Formiguinhas vivem no Xingu, perto dos Arara, junto aos ribeirinhos. Cortam folhas, carregam, atravessam as águas até num graveto. Mofo farto, lazer todo dia. Quando brincam de formigas de correção, afugentam cobras venenosas, Tamanduá-bandeira e Tatu-testa de ferro, que vão buscar comida noutra freguesia.
Chega o Formigão! Fala mal das formiguinhas, de sua comida, de suas casas e diz que ele, sim, sabe fazer um formigueiro bonito e grandão. A promessa é de terra sem formiga pra formiga sem terra. A promessa é de gente sem energia pra energia da gente. “Se vierem comigo, terão um formigueiro bonito e serão grandes como eu”. Algumas formiguinhas acreditam. Formigueiros se dividem. Escorpiões e cobras venenosas passam a circular livremente.
O Formigão constrói, então, um carreiro imenso no coração da floresta. Tira madeira, coloca pasto, planta muita soja para a sua dieta, que é especial. Sua sede vai aumentando, aumentando, e desce para o Xingu. O Ibama lhe concede a Licença de Instalação em 1º de junho de 2011. Formiguinhas do Brasil todo, mais de 25 mil, a imensa maioria à busca de alimento, começam a trabalhar duro na obra. O formigueiro cresce, cresce, a terra escorre, escorre, e vai fechando o Rio, na Volta Grande. A Licença de Operação, que permite o enchimento do lago, já foi solicitada ao Ibama no dia 11 de fevereiro de 2015.
Formiguinhas se lembram da antiga promessa, passada de mãe pra filha: ”Se vocês vierem comigo…”. Olham, então, o espelho das límpidas águas do Xingu ou de um igarapé. Esperam ter crescido! Descobrem-se, porém, mais magras, esgualepadas, sugadas, desmilinguidas. Percebem que, além delas, piabinhas, indígenas, ribeirinhos, camponeses, urbanos e até uns jacarés de papo amarelo sentem-se ludibriados.
As formiguinhas revoltam-se, indignadas! Agarram-se à única folha verde, a organização! Furam aqui e ali, reúnem-se por baixo de uma casca de pau, fazem memória de tudo – do dilúvio, dos parentes mortos. Constroem pequenos formigueiros, mexem o mínimo de terra para não chamar atenção, espalham-se por toda parte: no Novo Horizonte, na Transvilas, nas áreas alagadiças de Altamira, no Jatobá, no São Joaquim, no Assurini, nos acampamentos em Vitória do Xingu, em Belo Monte, nos canteiros de obra, em Anapu. Não há um lugar sequer sem trabalho de formiguinha, para elas a coisa mais importante do mundo.
Além desse trabalho diuturno, articulam-se pra fora, denunciam a truculência do Formigão.
O Formigão às vezes desconfia, joga formicida num ou noutro carreiro, mas continua numa boa, no seu formigueiro imenso, só cheirando o mofozinho de folhas alheias que formiguinhas operárias carregam, sempre rodeado de escorpiões e cobras venenosas.
Num dia, ele acorda sentindo um ardume no pé. O tempo está fechado: é inverno! Do leito do rio, naquele claro-escuro, pensa que apenas mais umas formiguinhas descontentes serão esmagadas. Que nada! Quando vem a claridade, dá-se conta de que pés, pernas, todo o seu corpo está tomado de centenas de milhares de formiguinhas, algumas tucandeiras. Ele esfrega-se, refrega-se e cai desmaiado. Primeiro uma tontura, depois um calor febril. O capital sente um baque profundo! Escorpiões e cobras venenosas fogem de medo das formiguinhas rebeldes. É o dia da vitória! A Djalma e a Sete de Setembro ficam pequenas na mobilização da formigada. Chamam as camaradas, constroem casas e nelas habitam.
No local onde o Formigão cai desmaiado – e morre, isolado -, duas formiguinhas fincam uma grande placa com os dizeres: “quem não pode com formiga, não assanha o formigueiro”.
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*Antônio Claret Fernandes é militante do MAB e contribuiu como missionário na Prelazia do Xingu entre 2011 e 2014. É também colaborador de Combate Racismo Ambiental. Texto originalmente publicado na primeira edição do jornal “A Voz dos Atingidos”, março de 2015.