“Quando trabalhamos no Secretariado do CIMI, sempre lutamos para que a questão indígena não mais permanecesse ligada a um Ministério do governo, mas passasse a ser responsabilidade direta da Presidência da República. Ora, a PEC 215 quer transferir a responsabilidade ao Congresso Nacional, onde sempre vencem as forças anti-indígenas”, critica o colaborador do CIMI
Por Patricia Fachin – IHU On-Line
“O importante legado que Pe. Antonio Iasi nos deixa é a sua fé em acreditar na força escondida nos fracos e, em especial, na força transformadora que os povos esmagados encerram. Daí também o seu esforço no sentido de garantir um chão seguro para os povos indígenas”, comenta Egydio Schwade, que se tornou amigo de Iasi no início dos anos 1960, quando ambos participaram da missão jesuítica de Utiariti, no Mato Grosso.
Na entrevista a seguir, concedida à IHU On-Line por e-mail, para registrar o legado do Pe. Antonio Iasi, que faleceu na semana passada, Schwade lembra de sua convivência com Iasi e enfatiza a atuação dele junto às comunidades indígenas. “Pe. Iasi começou a se destacar mesmo no trabalho indigenista dentro doCIMI. Porque ali a sua atitude revolucionária foi aceita e valorizada. Iasi era um revolucionário incorrigível. Seja no trabalho fixo em aldeia, seja no trabalho institucional, Iasi criava conflitos. Jamais se adaptava”, recorda.
Schwade, juntamente com padre Iasi, acompanhou as mudanças no modo de fazer missão na Igreja, após o Concílio Vaticano II, e enfatiza que antes do Concílio os registros indicavam a existência de 99 mil indígenas no país, mas após a imersão dos jesuítas nas comunidades indígenas, contabilizaram mais de 220 mil indígenas vivendo no território brasileiro. “Nós víamos claramente o índio crescer assumindo a sua identidade, voltando e conquistando a sua terra e crescendo em número e em autonomia. Creio que o princípio que orientava a OPAN na época, ou seja, ‘encarnação’ e as linhas de ação emanadas da primeira Assembleia Nacional do CIMI, em julho de 1975, estavam subjacentes às nossas aspirações missionárias (a luta prioritária pela terra, pela cultura e pela autodeterminação) desde quando o documento Lumen Gentium, do Vaticano II, chegou às nossas mãos e se tornou preocupação no nosso trabalho missionário de todos os dias”, pontua.
Contudo, lamenta, “hoje, de fato, a participação dos bispos tanto nas Assembleias Regionais como também na Assembleia Nacional do CIMI é muito menor do que antes de 1978. O que certamente tem a ver com um acomodamento da Instituição, já que o CIMI é agora um órgão oficial da CNBB”.
Atualmente, Egydio Schwade vive próximo à BR-174, em Boa Vista, Manaus, e convive com os índios Waimiri-Atroari. “Esse povo indígena vive uma situação particularmente complicada. É o único povo indígena do país que vive sob a tutela de uma empresa e não do órgão oficial de proteção aos índios: a FUNAI. No caso, trata-se da Eletrobras”, informa.
Egydio Schwade é graduado em Filosofia e Teologia pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos – Unisinos. Foi um dos fundadores do Conselho Indigenista Missionário – CIMI e primeiro secretário executivo da entidade, em 1972. Hoje é colaborador do CIMI. Confira a entrevista.
IHU On-Line – Qual é o legado de padre Antonio Iasi?
Egydio Schwade – O importante legado que Pe. Antonio Iasi nos deixa é a sua fé em acreditar na força escondida nos fracos e em especial na força transformadora que os povos esmagados encerram. Daí também o seu esforço no sentido de garantir um chão seguro para os povos indígenas. E a nível institucional junto à FUNAI teve uma atuação em dois sentidos: duros questionamentos com relação aos mandantes e tratamento carinhoso para com os funcionários de base, fortalecendo o time daqueles que ansiavam por transformação. Semelhantemente na Igreja caminhou com a Igreja dos pobres. Pe. Iasi achou no CIMI o seu modo de marcar presença e de encarnar a realidade missionária. Durante todo período que passou no Secretariado Executivo do CIMI, acompanhou com especial carinho as equipes de leigos, em especial da OPAN-Operação Anchieta, hoje Operação Amazônia Nativa, principalmente em seus trabalhos de base ao longo do Rio Purus e no Noroeste de Mato Grosso, onde buscavam se encarnar na realidade dos sobreviventes de povos esmagados. Deixou também a sua mensagem de pobreza radical. Toda a sua propriedade cabia dentro de uma malinha de dois palmos e meio de comprimento, por um palmo e meio da altura, por 10 cm de espessura. Ali cabia tudo que lhe pertencia: rede, mosquiteiro e lençol de dormida, sua roupa de uso e caderno de anotações e eventualmente algum livro de leitura.
IHU On-Line – O senhor lembra como padre Iasi começou a desenvolver seus trabalhos nas comunidades indígenas? Pode nos contar um pouco da trajetória dele, como ele foi enviado para fazer esse trabalho e em quais condições?
Egydio Schwade – Lembro, sim. Conheci o Pe. Iasi em dezembro de 1963. Eu era estudante jesuíta em estágio ou mestrado de três anos na Missão Anchieta. Nós nos conhecemos em Utiariti. E mal nos conhecemos já embarcamos em uma longa viagem pelos rios Papagaio e Juruena acompanhando um médico paulistano, Dr. Paulo Machado, que prestaria alguns dias de serviços médicos à comunidade Rikbaktsa, aldeia Barranco Vermelho. Um Rikbaktsa conduzia o barco em que viajávamos. Ele também cuidava da nossa comida. A gente levava dois dias para chegar. No amanhecer o fogo já estava aceso, esquentando a água do café. O Rikbaktsa estava com a toalha de banho enrolada ao pescoço pedindo o coador de café. Mas cadê o coador? Fora esquecido. O índio não se alterou. Desenrolou a toalha do pescoço e nela coou o nosso café.
Iasi chegou de São Paulo e foi logo nomeado superior religioso da aldeia Rikbaktsa do Barranco Vermelho. É provável que estivesse vindo de algum colégio jesuíta e desejava que tudo funcionasse assim naquela aldeia de recente contato. Tenho que confessar que tive muita dificuldade de convivência nesta nossa primeira experiência. Como ficaria apenas uns dois meses, período das férias, preferi me isolar e fiquei feliz quando pude sair dali. Nunca poderia imaginar que um dia ambos trabalharíamos muito unidos dentro de um projeto bem mais amplo do que o da aldeia do Barranco Vermelho e durante seis anos nos entenderíamos muito bem, empenhados em uma mesma luta. O Dr. Paulo Machado voltou para São Paulo após atender a saúde do povo Rikbaktsa. Voltou outras vezes e acabou um importante conferencista sobre a Amazônia, o que o levou a Diretor do INPA e, finalmente, a Ministro da Saúde ao tempo do Geisel.
IHU On-Line – Pode nos contar como se deu a transição de um modelo de missão para outro após o Concílio Vaticano II? Como a missão nas comunidades indígenas era entendida e feita antes do Concílio Vaticano II e depois do Vaticano II? Em que sentido a Igreja mudou sua maneira de fazer missão pós-Concílio Vaticano II?
Egydio Schwade – Sim, cheguei à Missão Anchieta um ano antes do Pe. Iasi. Conheci-o no internato de Utiariti, onde eu havia trabalhado durante todo o ano de 1963. Estávamos em pleno Concílio Vaticano II. Acompanhávamos com muito entusiasmo tudo que saía do Concílio. E a missão começou a viver grandes impasses: a ausência de atendimento às aldeias indígenas. O esforço missionário estava concentrado nos internatos, no caso dos jesuítas de Mato Grosso, sobre o internato de Utiariti. E em Diamantino havia o internato “Lar do Menor” para dar abrigo e oportunidade aos índios, meninos pobres de agricultores e garimpeiros darem continuidade aos seus estudos. Atuei nos dois internatos. Os padres já formados vinham normalmente com o objetivo de atuarem nas aldeias e conseguiam assim o privilégio de logo morar ali. Mas o objetivo de sua presença na aldeia era a catequese, dar assistência sanitária aos índios e de encaminhar as crianças para o Internato de Utiariti. Durante o ano de 1963 em que trabalhei em Utiariti, vi chegando da Aldeia do Barranco Vermelho, crianças, meninos e meninas Rikbaktsa, com seus enfeites, colares, cocares, e no dia seguinte os vi vestidos, ajoelhados na igreja. Os documentos conciliares urgiam mudança desta situação.
Missionários leigos
Em janeiro de 1966 cheguei a São Leopoldo, no RS, para dar início aos meus estudos de Teologia. Ali já estavam estudando quatro colegas que também haviam feito o mestrado no Mato Grosso. Ansiosos para mudar a situação, já em março, escrevemos uma carta propondo mudanças profundas na Missão. A carta se dirigia a todos os agentes pastorais da Prelazia de Diamantino: Padres, irmãos e irmãs. Mas a maioria nem sequer nos respondeu e os poucos que responderam foram desfavoráveis à nossa proposta. Ninguém foi favorável. Foi neste momento que o Thomaz Lisboa, um dos quatro, e eu, decidimos organizar um trabalho de missionários leigos. A discussão do ecumenismo era então muito forte e quase todo o fim de semana visitávamos uma comunidade evangélica ou católica do Vale do Sinos, para discutir o assunto com os jovens. No início não tivemos sucesso, mas muita simpatia pelo assunto. A ideia se tornou realidade em fevereiro de 1969 com a criação da OPAN-Operação Anchieta, que, em janeiro de 1970, já enviou o seu primeiro contingente ecumênico de leigos para o Noroeste de Mato Grosso e para o Rio Guaporé em Rondônia.
No mesmo ano de 1970, Pe. Iasi assumiu o SNAM — Secretariado Nacional de Atividade Missionária da CNBB. Imediatamente se dirigiu às Prelazias, Diocese e Arquidioceses da Amazônia. O objetivo foi constatar a importância que estava tendo a questão indígena em cada uma dessas circunscrições eclesiásticas. Da visita resultou o relatório mais contundente sobre a relação Igreja-índio na Amazônia até hoje feito. Encontrei Pe. Iasi em São Paulo, quando acabara de entregar o relatório à CNBB. Muitos bispos justificavam a sua ausência junto aos índios, alegando falta de pessoas, mas Iasi apresenta diálogos com os bispos que demonstram tratar-se mesmo de uma opção pastoral. O relatório contém o primeiro apoio e incentivo público da Igreja à OPAN-Operação Anchieta. Coincidentemente eu estava em São Paulo de passagem acompanhando a segunda turma de voluntários da OPAN que se dirigia a comunidades indígenas da Prelazia de Diamantino em Mato Grosso e Guajará-Mirim/Rondônia, onde buscariam realizar o seu sonho missionário não de catequese, mas de convivência e encarnação na realidade indígena. A OPAN foi quem ofereceu a primeira equipe para o Secretariado Executivo do CIMI, quando este, em inícios de 1974, partiu para a execução de seu primeiro programa: realização de assembleias indígenas e de encontros de pastoral indígena por regiões, das quais nasceram os primeiros nove regionais do CIMI.
IHU On-Line – Em que consistia o trabalho desenvolvido por padre Iasi na Prelazia de Diamantino, em terras mato-grossenses, às margens do Rio Juruena, onde ele trabalhou com os Rikbaktsa, e mais tarde em Utiariti, com os Paresi? Que lembranças o senhor tem dessa época?
Egydio Schwade – Em 1967, depois da experiência no Barranco Vermelho e passagens por Utiariti e pelos Pareci, Iasi integrou a equipe de atração dos índios Tapayuna ou Beiços-de-Pau coordenada pelo Pe. Adalberto Pereira, que já vinha fazendo tentativas de contato desde 1964. Foi um ano muito difícil para ambos, pois pelo lado por onde tentaram fazer a atração, ou seja, pelo rio Arinos, os mesmos haviam sofrido massacres desde que se instalou a colonização Porto dos Gaúchos nas margens daquele rio. Em maio de 1967, fizeram a sua última tentativa de contato. Mas após sofrerem uma noite inteira saraivadas de flechas, durante as quais ambos saíram feridos, levantaram acampamento. Iasi sofreu apenas de raspão; Adalberto, porém, mais gravemente, o que o impediu de continuar no trabalho. Assim Iasi ficou encarregado de dar continuidade à tarefa da atração dos Tapayuna.
Nas férias daquele ano, ainda estudante de teologia, fui convidado pelo padre vigário de Porto dos Gaúchos para fazer um levantamento da paróquia. Descendo de barco o rio Arinos, tive oportunidade de sentir de perto a agressividade dos Tapayuna, pois uma flecha caiu pertinho de mim. Na volta, subindo o Rio Arinos, em outro trecho do rio, encontramos um grupo de Tapayuna que se apresentou pacífico na beira do Rio. Tendo acompanhado o esforço e os perigos que o Pe. Adalberto Pereira e mais recentemente o Pe. Iasi e companheiros indígenas sofreram ao tentar um encontro pacífico com esses índios, não consegui mais dormir até o final daquela viagem. Chegando a Diamantino/MT, dirigi-me logo ao superior dos jesuítas, solicitando o envio imediato de pessoas para dar continuidade ao trabalho de Pe. Adalberto e Pe. Iasi. A resposta foi lacônica: “não temos ninguém!”; ofereci-me, então, disposto a interromper os estudos de teologia. Também não foi aceito! Acabei então deixando nas mãos do superior uma carta de alerta que concluía com uma advertência: “se neste meio tempo forem para lá aventureiros como fulano e sicrano (citei dois nomes) e desastrarem aquele povo, não os critiquemos”.
Relatei depois ao Pe. Thomaz Lisboa, que já fora ordenado padre e que também, em carta, logo se prontificou a ir aos Tapayuna. Mas também não foi aceito. Não demorou dois meses e a FUNAI enviou as duas pessoas que citei na carta para a área. Já no primeiro contato se fizeram acompanhar por uma equipe de jornalistas das revistas Fatos e Fotos e Cruzeiro. Um dos jornalistas estava com gripe e deixou registrado em sua reportagem como transmitiu a gripe aos índios e o resultado da mesma. Consequência: em pouco menos de meio ano, o povo Tapayuna, estimado em aproximadamente 1.000 indivíduos, estava reduzido a 41 pessoas que foram transferidas em maio de 1970 para o Parque Nacional do Xingu, perdendo as suas terras na margem do Rio Arinos. A transferência foi orientada pelo Pe. Iasi, mas não foi uma ação unânime entre os jesuítas da Missão Anchieta. Durante o período que passou no Barranco Vermelho, bem como dentro da Prelazia de Diamantino, o Pe. Iasi não se distinguiu muito na luta por mudanças na estrutura da presença missionária nas aldeias. Mas foi neste período que iniciou a sua luta pela garantia das terras indígenas.
IHU On-Line – Quem eram os companheiros de padre Iasi tanto em seu trabalho desenvolvido nas comunidades indígenas quanto no Cimi? O senhor se lembra de outros padres, intelectuais e leigos que trabalharam com ele? Que pessoas foram importantes para a formação dele?
Egydio Schwade – Por volta de 1966 chegou à Missão Anchieta o Ir. Vicente Kañas, um espanhol. Ir. Vicente ficou o cozinheiro na casa dos jesuítas em Diamantino. Um excelente cozinheiro! Nas férias de 1968, Pe. Thomaz Lisboa e eu o conhecemos e nos tornamos muito amigos. Sentimos no primeiro contato que o Ir. Vicente estava deslocado de sua real vocação. Tinha tudo para fazer um excelente trabalho nas aldeias e na linha proposta pelo Vaticano II. E ele concordou conosco e começou a lutar para ir morar em aldeia indígena, onde era o seu real lugar. Conto isto, embora esteja falando sobre o Pe. Iasi, porque a entrada no trabalho missionário indigenista do Ir. Vicente a partir de 1969 foi determinante para a mudança de atitude missionária junto aos índios. Determinante para quem já trabalhava na missão, como para quem estava chegando, tanto para o clero como para os missionários leigos da OPAN-Operação Anchieta. Assim junto aos índios Pareci, quem realmente deu rumo ao trabalho missionário ali, foi o Ir. Vicente. Foi também determinante devido a sua tranquilidade e atitude, nos primeiros contatos nos inícios dos anos 1970, tanto dos índios Myky como dos Enawene Nawe.
O Pe. Iasi começou a se destacar mesmo no trabalho indigenista dentro do CIMI. Porque ali a sua atitude revolucionária foi aceita e valorizada. Iasi era um revolucionário incorrigível. Seja no trabalho fixo em aldeia, seja no trabalho institucional, Iasi criava conflitos. Jamais se adaptava. Em 1971 o Gal. Oscar Gerônimo Bandeira de Melo, Presidente da FUNAI, chamou-o para seu assessor. Iasi aceitou. Mas o General o demitiu em menos de um mês. Em 1974, quando apresentei o programa do Secretariado ao CIMI, Pe. Iasi se ofereceu para integrar a equipe do Secretariado Executivo. Foi aceito e imediatamente foi a campo ocupando o terreno mais vulnerável dos povos indígenas: a participação nas assembleias indígenas e a luta pela terra. A partir daí tornou-se bem próximo e conhecido dos povos indígenas de Norte a Sul. Os jornalistas insatisfeitos com os programas da Ditadura Militar frente aos povos indígenas também se aproximaram logo de Iasi. Os missionários leigos, tiveram sua visita frequente, em especial os da OPAN, que marcavam presença junto a aldeias há séculos abandonadas pela Igreja e pelo Estado, em amplo território da Amazônia, principalmente ao longo do rio Purus.
Missões tradicionais
Mas Pe. Iasi também marcou presença junto às missões tradicionais, como a dos salesianos do Alto Rio Negro, oferecendo seus serviços para o encaminhamento do problema das terras indígenas. Mesmo temido por muitos na Ordem e na Igreja pela sua intransigência, ao final, no trabalho do CIMI todos o queriam bem, sobretudo pelas suas atitudes corajosas. Em abril de 1975 a FUNAI convocou um encontro das missões com a FUNAI para Manaus. Era para ser um encontro de diálogo sobre a política indigenista. Mas no dia anterior à reunião os missionários, em especial os missionários católicos, foram surpreendidos por uma entrevista do Ministro do Interior, criticando a posição da Igreja Católica expressa pelo CIMI. O mal-estar foi criado e Pe. Iasi ficou encarregado de responder ao ministro na abertura da reunião convocada pelo Presidente da FUNAI: Gal. Ismarth de Oliveira. Iasi preparou uma resposta duríssima, concluindo que o Ministro havia sido “no mínimo leviano”. O General Ismarth ficou perplexo com a resposta do Pe. Iasi e pediu de público um desagravo ao Ministro por Iasi o ter chamado de “leviano”. Mas o Pe. Iasi já estava novamente com o braço no ar, pedindo a palavra: “Não chamei o ministro de ‘leviano’, mas de ‘no mínimo leviano’!”.
Pessoas que foram particularmente importantes para o Pe. Iasi, neste período, foram as jornalistas Eliana Lucena, do Estado de São Paulo, e Memélia Moreira, do Jornal de Brasília e Folha de São Paulo, não só pela coragem de publicarem em seus respectivos jornais as provocantes entrevistas do Pe. Iasi com constantes críticas à política indigenista da Ditadura, mas também pelo constante interesse com que acompanharam o Pe. Iasi, durante todo o período em que trabalhou no conflitivo trabalho do Secretariado do CIMI, fustigando a FUNAI. Iasi também teve os seus amigos dentro da FUNAI, pessoas que ansiavam por mudanças dentro do órgão. Um deles foi Ezequias Heringer — vulgo Xará.
IHU On-Line – O que mudou na sua ação e na de padre Iasi nesse período de transição pós-Concílio Vaticano II? Como vocês passaram a entender e a viver a missão nas comunidades indígenas?
Egydio Schwade – No livro Os índios e a civilização, de Darcy Ribeiro, que havia feito um levantamento dos indígenas nos anos 1950, refere que existiam então um máximo de 99 mil indígenas no país. A ação missionária durante e pós-Concílio Vaticano II contribuiu decisivamente na mudança dessa situação. A catequese negativa anterior foi substituída mediante a do CIMI-OPAN por uma ação missionária de esperança. Nós víamos claramente o índio crescer assumindo a sua identidade, voltando e conquistando a sua terra e crescendo em número e em autonomia. Creio que o princípio que orientava a OPAN na época, ou seja, “encarnação” e as linhas de ação emanadas da primeira Assembleia Nacional do CIMI, em julho de 1975, estavam subjacentes às nossas aspirações missionárias (a luta prioritária pela terra, pela cultura e pela autodeterminação) desde quando o documento Lumen Gentium, do Vaticano II, chegou às nossas mãos e se tornou preocupação no nosso trabalho missionário de todos os dias. Em 1978 promovemos um novo levantamento nacional dos índios e eles já ultrapassavam os 220 mil.
Quando deixei o Sccretariado do CIMI em 1980, Iasi se ofereceu ao Governo Revolucionário Sandinista, recém-vitorioso na Nicarágua, para ir trabalhar com os índios Mesquitos, com quem o governo enfrentava sérios problemas por conta de erros cometidos em seu relacionamento. Voltou ao Brasil no final de 1984 por terra, via Venezuela. Veio pela BR-174 para nos visitar aqui em Presidente Figueiredo. Não sabendo onde nós morávamos foi caminhando pelas ruas, todas então de chão batido até que de repente encontrou dois lourinhos brincando na rua. “Só podem ser filhos do Egydio e da Doroti!” – dizia consigo e os seguiu. De fato eram Ajuri e Adu, então com 4 e 3 anos, respectivamente. Nossos dois primeiros.
IHU On-Line – Como a Igreja brasileira tem se posicionado em relação à questão indígena? A Igreja brasileira tem um comprometimento com a nova visão de missão que surgiu com o Concílio Vaticano II?
Egydio Schwade – Eis um sério problema que vem se arrastando até hoje na Igreja. Quando me tornei Secretário Executivo do CIMI, em junho de 1973, existia um grupo de aproximadamente 40 bispos que apoiavam ostensivamente a ação do CIMI. D. Ivo Lorscheiter, na época Secretário Executivo da CNBB, devido à fragilidade do órgão dentro da Igreja Institucional, recomendou sabiamente que o CIMI fosse apenas um “órgão oficioso da CNBB”. Com isto, para os bispos que acreditavam na ação do CIMI, éramos órgão oficial, e para quem nos contestava éramos apenas um “órgão oficioso”. Isto tornava o CIMI muito ágil, sem estar a todo o momento sujeito a responder questiúnculas colocadas pelos bispos que discordavam das linhas de ação do órgão. A estratégia funcionou muito bem até inícios de 1978, quando começaram fortes contestações da parte dos bispos tradicionais, exigindo estes uma ligação definitiva com a CNBB, que acabou sendo aprovada em assembleia da CNBB. Muitos bispos e padres ficaram contentes com a nova situação, mas o Pe. Iasi e eu ficamos muito preocupados, pois o CIMI tendo que participar das reuniões frequentes da CNBB, onde surgiriam constantes questionamentos, difíceis de serem respondidos a quem ainda imaginava a ação da Igreja junto aos índios, como uma ação prioritariamente catequética. Hoje, de fato, a participação dos bispos tanto nas Assembleias Regionais, como também na Assembleia Nacional do CIMI é muito menor do que antes de 1978. O que certamente tem a ver com um acomodamento da Instituição, já que o CIMI é agora um órgão oficial da CNBB.
IHU On-Line – Qual é a situação dos indígenas na sua região?
Egydio Schwade – Em minha região aqui na BR-174, Manaus–Boa Vista, moram os índios Waimiri-Atroari ou Kiña como se autodenominam. Esse povo indígena vive uma situação particularmente complicada. É o único povo indígena do país que vive sob a tutela de uma empresa e não do órgão oficial de proteção aos índios: a FUNAI. No caso, trata-se da Eletrobras. Esta situação esdrúxula tem a sua raiz na Ditadura Militar. Durante a Ditadura esse povo sofreu o maior massacre ocorrido neste período em função da construção da BR-174. Um dos objetivos dos militares com a construção da BR-174 foi a instalação da Hidrelétrica de Balbina, sob o comando da Eletronorte, cujos diretores à época da sua instalação tiveram participação no sumiço de diversas aldeias Waimiri-Atroari na região do futuro lago de Balbina. Por isso estão muito interessados na ocultação da verdade sobre o desaparecimento de mais de dois mil Waimiri-Atroari durante o período da construção da rodovia.
Ao final da Ditadura, um funcionário muito lúcido da FUNAI, Ezequias Heringer, propôs iniciar uma mudança da política indigenista oficial a partir da situação mais urgente, que era a dos Waimiri-Atroari. Convocou diversos órgãos indigenistas para integrarem um grupo de estudos e trabalho. Além da FUNAI, chamou o CIMI, a OPAN, a Universidade de Brasília e, evidentemente, lideranças Waimiri-Atroari. Este grupo organizou uma proposta nova de trabalho que iniciou, por pressão dos próprios índios, com um programa de alfabetização na aldeia Yawará. Esse programa, levado a efeito por minha esposa Doroti e por mim, não agradou nem a Eletronorte e nem a Mineradora Paranapanema, instalada ilegalmente na terra desses índios. Apesar da total aceitação por parte dos índios, essas empresas iniciaram uma pressão contra nosso trabalho, diante da qual a FUNAI capitulou e nos retirou da área, iniciando uma campanha nacional contra o CIMI, que foi financiada pela Paranapanema em agosto de 1987.
Além disso, para isolar de novo os índios, que durante o processo de alfabetização começaram a revelar o extermínio que o Exército praticou contra eles (ver o livro A ditadura militar e o genocídio do povo Waimiri-Atroari), revelando as armas utilizadas, criaram o PWA – Programa Waimiri-Atroari, sujeito à Eletronorte até hoje. E até hoje o PWA está sob o comando de um ex-funcionário da FUNAI e da Eletronorte. Hoje a Eletrobras também está muito interessada na ocultação dos crimes cometidos pelo Exército durante a construção da Rodovia BR-174. Ela mesmo atuava no período do massacre dos índios na área como subcoordenadora da COAMA, órgão comandado por um general conhecido pelas suas atitudes violentas.
IHU On-Line – Como o senhor está analisando o segundo governo da presidente Dilma?
Egydio Schwade – Um dos mais graves equívocos ou erros da política da presidente Dilma é, sem dúvida, a sua postura de desprezo aos povos indígenas e quilombolas e por detrás deles ao movimento social. Isto é simplesmente ininteligível em se tratando de uma pessoa que sofreu prisão e tortura da parte da Ditadura Militar, por sua luta em prol de um socialismo. Até hoje não nomeou sequer um presidente da FUNAI efetivo. E todo o mundo vê que, se o governo quiser fazer uma Reforma Agrária, deve nomear para Ministro da Agricultura uma pessoa que a queira fazer e tenha apoio para fazê-la, como, por exemplo, João Pedro Stédile, que creio teria o apoio até do papa Francisco para fazê-la. Mas Dilma nomeou a Kátia Abreu para o cargo, pessoa comprometida até a raiz dos cabelos com uma antirreforma agrária. O que decepciona no governo Dilma é o fato de ela se deixar encurralar pela ultradireita. Talvez por não acreditar na luta dos pobres, sem armas, contra a Ditadura Militar da qual o Agronegócio e a Bancada Ruralista são hoje o prolongamento, não consiga avaliar a força que representam os fracos sem armas.
IHU On-Line – O PT foi eleito também com o apoio de muitas comunidades indígenas, justamente porque o ex-presidente Lula prometeu a demarcação das terras. Como o senhor se sente hoje, por ter apoiado o partido e ver poucos avanços nessa questão?
Egydio Schwade – Acompanhei o Lula como assessor, na sua visita à Hidrelétrica de Balbina, durante o segundo turno da campanha Lula-Collor em 1989. E também na “Caravana das Águas” em 1994. Sempre indicado pelo Partido para esclarecer sobre os prejuízos de uma política energética insana e por uma política empresarial de incentivo rural, como foi o caso da Embrapa, que mantinha em 1994 em Maués um viveiro de milhares de mudas de guaraná, destinadas unicamente para a Antártica. Políticas desastrosas principalmente para as populações locais. Quando Lula começou a sua enrolação com a demarcação das terras indígenas, cedendo ao Agronegócio, chegando a tratar os latifundiários de “heróis da pátria”, a gente começou a se sentir traído em todo um longo esforço feito com agricultores e índios para a construção do Partido dos Trabalhadores em nossa região.
IHU On-Line – Quais são as implicações da PEC-215 para as comunidades indígenas?
Egydio Schwade – Quando trabalhamos no Secretariado do CIMI sempre lutamos para que a questão indígena não mais permanecesse ligada a um Ministério do governo, mas passasse a ser responsabilidade direta da Presidência da República, isto para impedir a sua submissão a um jogo de interesses entocados nos ministérios. Ora, a PEC 215 quer transferir a responsabilidade ao Congresso Nacional, onde sempre vencem as forças anti-indígenas. Além de nenhuma representação indígena no Congresso, este atualmente está dominado pela Bancada Ruralista, agressivamente anti-indígena. A PEC 215 é um retrocesso para além da Ditadura Militar.
IHU On-Line – Deseja acrescentar algo?
Egydio Schwade – O velho senador romano, Sêneca, ia todos os dias ao Parlamento Romano para verberar contra uma comunidade indígena do Norte da África: Cartago. “Caeterum censeo Cartaginem delendam esse!” Traduzindo: “De resto, eu penso, Cartago deve ser destruída!” Tal e qual procede a bancada ruralista hoje no Congresso contra os povos indígenas brasileiros. É hora de pensarmos às avessas: “De resto, eu penso, Roma, o paradigma romano, deve ser destruído!” Os povos indígenas e o seu modelo de vida devem viver!
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Foto: territorio-irrestrito.blogspot.com.br