“A Vila Autódromo desfruta de uma relativa segurança jurídica da posse”, afirma a advogada
Patricia Fachin – IHU On-Line
Há um “nó” na situação jurídica da Vila Autódromo, diz Clarissa Pires Naback, ao analisar as remoções que estão sendo feitas na região desde a década de 1990. De acordo com ela, a área onde está situada a Vila é, segundo a Lei Complementar nº 74 de 2005, uma área “destinada para moradia social”.
Na entrevista a seguir, concedida por e-mail à IHU On-Line, Clarissa explica que nos anos 1990 a abertura de um processo de regularização fundiária “culminou com a outorga de títulos de concessão real de uso. Além disso, em 2011, a sentença da Ação Civil Pública que o Município movera em 1993 contra a ocupação do terreno foi parcialmente favorável à comunidade, determinando apenas o reassentamento das casas que se localizavam na Faixa Marginal de Proteção Ambiental. Vemos, então, um panorama jurídico favorável à permanência da Vila Autódromo, ou seja, o reconhecimento legal do direito à moradia a ser exercido naquele território, ocupado há mais de 40 anos”.
Clarissa informa que, embora juridicamente a ocupação da Vila Autódromo esteja assegurada, desde março deste ano a Prefeitura do Rio de Janeiro “publicou diversos decretos de desapropriação contra algumas residências na comunidade, alegando, de forma generalizada, interesse público. Ela até agora não demonstrou oficialmente qual é o projeto público para a área, nem fundamentou a necessidade da desapropriação das casas”.
Autora da dissertação de mestrado “Remoções biopolíticas: o habitar e a resistência da Vila Autódromo”, em que analisou o processo de remoção dos moradores da região movido pela Prefeitura, Clarissa assegura que “o processo de remoção da Vila Autódromo ocorre ao largo de processos judiciais ou de garantias legais”. Ela enfatiza ainda que atualmente “não existe na esfera municipal nenhuma política de moradia social que leve em consideração o espaço da favela como cidade”, e apesar de o prefeito Eduardo Paes anunciar que somente serão removidas as pessoas que quiserem sair da Vila Autódromo, não há “previsão de nenhuma política urbana para a Vila. Ao contrário, o que se assiste é a degradação da comunidade”, pontua.
Clarissa Pires Naback é graduada e mestre em Direito pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro – PUC-Rio. Confira a entrevista.
IHU On-Line – Qual é a atual situação dos moradores da Vila Autódromo, no Rio de Janeiro?
Clarissa Pires Naback – Em termos jurídicos há um nó na situação. A área onde se situa a Vila Autódromo é uma Área de Especial Interesse Social (Lei Complementar nº 74 de 2005), destinada para moradia social. Houve, na década de 1990, a abertura de um processo de regularização fundiária que culminou com a outorga de títulos de concessão real de uso. Além disso, em 2011, a sentença da Ação Civil Pública que o Município movera em 1993 contra a ocupação do terreno foi parcialmente favorável à comunidade, determinando apenas o reassentamento das casas que se localizavam na Faixa Marginal de Proteção Ambiental. Vemos, então, um panorama jurídico favorável à permanência da Vila Autódromo, ou seja, o reconhecimento legal do direito à moradia a ser exercido naquele território, ocupado há mais de 40 anos.
Nesse sentido, a Vila Autódromo desfruta de uma relativa segurança jurídica da posse. No entanto, recentemente, em março deste ano, a Prefeitura publicou diversos decretos de desapropriação contra algumas residências na comunidade, alegando, de forma generalizada, interesse público. Ela até agora não demonstrou oficialmente qual é o projeto público para a área, nem fundamentou a necessidade da desapropriação das casas. É impossível “adivinhar” o que o Município quer fazer no local. Por isso, podemos concluir que não há transparência nas ações da atual Prefeitura do Rio.
Outro problema jurídico dessas desapropriações, que também é um problema republicano, é que elas atingem uma área destinada à moradia por lei complementar, ou seja, é um ato do Executivo desconsiderando um ato do Legislativo. E vale lembrar também que a construção do Parque Olímpico ocorre dentro da área do antigo Autódromo de Jacarepaguá, não abrangendo a área ocupada pela comunidade. A Vila Autódromo não está dentro do perímetro designado para o complexo esportivo e não atrapalha a realização das Olimpíadas. A propósito, o projeto vencedor do concurso internacional promovido pela IAB para o Plano Geral do Parque Olímpico previu a permanência da Vila Autódromo como legado social das Olimpíadas. Para os moradores, a situação é a pior possível. O processo de remoção da Vila Autódromo ocorre ao largo de processos judiciais ou de garantias legais.
Se pararmos para pensar, desde o anúncio da remoção da comunidade por Eduardo Paes, em 2009, a Prefeitura levou seis anos para decretar algumas desapropriações individuais, que têm efeitos sobre toda a comunidade. Ela recorreu a outros mecanismos, que eu chamo de “subterrâneos” na dissertação intitulada “Remoções biopolíticas: o habitar e a resistência da Vila Autódromo”, em que analisei esse processo. Desde 2012, funcionários da Prefeitura visitam a Vila Autódromo, insistindo e constrangendo os moradores a aceitarem a oferta do Município. A Secretaria Municipal de Habitação chegou a anunciar na comunidade a construção de um conjunto habitacional do programa Minha Casa, Minha Vida, que eles denominaram de Residencial Parque Carioca, o que faz lembrar os condomínios residenciais do entorno. Durante a pesquisa que fiz, moradores relataram que funcionários visitavam ou ligavam várias vezes para as suas casas a fim de convencê-los a se mudarem dali, dizendo que a oferta da Prefeitura era boa e não adiantava resistir porque a comunidade seria removida.
Ou seja: são inúmeras ações “subterrâneas”, moleculares, nas quais a Prefeitura constrange, ameaça e pressiona individualmente cada família a sair da Vila Autódromo, para levar a cabo a remoção de toda a comunidade. Hoje se chega ali e se vê inúmeras casas descaracterizadas, outras com os restos dos entulhos, vergalhões expostos, etc. Muitas vezes sem qualquer cuidado, as demolições das casas atingem canos de água e fiação elétrica, deixando os moradores sem água ou luz. A paisagem fica cada vez mais “feia” e a moradia mais precária. E atingindo o que eu chamo de habitar (LEFEBVRE), isto é, toda a produção de espaço e a organização da vida urbana ali — para além da construção casa — é que a Prefeitura vem conseguindo remover boa parte da Vila Autódromo. É por isso que considero essa remoção como uma remoção biopolítica (FOUCAULT), porque não vem sendo efetuada a partir de uma decisão de cima, mas por práticas que sufocam e desestruturam as condições de moradia local, constrangendo os próprios moradores a decidirem sair do local.
IHU On-Line – Pode nos dar um panorama de onde está localizada a Vila Autódromo, no Rio, e de como ela surgiu?
Clarissa Pires Naback – A Vila Autódromo se localiza ao norte da Barra da Tijuca, à margem da Península de Itapeba. Ela é oriunda de uma comunidade de pescadores que já existia desde a década de 1960. Com a construção do Autódromo Nelson Piquet, essa ocupação foi “empurrada” para uma faixa estreita de terra entre o autódromo e a Lagoa de Jacarepaguá. Claro que com o tempo a Vila Autódromo cresceu, mas continuou ocupando uma pequena área, com aproximadamente 356 domicílios (segundo o censo de 2010). Nela, passaram a morar operários, trabalhadores de condomínios residenciais próximos, famílias que foram removidas de outras comunidades, etc.
Mas a Vila Autódromo já existia antes de a Barra da Tijuca se tornar o que ela é hoje. O projeto de urbanização do bairro só começa na década de 1970, com o Plano de Lúcio Costa. Por conta da especulação imobiliária de grandes proprietários de terra e do interesse de construtoras, a urbanização acabou “fugindo” de certos parâmetros do Plano, se tornando cada vez menos “planejada” pelos termos do urbanismo moderno. Hoje a Barra da Tijuca é caracterizada por grandes condomínios residenciais, shoppings centers e largas avenidas de trânsito rápido.
Mas a região ao norte da Barra da Tijuca, onde a comunidade se encontra, teve uma urbanização mais intensa somente a partir de 2000, com a realização de grandes eventos, a começar pelo Pan-Americano de 2007. Na época, se tentou remover a Vila Autódromo em razão do complexo esportivo que estava sendo construído em boa parte do terreno do Autódromo, mas Cesar Maia abandonou a ideia, alegando falta de verba. Agora, com a destruição total do Autódromo para a construção do Parque Olímpico, que depois das Olimpíadas dará lugar a um condomínio residencial, a pressão sobre os moradores aumentou. Esse condomínio será construído pelo consórcio Rio Mais, que obteve a licitação de construção do Parque Olímpico. Ele adquiriu uma promessa de compra e venda de boa parte daquele terreno, como uma contrapartida da licitação. Isso indica que o interesse em remover a Vila Autódromo não se vincula ao evento dos jogos olímpicos, mas a um projeto de especulação imobiliária da área.
IHU On-Line – Por que a prefeitura diz que a ocupação da área da Vila Autódromo é irregular?
Clarissa Pires Naback – Na verdade ela nem chama aquilo de ocupação, mas de invasão. É na verdade uma tática retórica, porque, se formos olhar a origem da ocupação da Barra da Tijuca, ou mesmo nos registros de propriedades, encontraremos inúmeras irregularidades ou até casos de grilagem. Dizer que os moradores são invasores édesqualificar e discriminar aquela ocupação, que ocorre há anos. Nos termos de “invasão”, a concessão real de uso seria uma leniência do Estado a ocuparem um terreno estatal. No entanto, pelo menos em toda a década de 1990, havia o interesse do Estado do Rio de Janeiro em regularizar aquela ocupação, que nada mais é que uma política de moradia popular e o reconhecimento do direito daquelas pessoas de permanecerem naquele espaço que habitam há anos.
A atual Prefeitura não considera ou reconhece esses títulos como parte de uma política de moradia social. Se o Estado, em uma época, teve o interesse em desapropriar parte daquele terreno para construir o Autódromo e agora tem o interesse em entregar parte desse terreno ao Município, que entregará depois à iniciativa privada, que construirá um condomínio para famílias de alta renda, por que não podemos pensar ali como uma área destinada por lei para a moradia popular? Por que não podemos pensar em uma política habitacional que considere o habitar, isto é, a história daquelas pessoas que há anos moram, trabalham e constroem aquele espaço? Não existe hoje na esfera municipal nenhuma política de moradia social que leve em consideração o espaço da favela como cidade.
O programa Morar Carioca, que foi anunciado como legado social da Copa e das Olimpíadas, estipulou muitas vezes instalações e intervenções urbanísticas discrepantes com a morfologia da favela e com as necessidades locais, prevendo em alguns casos remoções pontuais. Hoje, esse programa vem sendo relegado a segundo plano e, em paralelo, inúmeras famílias vêm sendo removidas e reassentadas no outro programa habitacional, Minha Casa, Minha Vida. Ou seja, as políticas habitacionais atuais, exercidas via Secretaria Municipal de Habitação, parecem gerir uma crise de moradia instaurada pelas inúmeras operações de remoções, a serem efetuadas em vista de grandes projetos urbanísticos.
IHU On-Line – Como as remoções vêm sendo discutidas e realizadas?
Clarissa Pires Naback – Os embates entre a prefeitura e os moradores são antigos, desde o início da década de 1990, quando Cesar Maia exercia seu primeiro mandato como prefeito e já tinha interesse em remover a Vila Autódromo. Nessa época, o Município pleiteou, por uma Ação Civil Pública, a remoção da comunidade. No entanto, o Estado do Rio de Janeiro, que era considerado dono do terreno, manifestou o interesse em regularizar a ocupação, o que dificultou a execução liminar da remoção da comunidade. Vale lembrar que inúmeras favelas da Barra da Tijuca e do Recreio estavam sendo removidas, e Eduardo Paes, como subprefeito, esteve à frente dessas operações.
Nos jogos Pan-Americanos, a Prefeitura passou a falar em remoção parcial da faixa marginal e da área de alinhamento para a duplicação da Av. Abelardo Bueno. Não posso dizer com detalhes como foram discutidas as remoções nessa época, mas a Prefeitura realizou um “cadastramento” para um possível reassentamento, prática que ela tornou a fazer agora.
Atualmente, porém, a Prefeitura joga com o discurso da negociação e da remoção consentida/voluntária. O Prefeito e a Secretaria Municipal de Habitação chegaram a se reunir em dois momentos com a comunidade: em 2010, após uma manifestação realizada em frente à Prefeitura, e em 2013, durante o acontecimento das grandes manifestações que ocorreram em diversas cidades do Brasil. Nos dois momentos, o discurso era de tentar chegar a um consenso, mas a Prefeitura nunca aderiu à proposta da comunidade de uma urbanização pública local. Apesar de o Prefeito anunciar que só sairiam os moradores que quisessem, não havia previsão de nenhuma política urbana para a Vila Autódromo. Ao contrário, o que se assiste é à degradação da comunidade.
Muitos moradores que estão sendo desapropriados gostariam, por exemplo, de ser reassentados, mas a Prefeitura não adere em nada a essa proposta. Não existe uma discussão, mas uma máscara retórica, uma tática discursiva por cima, com ações subterrâneas por baixo, que agem contra a permanência dos moradores. É um absurdo a Prefeitura deixar os moradores viverem em certas condições e dizer depois que não os tirou à força. Existe uma violência institucional e biopolítica contra o habitar dos moradores que querem permanecer na comunidade.
IHU On-Line – Para quais regiões do Rio de Janeiro as pessoas estão sendo removidas?
Clarissa Pires Naback – Eu comecei a acompanhar os conflitos de remoção em 2010, quando estagiei por um ano no Núcleo de Terras e Habitação da Defensoria Pública do Rio de Janeiro. Nessa época, já era possível constatar que a maioria dos conjuntos habitacionais propostos pela Prefeitura como a alternativa habitacional à remoção se localizava em áreas muito distantes, contrariando os requisitos estipulados por lei para o reassentamento (art. 429, LOA do Rio de Janeiro). Existe uma pesquisa muito interessante feita por Lucas Faulhaber, da qual ele produziu um mapa onde traça o deslocamento das pessoas removidas para os conjuntos habitacionais, localizados em sua maioria em áreas da zona oeste, desprovidas de infraestrutura e serviços públicos.
Por esse mapa é possível perceber como as remoções podem atuar como um mecanismo de segurança, condicionando o fluxo e o posicionamento de determinado grupo de pessoas na cidade (FOUCAULT). Essa questão urbano-biopolítica é desenvolvida por Alexandre Magalhães em sua tese Transformações do “problema favela” e a reatualização da “remoção” no Rio de Janeiro. Vale lembrar que estamos falando das famílias que aceitaram os apartamentos de conjuntos habitacionais do Minha Casa, Minha Vida. Em relação àquelas que recusaram o reassentamento, não há como determinar ao certo para onde foram, mas pelos baixos preços das indenizações (na maioria dos casos) tudo indica que não conseguiram morar próximo de onde viviam.
Por isso, podemos perceber que o caso da Vila Autódromo é significativo. O conjunto habitacional construído para reassentar as famílias se localiza em um endereço próximo à comunidade. As indenizações ali também fogem à regra das remoções. Mas não podemos concluir que existe uma preocupação ou benevolência da Prefeitura para a Vila. Além dos entraves jurídicos (AEIS e concessão real de uso), existiam também dois fatores que repercutiam contra um processo de remoção: a repercussão internacional sobre o conflito e a desconfiança e recusa dos moradores em saírem dali. São vinte anos de resistência e de construção de uma comunidade tranquila. Foi preciso que a Prefeitura anunciasse uma “boa proposta”, chamada de Parque Carioca, que ofertasse altas indenizações e degradasse o ambiente da comunidade, para desmobilizar e desanimar os moradores a permanecerem ali.
IHU On-Line – Quais são as justificativas para a realização de novas remoções por conta das Olimpíadas do próximo ano?
Clarissa Pires Naback – Bom, eu não sei se haverá novas remoções até as Olimpíadas além dos processos já deflagrados. Em algumas ocasiões, Eduardo Paes chegou a dizer que a única comunidade a ser removida em razão das Olimpíadas seria a Vila Autódromo. As outras seriam por conta de obras públicas (Transoeste, Transcarioca e Transolímpica), projetos de revitalização (Porto Maravilha) ou mesmo projetos de urbanização de favela como ocorreu no Morro da Providência e na Indiana (Tijuca). É claro que muito dessas obras estão sendo implementadas a pretexto das Olimpíadas.
Os megaeventos aceleram a implementação de múltiplos projetos urbanísticos. Em alguns locais da cidade do Rio de Janeiro, hoje, a paisagem muda constantemente e de forma rápida. O que é interessante observar é que não existe um único projeto ou uma única justificativa para as remoções: elas vêm acompanhadas de uma miríade de intervenções urbanas. Não são necessariamente as Olimpíadas que provocam as remoções, mas sim a prática de uma política urbana, que se utiliza da realização de grandes eventos para produzir um dinamismo econômico direcionado para e pela expropriação de espaços da cidade.
Outro ponto que é importante ressaltar é que muitas vezes a justificativa aparece obscura e a Prefeitura não diz claramente por que está removendo determinada comunidade. Um exemplo claro é o do Metrô Mangueira, no qual não se sabe até agora por qual motivo o estão removendo, o que nos leva a crer que o interesse ali é a própria extinção da favela, algo que podemos considerar discriminatório e racista.
IHU On-Line – Populações de que outros bairros além da Vila Autódromo estão sendo removidas?
Clarissa Pires Naback – Vamos ver transcorrerem processos de remoções no centro, na Zona Sul (Botafogo e Jardim Botânico), na Zona Norte (Tijuca, Maracanã, Madureira) e Zona Oeste (Recreio, Barra da Tijuca e Jacarepaguá). Talvez ainda haja mais bairros que não consegui mencionar aqui. São muitos processos que não apreendemos ao certo as proporções dessa política remocionista. Os Dossiês produzidos pelo Comitê Popular da Copa e das Olimpíadas do Rio de Janeiro, desde 2011, fazem um mapeamento interessante dessas remoções. Nessas pesquisas, estima-se que pelo menos 10 mil famílias foram removidas ou sofrem ameaça de remoção. Esses materiais dão uma boa dimensão do que estamos vivenciando no Rio de Janeiro.
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