Por Renato Santana, Assessoria de Comunicação – Cimi
Lideranças do povo Terena peticionaram no Supremo Tribunal Federal (STF) pedido de nulidade de decisão da 2ª Turma da própria Corte que inutiliza a Portaria Declaratória da Terra Indígena Limão Verde, localizada no município de Aquidauana, Mato Grosso do Sul. Os Terena alegam que não foram chamados para discutir, no processo judiciário, a legitimidade do título de propriedade “em terras que, imemorial e atualmente, são suas e por isso a comunidade é imediatamente afetada pela decisão”, conforme os argumentos da petição. Na decisão da Corte, tutela e marco temporal aparecem como justificativas para a desclassificação da portaria. Na prática, o Judiciário corrobora para a inexistência da comunidade Terena.
A petição chega ao STF num momento de grande turbulência política no país, com 16 políticos ruralistas indiciados pela Suprema Corte com indícios de envolvimento em esquema de corrupção na Petrobras. A própria bancada parlamentar a qual estes deputados e senadores investigados fazem parte tenta, mais uma vez, aprovar a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 215, cuja Comissão Especial, arquivada em dezembro do ano passado, foi reaberta na última terça-feira, 17. Por conta disso, a semana tem sido de intensa mobilização indígena em Brasília. Na foto, indígenas Guarani e Kaiowá comem terra, na frente do STF, em ritual pela demarcação dos território tradicionais no Mato Grosso do Sul.
Se o país aparentemente está parado, a luta por suas terras não. A ação judicial dos interessados em inutilizar a portaria da Terra Indígena Limão Verde percorre as instâncias do Judiciário há alguns meses. Antes de chegar ao STF, passou pela Justiça Federal do Mato Grosso do Sul, onde foi indeferida pela falta de provas e argumentos jurídicos. Os autores apelaram ao Tribunal Regional Federal (TRF) da 3ª Região, e também perderam, inclusive no Recurso Extraordinário. Depois de três reveses, os autores seguiram ao STF, com êxito.
O relator do processo é o ministro Teori Zavaski, para quem os Terena e os advogados do Conselho Indigenista Missionário (Cimi) argumentam que a votação das condicionantes da Terra Indígena Raposa Serra do Sol foi um divisor de águas na análise das demandas de demarcação dos territórios tradicionais. Seja pela tese do marco temporal, ou até mesmo a compreensão de que os indígenas ainda são tutelados. Entendimentos oscilantes, ultrapassados. No artigo 232 da Constituição Federal está escrito: “Os índios, suas comunidades e organizações são partes legítimas para ingressar em juízo em defesa de seus direitos e interesses, intervindo o Ministério Público em todos os atos do processo”.
Na petição, os Terena afirmam que, por outro lado, são excluídas das análises da Corte, em demandas similares, “a existência de um período ditatorial (1946-1988) que impediu, como se percebe do Relatório Figueiredo e do Relatório da Comissão Nacional da Verdade sobre Violações de Direitos Humanos dos Povos Indígenas e dos demais relatos de lideranças indígenas, a supressão das vozes nesse período, a supressão do desejo e dos direitos indígenas, ainda tutelados e impossibilitados de acessar o judiciário e de reclamar direitos e de disputar faticamente a terra”.
Nesse período de quase 40 anos, expulsões forçadas e a criação de reservas indígenas desterritorializaram dezenas de aldeias no Mato Grosso do Sul. Com o passar dos anos, e sobretudo depois da Constituição de 1988, que conferiu aos indígenas direitos indiscutíveis para a demarcação de suas terras tradicionais, a memória dos mais velhos levou os povos a tomar o caminho de volta e retomar as áreas de onde foram retirados. Encontraram nas terras invasores que sempre se mostraram dispostos a enfrentar o litígio posto com violência e manobras jurídicas, apoiados por grupos de latifundiários que hoje se entrincheiram no Executivo, Legislativo e Judiciário.
“Então é claro que em 1988 muitos patrícios não estavam na terra, mas nunca que se esqueceram dela. Tanto é que hoje está aí a luta, os indígenas assassinados, ameaçados de morte, sofrendo atentados. Não passamos por isso para querer o que não é da gente, mesmo que um dia tudo tenha sido”, diz Lindomar Terena.
Efeitos da tutela
Um dos argumentos da decisão do STF que inutiliza a Portaria Declaratória da Terra Indígena Limão Verde, afirma que o “esbulho não pode ser confundido com ocupação passada ou com desocupação forçada, ocorrida no passado. Há de haver, para configuração de esbulho, situação de efetivo conflito possessório que, mesmo iniciado no passado, ainda persista até o marco demarcatório temporal atual (vale dizer, a data da promulgação da Constituição de 1988), conflito que se materializa por circunstâncias de fato ou, pelo menos, por uma controvérsia possessória judicializada”.
Os advogados do Cimi, todavia, questionam: “Como ingressariam os índios com ação judicial se eram tutelados? Quem ingressaria, na ausência de capacidade postulatória dos índios, a FUNAI, que entre seus quadros tinham os mesmos militares que mantinham campos de concentração de indígenas e que calaram os índios por mais de 40 anos ou a União, que era a própria ditadura?”. Justamente pelo fato de os indígenas não serem mais tutelados, as lideranças Terena pedem que a decisão da inutilização da portaria seja revogada e eles ouvidos judicialmente. O secretário Executivo do Cimi, Cleber Buzatto, entende que as “recentes decisões da 2ª Turma do Supremo Tribunal Federal (STF) restringem, de forma violenta e radical, o alcance do conceito de terra tradicionalmente ocupada pelos povos indígenas consignado no Artigo 231 da Constituição brasileira” – leia na íntegra AQUI.
Em linhas gerais, as últimas decisões colocam em prática a redução do direito dos povos indígenas à terra, intenção trabalhada com afinco pelos ruralistas no Congresso Nacional e atendidos pelo executivo, no caso da Portaria 303 da Advocacia-Geral da União (AGU), que segue em vigor, mas que o Palácio do Planalto nega embasar a paralisação das demarcações de terras indígenas no país. Mesmo que os três poderes da República apresentem nítidas divergências no plano político nacional, na questão indígena agentes poderosos de teses anti-indígenas articulam consensos. Nesse sentido, a decisão pela inutilização da Portaria Declaratória da Limão Verde está embasada em argumentos alheios às atualizações constitucionais e legais dos últimos 27 anos.
“Desalinhada da realidade, seja pela falta da presença dos índios no polo passivo para poderem fazer provas e responder às questões processuais, é que a processualidade se encontra defasada”, dizem os advogados do Cimi, que afirmam ser necessária a atualização da prática processual neste caso da Limão Verde e em similares, envolvendo outras terras indígenas. Na petição, os Terena pedem ao ministro Teori Zavascki que caso o pedido de nulidade da decisão não seja acatado, que o processo retorne para as instâncias inferiores, para que os indígenas sejam ouvidos, e que a tese do marco temporal não seja aplicada.
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Imagem: Na foto, indígenas Guarani e Kaiowá comem terra, na frente do STF, em ritual pela demarcação dos território tradicionais no Mato Grosso do Sul.