (entre 1% e 2%), geralmente aplicado em bens de produção e materiais de trabalho, uma vez que os fornecedores desse tipo de produto ainda estão começando a aceitar o moex como forma de pagamento.
Dentre as atividades desenvolvidas pela população da Reserva, destacam-se a mariscagem (aratu, ostra, sururu e camarão), a coleta de caranguejo, a pesca artesanal, a agricultura familiar e o extrativismo terrestre (cipó e frutas). “Antes, os extrativistas recorriam aos empréstimos convencionais ou até mesmo a agiotas para cobrir suas despesas e acabavam mergulhando em dívidas. Com a criação do Bamex, a situação da comunidade melhorou bastante”, argumenta Ernesto Monteiro, membro do Conselho Deliberativo da Resex.
Moradora da UC e integrante da Associação Mãe da Reserva Extrativista de Canavieiras (Amex), a marisqueira Maria da Conceição Cardoso, mais conhecida como Maria do Camarão, lembra que foi a primeira cliente do banco comunitário. Nesse pioneirismo, ela precisou contornar a desconfiança inicial dos comerciantes. “No começo, os vendedores estranhavam quando eu chegava com moex, duvidavam que fosse dinheiro de verdade”, diverte-se. Para Maria do Camarão, a moeda social tem grande importância para a comunidade extrativista. “Antes eu tomava empréstimos convencionais e acabava acumulando dívidas que duravam anos. Agora é diferente, pois nós temos o nosso próprio banco”, comemora.
Os comerciantes de Canavieiras também têm sido beneficiados pela moeda social. Hoje, a maioria dos estabelecimentos já aceita essa modalidade de pagamento, alguns chegando a oferecer descontos para os clientes que comprarem com moex. A ideia é que os empresários façam a moeda circular, podendo utilizá-la para pagar funcionários, adquirir produtos dos extrativistas ou fazer compras no comércio da cidade. Mas, caso tenham necessidade, eles podem ir até o Bamex e trocar o moex por real.
Proprietária da Copiadora Lima, que comercializa material escolar, itens de papelaria e artesanato, Eline Almeida conta que aderiu à moeda social desde o início: “Na época, a Amex procurou os comerciantes para explicar como funcionaria o banco comunitário e eu achei uma ótima ideia, pois fortalece a nossa economia”. A empresária diz ainda que costuma utilizar os moex que recebe para fazer mercado ou adquirir produtos em outras lojas do município.
História: da proibição ao reconhecimento
Segundo o professor Leonardo Leal, a primeira experiência dessa natureza no país teve início 18 anos atrás, no Conjunto Palmeiras, bairro periférico de Fortaleza. Embora seja hoje reconhecida até internacionalmente, a iniciativa não foi compreendida desde o começo. “O banco comunitário foi denunciado pela prefeitura de Fortaleza ao Banco Central, que divulgou uma nota técnica proibindo a emissão de moeda no Conjunto Palmeiras”, conta Leal.
No entanto, o governo federal foi aos poucos assimilando a importância social desses projetos. Em 2008, foi criada a Rede Brasileira de Bancos Comunitários – responsável pelas articulações políticas e definições metodológicas – e, em 2012, o Banco Central finalmente emitiu uma nota reconhecendo os bancos comunitários e moedas sociais. Hoje, já existem no Brasil 110 empreendimentos com esse caráter, contando com o apoio do Banco Central e do Ministério do Trabalho e Emprego (MTE).
Nesse contexto de fortalecimento e ampliação das iniciativas, o banco comunitário de Canavieiras foi viabilizado através do edital lançado em 2012 pela Secretaria Nacional de Economia Solidária (Senaes) do MTE. Na época, Leonardo Leal atuava na incubadora tecnológica de economia solidária da Universidade Federal da Bahia (Ufba), cuja equipe se uniu à Amex para implementar o projeto.
A parceria foi frutífera: enquanto o pessoal da Ufba promovia os treinamentos, oficinas e capacitações, a Amex entrava com a estrutura física do banco – sala, equipamentos, etc. Após vários meses de preparação, o Bamex começou a operar em dezembro de 2013.
Para dar início às atividades, foi criada uma conta na Caixa Econômica Federal. “A moeda social tem lastro em real. Isso significa que para cada moex emitido existe um real correspondente nessa conta”, esclarece Leal.
De acordo com o professor, os próprios comunitários definiram desde a política de crédito a ser adotada até as imagens impressas nas cédulas de moex, que remetem a elementos da cultura local, como a mariscagem e a pesca artesanal. Segundo ele, embora recente e em processo de amadurecimento, a experiência de Canavieiras já conta com uma adesão significativa dos consumidores e comerciantes, gerando resultados positivos para a economia da cidade.
Próximos passos
Embora o público-alvo da sua política de crédito seja a população extrativista, o Bamex também atende qualquer morador ou turista que queira simplesmente trocar reais pela moeda social. Outros serviços já estão sendo negociados com a Caixa Econômica Federal e poderão igualmente ser utilizados por qualquer cidadão, como o pagamento de contas de água e luz e o recebimento do Bolsa Família em moex.
Para Leal, o sucesso da iniciativa capitaneada pela Reserva Extrativista de Canavieiras indica que esse caminho pode ser replicado em outras Unidades de Conservação da mesma categoria. “As Reservas Extrativistas têm um grande potencial de organização social e isso é imprescindível para a criação de um banco comunitário”, conclui o professor.
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Destaque: Marisqueira na Resex de Canavieiras, Bahia. Foto ICMBio
Enviada para Combate Racismo Ambiental por Ruben Siqueira.