Por Luís Carlos Valois*, em Causa Operária
Por metade do tempo da minha vida eu venho conhecendo criminosos. Negros, brancos, índios, mulatos; homens, mulheres, homossexuais; altos, baixos, aleijados, fortes, fracos; criminosos de todos os tipos. Mas, diferentemente de Lombroso, o criminólogo italiano que, no início do século XX, via características físicas parecidas nas pessoas que ele pesquisava no interior do cárcere, nunca encontrei nenhum aspecto igual em todas essas pessoas, tirando o fato de que eram pobres.
Uma única exceção posso dizer que foi um estrangeiro, que diziam ser um grande traficante, dono de shopping center e tudo mais no seu país. Eu fui o juiz do seu processo, mas como todo verdadeiro grande criminoso, cumpriu sua pena com ótimo comportamento, nunca foi preciso ouvi-lo em audiência e, por isso, na verdade, não posso dizer mesmo que o conheci.
Parênteses necessários: sou juiz da execução penal e, portanto, só atuo na análise dos direitos dos presos. Os direitos que a maior parte das pessoas é contra, isto é, até ser ou ter algum parente preso. Direitos que são apelidados de benefícios justamente para serem concedidos com dificuldade, apesar de estarem nas leis como todo e qualquer direito.
Sei que as pessoas não gostam nem de ouvir falar em criminoso, em preso, em réu ou condenado. Elas logo têm uma ideia de que é um monstro, fazem um paralelo com algum assalto que sofreram ou com alguma imagem datenesca que viram na TV.
Mas, se é necessário, vou logo me defendendo: foi a lei que criou a profissão que exerço, a função em que atuo, a de zelar pelos direitos dos presos. Não sou nenhuma alma caridosa, candidata à beatificação, mas os presos têm seus direitos e, sendo minha função, tento zelar pela correta aplicação da lei.
Não tenho dúvida de que a imagem do preso não ajuda. A imagem de pobre. O pobre agride as pessoas que têm carro, comida, dinheiro para viajar e para colocar os filhos em bons colégios, só pela imagem de pobreza.
Já não se olha mesmo para os pobres, faz-se de conta que se está olhando para o outro lado, não se vê quem pediu esmola, o guardador de carro está importunando, não tem ninguém dormindo com o filho pequeno na calçada, de baixo de uma lona.
Se o pobre for um preso, uma pessoa que se pode chamar, justificado pelas circunstâncias, de um criminoso, aí as coisas são facilitadas. O ódio ajuda a olhar sem medo. Para o preso pobre podemos olhar, não só porque há algemas e grades mostrando, na superfície rasa de nossa consciência, que ele merece aqueles ferros, mas porque ele tem culpa, toda a culpa do mundo, inclusive a de ser pobre.
Raríssimas vezes me senti igual a um condenado. Tanto nossa diferença econômica quanto nossa tristeza, nossas mazelas, estão muito distantes, impossíveis de serem equiparadas. Essa é uma característica do preso, a tristeza profunda. Por traz de grades nunca se sorri com os olhos, o sorriso mais verdadeiro.
Assim, quando vejo trilhões sendo desviados (veja-se que o verbo desviar já é uma covardia contra os pobres que roubam, assaltam), por pessoas que sorriem, sorriem bastante em seus iates, lanchas e carros importados, quando vejo toda essa riqueza ilegal de pessoas absolutamente aceitas na sociedade, invejadas, fotografadas, vejo que realmente eu não conheço criminosos.
Não conheço esse criminoso amado por todos. Não conheço esse criminoso que ninguém quer ver morto e não se encaixa no dizer popular: “bandido bom é bandido morto”. Não conheço esse criminoso.
Se a palavra bandido vem do italiano bandito, significando exilado, banido, esse criminoso que eu não conheço, o criminoso dos trilhões, não pode ser bandido, porque é aceito, querido. Nem precisa de ressocialização, já que as próprias colunas sociais o tornam o mais socializado de todos.
Isso tudo me lembrou o que um criminoso disse certa vez, que não sabe o porquê de se cometer crimes, se há inúmeras maneiras de fazer as mesmas coisas legalmente. Para ele, criminoso bandido, preso, seus colegas de sucesso, aceitos pela sociedade, fazem tudo legalmente. Para mim, juiz das prisões, seus parceiros estão muito distantes.
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*Luis Carlos Valois é juiz de direito, titular da Vara de Execuções Penais do Amazonas, mestre e doutorando em criminologia pela Universidade de São Paulo, membro da Associação de Juízes para Democracia, porta-voz da Law Enforcement Against Prohibition (Associação de Agentes da Lei Contra a Proibição).