O que uma mãe perde ao ser indenizada pela maior hidrelétrica em construção no Brasil
Letícia Leite – ISA
Mais de cinco mil casas devem ser demolidas na cidade Altamira (PA), antes que o Rio Xingu seja barrado definitivamente. Cerca de três mil já foram abaixo. As ruas próximas à orla estão repletas de entulho de construção. A negociação para a demolição de outras duas mil casas prossegue entre os que vivem onde será o reservatório da usina de Belo Monte e a empresa que a está construindo, a Norte Energia.
A casa onde vivia a conselheira tutelar Edizângela Gomes foi demolida há dois meses. A retirada compulsória da “palafita insalubre” – segundo o empreendedor – ou a primeira “casa de madeira” – segundo Edizângela – deu-lhe o direito de receber uma casa de três quartos e dois banheiros.
Edizângela já passou uma noite na escadaria da igreja, grávida de sete meses, sem casa, com outros dois filhos em seu colo, com fome, abandonada pelo marido, pelo Estado. Levantou quando o sol raiou e seguiu em frente até encontrar um novo amor, com quem teve outros dois filhos. A falta do que comer e a falta de onde dormir não foram suficientes para separar Edizângela de nenhum dos seus cinco filhos até a obra de Belo Monte ser iniciada na cidade onde vive há 20 anos.
A nova casa está a pelo menos uma hora de caminhada do prédio do Conselho Tutelar. Não há transporte público entre o centro da cidade e os reassentamentos coletivos. A mãe de Edizângela, que cuidava dos netos e morava numa extensão da casa da filha, não foi indenizada e teve que ir morar em um terreno da família, na área rural de Altamira. Dois de seus cinco filhos seguiram com a avó até que uma linha de transporte público chegue ao novo bairro ou até que os filhos possam proteger-se sozinhos em uma cidade de 150 mil habitantes que, em 2014, registrou sete assassinatos por mês.
Altamira tem uma média de 57 homicídios por 100 mil habitantes, de acordo com a Polícia Civil, quando o índice “não epidêmico” da Organização Mundial da Saúde (OMS) é de 10 casos por 100 mil habitantes. Entre 2011 e 2014, o número de assassinatos saltou de 48 para 86 casos, enquanto a população cresceu 100 mil para em torno de 150 mil habitantes, segundo estimativas da prefeitura.
No mês mais violento em Belém, em 2014, foram registradas 380 ocorrências envolvendo furtos e assaltos por dia. Altamira, com população 10 vezes menor, registrou metade do número de ocorrências.
O número de acidentes na cidade de trânsito saltou de 456 para 1169, um aumento de 144% nos últimos quatro anos. Quase 10% dos motoristas envolvidos nos acidentes em 2014 sequer tinham carteira de habilitação. O tamanho das ruas e a malha viária são praticamente os mesmos, enquanto a frota de veículos aumentou em sete mil veículos só no ano passado, de acordo com o Departamento Municipal de Trânsito. Saem às ruas todos os dias quase 50 mil veículos.
Na entrevista a seguir, Edizângela Gomes falou sobre como é trabalhar em uma cidade do interior do Pará que registra números de violência muito acima da média de conflitos armados internacionais. Ela é coordenadora do Conselho Tutelar de Altamira há três anos. No primeiro ano de trabalho, conseguiu retirar a expressão “pai ausente” da identidade do filho. Aprendeu a fazer isso enquanto exercia a função, quando teve que utilizar os instrumentos do Estado para ajudar outra mãe a fazer o mesmo. Foi ser militante do Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB) para tentar explicar o que era importante para as pessoas que vivem na região. A conselheira acredita que, na maioria das vezes, as pessoas que decidem sobre a vida dos que estão perto dela não conhecem a Amazônia.
Conselho Tutelar sem estrutura
Na mesa de sua sala, a impressora não tem tinta para imprimir o ofício da mãe que está em sua frente solicitando ajuda para conseguir uma vaga na creche. O teto da sala ao lado já começa a ceder, goteiras caem sobre a mesa de madeira (veja galeria de fotos no final do texto). No corredor há uma placa de “banheiro interditado”. Durante cinco meses o Conselho Tutelar ficou sem água: até para ir ao banheiro era preciso contar com a solidariedade dos vizinhos. O lugar que recebe crianças em estado de vulnerabilidade é escuro, com paredes gretadas pela infiltração. Não há encanamento na cozinha, um balde embaixo da pia recebe a água da louça que é lavada.
É nesse lugar que cinco conselheiras atenderam 2.030 casos de situações de risco para as crianças e adolescentes de Altamira, em 2014. Abandono de pais e maus tratos são a maioria. A cidade que recebeu 25 mil trabalhadores em três anos não recebeu nenhum reforço no Conselho Tutelar, seja em infraestrutura ou previsão orçamentária para contratação de equipe, para atender pais e mães que abandonaram seus filhos para ir trabalhar e as denúncias decorrentes disso.
A conselheira não tem sequer um telefone fixo que faça ligações para celular ou um celular para realizar chamadas de urgência ou caso necessite acionar a polícia para conter a violência contra menores. Enquanto isso, o Ministério da Justiça publica portarias semestrais que autorizam o uso da Força Nacional para assegurar a continuidade de Belo Monte, desde 2011. O governo federal investe pesado na segurança de um empreendimento privado.
Outro tipo de violência também está nas ruas esburacadas da cidade. As obras de saneamento, uma das principais compensações socioambientais da usina, destruíram calçadas e desnivelaram as poucas ruas que estavam inteiras. Ainda assim, a população vive na incerteza se terá saneamento. A responsabilidade pelas ligações da tubulação que passa nas ruas ao encanamento das casas ainda não foi definida. Só terá esgoto encanado quem pagar por isso.
Entrevista
A reportagem do ISA conversou com Edizângela em Altamira. A seguir, alguns trechos desta conversa.
Letícia Leite (ISA) – Em 2011, foi assinado um Termo de Cooperação Técnico-Financeiro entre a Norte Energia e a Secretaria de Segurança Pública do Pará no valor de R$ 100 milhões, quase um terço do orçamento da pasta de segurança pública para todo o estado, na ordem de R$ 340 milhões. O destino acordado para o dinheiro era o fortalecimento da segurança pública e o atendimento dos impactos decorrentes do aumento da população. O que esse investimento refletiu no seu trabalho?
Edizângela Gomes – Dizem que foi gasto este valor, mas eu não vi. Enquanto moradora da região, enquanto coordenadora do Conselho Tutelar, eu não sei onde foi gasto. O conselho está caindo aos pedaços, não tem estrutura adequada para receber uma criança.
LL – Como é o dia a dia? O que falta?
EG – Nós somos cinco conselheiras eleitas pela comunidade para garantir o cumprimento dos direitos da criança e adolescentes. Ser conselheira tutelar é um desafio, sendo mulher, negra e morando na periferia da cidade, nesse momento que Altamira passa, é um dos maiores desafios deste país. Porque as demandas se intensificaram. Aqui tem muitas empresas contratando diversos serviços. Muita gente vem em busca de trabalho, a cada dia aumenta mais o número de pessoas. A partir do momento que começou a construção, chegaram 25 mil trabalhadores, homens e também mulheres, que recebem esta oportunidade de emprego, e o conselho tutelar é a porta de entrada de muitos problemas, quando não tem escola, hospital suficiente, quando os pais abandonam os filhos para ir trabalhar.
Existem diversos casos de mulheres que procuram o conselho após terem filhos com operários temporários, que seguiram para outras barragens. Essas crianças são apelidadas de “filhos da barragem”.
LL – Neste fim de semana, de pagamento dos funcionários da usina, o Conselho acompanhou uma operação da Polícia Militar de combate à exploração sexual. Cartazes em bares anunciavam a “Noite dos Barrageiros”, festa para o público da obra que vem à Altamira no fim de semana. Como foi essa operação? O que você viu?
EG – Nós passamos por várias boates com grande número de mulheres fazendo programas. A gente viu esta questão da mulher como mercadoria. Nesta batida, não encontramos adolescentes, mas mulheres muito jovens, na faixa de 20 anos. Mas nós recebemos um caso, uma semana antes, em uma casa da periferia da cidade. Fizemos os procedimentos, encaminhamos para a vara da infância, Ministério Público. A adolescente estava gestante de cinco meses, tinha 17 anos. Ela estava em uma casa de prostituição que ficava dentro da comunidade “Invasão dos Padres”.
Na mesma semana, encontramos outra adolescente gestante ingerindo bebida alcoólica em um bar em frente à rodoviária. Ela também estava fazendo programa. Advertimos o proprietário e encaminhamos o caso. A prostituição infantil existe na nossa região, não é uma história, é um fato. Encontramos uma adolescente, grávida, se prostituindo e não temos uma rede de saúde pronta para a encaminharmos, não temos uma política pública. Nós temos uma defensoria pública estadual que não tem nenhum defensor. Porque um município deste, com todo este inchaço populacional, não tem uma defensoria? Isso dificulta muita a nossa atuação.
Recebemos as denúncias e não temos estrutura para acompanhar as situações. Eu me lembro de uma situação em que atendi uma adolescente dopada de drogas, que foi encontrada em uma praia e foi violentada por vários homens que trabalhavam na obra. Até hoje esses homens nunca foram identificados. O SAMU trouxe a adolescente espumando pela boca, ela não falava. O SAMU trouxe ela amarrada para pedir que uma conselheira acompanhasse a jovem até o hospital.
Quando ela voltou à consciência, ela contou que saiu da escola, recebeu um convite de uma amiga para ir até a praia. Chegando lá tinham vários homens com uniforme da CCBM [Consórcio Construtor Belo Monte]. Elas começaram a beber e a jovem não se lembrava de mais nada.
Houve o caso da menina Evylin, de nove anos, que foi morta, estuprada e estrangulada e até hoje não se tem resposta sobre o crime.
Depois de ver uma coisa dessas eu volto pra casa com o coração a flor da pele. E ainda chego em casa e não posso contar isso pra ninguém, não posso expressar o que estou sentindo. Meu esposo não vai entender, meus filhos também não. Eu tenho que chegar em casa e ser feliz com eles, dar amor e carinho a eles. Não é fácil ir pro trabalho, presenciar tanta violência e depois chegar em casa e fingir que está tudo bem e fazer a tarefa de casa com o meu filho.
LL – Você também foi transferida da sua casa. Como está sua rotina no novo bairro?
EG – Antes eu morava no bairro Esperança, na rua 8, um bairro que será deslocado para dar lugar ao lago de Belo Monte. Quando a gente ouviu falar dos estudos da hidrelétrica, que diziam que a gente teria de sair dali para dar lugar ao lago, a gente não acreditava que teríamos de sair dali, que iríamos se separar da forma que a gente foi separado. Quando as empresas vieram fazer os estudos, os assistentes sociais diziam que a gente iria melhorar de vida, que iríamos ter direito a permanecer juntos. Muita gente acreditou nisso. E o dia que a gente seria transferido chegou. E as pessoas da comunidade se perderam umas das outras. Quando a gente chegou no reassentamento a gente se deparou com a quebra do vínculo comunitário e familiar. Cada um foi pra um lugar, eu não sei para onde foram os meus vizinhos, a gente ainda tá se achando. Foi prometido uma melhora na qualidade de vida, mas os meios públicos para atender a comunidade ainda não foram construídos. Estão no papel, são projetos, mas as pessoas já estão lá. Lá não tem escola, o posto de saúde é provisório, não tem creche, temos problema de falta água, de energia elétrica. E tem as pessoas que ficaram na comunidade. Enquanto a gente foi se mudando, muitas pessoas foram ficando. Eles disseram que a rua 8 iria ser inteira transferida, só não iria ficar junto quem não optasse pelo reassentamento. Mas isso não aconteceu. Algumas pessoas que ainda estão no bairro Boa Esperança foram saindo e eles foram retirando as casas e os postes de luz. Algumas ruas já não tem mais luz e ainda restam casas lá, não tem segurança, a violência aumentou.
LL – O que mudou na sua família?
EG – Onde eu morava, a minha casa era de palafita, como o empreendedor chama, a minha casa era de madeira, mas conseguia abrigar toda a minha família. A minha casa era como uma casa de apoio, minha mãe morava comigo, meu pai passava um tempo comigo, minha irmã que mora em São Felix do Xingu, quando precisava vir para Altamira, ficava na minha casa. Agora que eu me mudei, a casa não está adaptada para o tamanho da nossa família. Minha mãe teve que ir para a zona rural. Porque eu, meu esposo, mais cinco filhos já somos sete. Minha mãe, o esposo e a netinha que ela cria não cabiam na casa. Era ela que me ajudava quando eu ia para o Conselho Tutelar cuidando dos meus filhos. Eu ainda não tive condições para fazer um puxadinho, construir alguma coisa para ela ficar comigo. Não existe transporte coletivo nos novos bairros. Nesta semana, eu gastei R$ 50 em mototáxi. Pra quem ganha um salário mínimo, este valor pesa. Você só vê transporte para levar e buscar os trabalhadores que estão trabalhando no reassentamento.
Quando eu mudei, percebi que não poderia mais ficar com todos os meus filhos, pela segurança deles. Como eu poderia trabalhar e deixar as crianças num bairro longe do meu trabalho, sem transporte público? Por esse motivo, eu tive que deixar dois filhos com ela. A melhor forma para proteger eles. Este foi um grande sacrifício como mãe. A gente já passou por muitas situações difíceis, fui mãe solteira, já me vi por uma noite grávida, com dois filhos, sem ter abrigo, mas junto com meus filhos, sempre juntos. Desta vez, esta mudança na minha vida fez com que a gente se separasse para a proteção deles. Eu sei que é passageiro, mas é uma separação. Ver dois dos meus cinco filhos somente uma vez por semana é muito difícil.
LL – Porque a sua mãe não recebeu uma casa?
EG – Na época que eles fizeram o primeiro cadastro para a transferência, minha mãe estava em casa. Quando eles fizeram o segundo cadastro, minha mãe estava em São Félix do Xingu buscando uma documentação. A empresa colocou-a como “população ausente”, então ela perdeu o direito de receber uma casa. Minha mãe tinha um pedaço de terra de 50 metros quadrados na zona rural e foi morar lá. Minha mãe tinha pedacinho de terra, mas muitos destes agregados, que não receberam nenhum direito, estão voltando para as áreas, porque não têm condições de pagar um aluguel.
LL – O que Belo Monte te ensinou?
EG – Eu aprendi a lidar com o mal e com o que me fazia mal. Eu fui ser militante do MAB para tentar explicar para as pessoas que decidem sobre a nossa vida, o que é importante para nós, importante de verdade! Eu entendi que muitas vezes não é uma questão de maldade, mas de despreparo, as pessoas vem aqui de fora, de são Paulo e não conhecem esta realidade, não sabem o que estão fazendo.
LL – Se você encontrasse a presidente Dilma hoje, o que diria a ela?
EG – Eu diria pra ela que aqui existem muitas mães e mulheres sofrendo o impacto de Belo Monte. Eu sei que não foi ela que decidiu pela hidrelétrica sozinha, mas ela continuou. Não existe respeito com as mulheres e crianças dessa região e pediria pra ela, enquanto mãe, mulher e presidente que ela parasse um pouco pra pensar sobre o que está acontecendo aqui. Avalio também que não é só ela que comanda todo o país, são vários interesses políticos. Eu não entendo muito bem, mas a construção de barragens na Amazônia é uma destruição das mulheres, da juventude, das comunidades ribeirinhas, dos povos indígenas, que são os mais impactados e violados.