Oportunidade civilizatória à vista: estão surgindo condições para substituir selvas de cimento áridas, segregadas e competitivas, por espaços de afeto, compartilhamento e cuidado. Eleições espanholas sugerem caminho
Por María Eugenia R. Palop | Tradução Inês Castilho – Outras Palavras
A morfologia de nossas cidades mudou muito nos últimos anos. Devastadas tanto pela corrupção urbanística e pela bolha imobiliária quanto pela privatização do espaço público e fragmentação social, elas se debatem entre um mundo infame de espaços vazios e a bunkerização dos novos ricos em urbanizações fechadas e “seguras”. No emaranhado cinzento de estradas em movimento, rotatórias com esculturas horrendas, hipermercados, shopping centers e população encapsulada, as grandes construtoras criaram um lugar estranho que poderíamos chamar de não-cidade. Um buraco negro que impossibilita as relações urbanas, o diálogo e a gestão cidadã, e no qual os indivíduos são fundamentalmente eleitores e consumidores (se é que esses papeis podem ser diferenciados em nossa democracia de negócios), unidos por vínculos líquidos e instáveis.
Nessas (não) cidades, o que impera é a despersonalização (porque o que não se vincula, não é, como diria meu bom amigo e poeta Angel Calle), e os mais vulneráveis estão segregados por barreiras e fronteiras arquitetônicas — que são também sexistas, classistas e racistas. As mulheres, os migrantes, as crianças, os portadores de deficiência, os idosos … aqueles que mais têm necessidade de proximidade e integração, lutam diariamente num metabolismo urbano inacessível e predatório.
Hoje, graças ao esforço de muitos, uma mudança parece possível: transformar estas cidades para sociopatas em cidades para o bem comum, cidades no feminino, e não apenas porque são em boa parte as mulheres que estão liderando as transformações, mas porque ela se apoia, fundamentalmente, na feminização das instituições. A nova política entendeu que o futuro passa por fazer comunidade, por recuperar uma narrativa comum e por fortalecer os vínculos; uma política com rosto humano que assuma nossa dependência mútua. Aí estão os bairros e distritos empoderados, no programa da coligação Agora Madri, que pode governar a capital da Espanha. Aí estão também as declarações de Manuela Carmena ou de Ada Colau, possíveis prefeitas de Madri e Barcelona falando da necessidade de cuidar(-nos) a partir das prefeituras.
Quando algumas feministas reivindicamos a feminização da instituições, estamos nos referindo a isso: a cidades acolhedoras que se organizam em torno da interdependência e do cuidado. E pensamos que são as mulheres no feminino quem pode garantir essa virada para um espaço relacional, dada sua experiência psicossocial e à aprendizagem moral que dela extraíram. O papel que as mulheres vêm desempenhando na esfera privada, familiar e doméstica fez com que as relações interpessoais fossem constitutivas de sua identidade como mulheres, e as tem ajudado tanto a enxergar os mais vulneráveis como a valorizar a importância da empatia e dos afetos. Hoje Carmena se reivindica “avó”, como Colau se reivindica “mãe”. Esta reivindicação é a de um papel social de cuidado que carrega habilidades associadas e capacidades especiais e que, naturalmente, vão além do fato biológico da maternidade (a prova é que a política conservadora Esperanza Aguirre é avó, como também é mãe Dolores de Cospedal).
Enfim, a experiência de uma autonomia negada durante séculos e o isolamento que as mulheres sofreram no âmbito privado, invisibilizado e/ou inferiorizado, é precisamente o que as capacitou a liderar essa nova radicalidade institucional baseada na preservação desses bens comuns e desses vínculos que elas se ocuparam em produzir, reproduzir e manter ao longo da história.
Não faria falta esclarecer que o interessante aqui é a feminilidade e o feminino como um fato diferencial, e que se se fala de mulheres é porque elas são as que majoritariamente o geram e o vivem, mas há também, obviamente, mulheres masculinizadas, como homens feminilizados que souberam revisar e reler sua masculinidade, e que se despojaram voluntariamente de sua virilidade violenta. Esses homens chegaram também a algumas prefeituras, apoiados pelas diferentes ondas e marés que geraram a unidade popular. São e serão parte ativa nesse processo de feminização de que tanto necessitamos.
Logicamente não avançaremos nessa direção sem recuperar o espaço público, os serviços públicos, e articular genuínas políticas sociais. Há que reverter os processos urbanísticos que fomentaram o isolamento e a exclusão, e dotar de identidade e sentido o imenso vazio da não-cidade. Há que reverter os processos de privatização a que nos vêm submetendo impunemente nesses anos; processos de despossessão e expropriação pelos quais não fomos nem de longe compensadas e dos quais não se livraram nem o ar (contaminado até o envenenamento), nem a água, nem o solo, nem sequer as fontes de energia que nos proporcionam o sol e o vento. Sabemos hoje, por exemplo, que a megalômana e endeusadíssima prefeitura de Madri entregou 4 bilhões de euros a umas poucas grandes empresas (ACS, FCC, ferrovial, Sacyr y OHL) para que controlem os serviços públicos, externalizando assim, por uma década, a gestão de bens comuns que deveriam estar nas mãos da cidadania. O resultado foi o encarecimento e a perda de qualidade dos serviços municipais, um enorme prejuízo para a comunidade em benefício do setor empresarial, assim como mais precariedade entre os trabalhadores e aumento do desemprego.
Como explica Imanol Zubero no último número da revista Papeles, a cidade não é um espaço físico apenas, nem um aglomerado de indivíduos, serviços e aparatos administrativos; a cidade é sobretudo um espaço social e relacional, um imaginário que reflete o modo como as pessoas vivem e se reconhecem. As cidades no feminino, que elegemos nas urnas, podem hoje representar um novo imaginário que gire em torno da comunidade, e no qual o medo do outro e as psicopatias sociais sejam substituídas, finalmente, por uma identidade comum mais inclusiva e mais amável. Não acham que vale a pena lutar por elas?