Cerca de 300 pessoas participaram da cerimônia de entrega do relatório da Comissão da Verdade “Rubens Paiva”, na Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo
Isabel Harari e Rafael Pacheco Marinho, ISA
Na tarde da última quinta feira (12) foi lançado o relatório da Comissão Estadual da Verdade “Rubens Paiva”. O documento, fruto de um trabalho de três anos, é dividido em 26 capítulos temáticos, entre eles um dedicado às violações dos direitos indígenas no Estado de São Paulo e em nível nacional.
O capítulo indígena vem se somar ao já divulgado pela Comissão Nacional da Verdade, em dezembro do ano passado, que apontou a morte de pelo menos 8.350 indígenas decorrentes de políticas de Estado, no período entre 1946 e 1988, e inúmeras violações, como esbulho territorial, remoções forçadas, expulsões, torturas, prisões, maus tratos e desassistência. (Leia o documento na íntegra).
O ex-coordenador da CNV, Pedro Dallari, afirmou que as investigações não começaram com os trabalhos da Comissão e não estão encerradas. “Nós estamos só começando a luta. É o fim do processo de investigação, mas o começo de um processo que vai dar efetividade ao que está escrito”.
Ao todo, foram realizadas 157 audiências públicas com a participação direta de oito mil pessoas. Destas, três foram focadas na temática indígena e contaram com a presença dos jornalistas Memélia Moreira e Edilson Martins, Maria Rita Kehl (coordenadora do grupo de trabalho relativo aos povos indígenas da Comissão Nacional da Verdade), Orlando Villas Boas, Timóteo Popygua, Benedito Prézia, Marcelo Zelic, entre outros.
Ao longo de mais de 60 páginas, o texto revela o caráter racista e “integracionista” da doutrina de segurança nacional e a subordinação dos direitos dos povos indígenas à política desenvolvimentista da época da ditadura militar. “Havia um pensamento etnocêntrico que queria tratar as Terras Indígenas como recursos a serem explorados e colonizados a serviço da extensão da malha ferroviária nacional e a serviço dos projetos desenvolvimentistas”, afirmou o pesquisador da Comissão Estadual, Pádua Fernandes.
Também o pesquisador Danilo Morcelli apontou para o fato de que o Estado de São Paulo é pouco lembrado quando se trata das violações aos direitos indígenas durante a ditadura militar. Ele conta que a inclusão de casos referentes a povos da região (como os Guarani, no litoral, e os Pankararu, que hoje vivem em favelas no Real Parque, na zona sul da capital) foi importante porque lançou um olhar sobre São Paulo. “Até então não tinha ninguém que incentivasse o tema e conversasse sobre isso em nível da legislação”.
O relatório da Comissão Rubens Paiva avança, em relação ao da CNV, ao vincular o crime de genocídio – tipificado no Brasil desde 1956 – ao quadro de violações e ao elevar a não demarcação de terras como grave violação de direitos humanos, uma vez que se traduz em impedimento à reprodução física e cultural dos povos indígenas, e, portanto, etnocídio e genocídio.
O pesquisador Pádua Fernandes criticou o relatório da Comissão Nacional. “A CNV, no Volume I [do Relatório Final], que conta a história do golpe e apresenta as graves violações de direitos humanos não tem genocídio! Por que será? É por que aconteceu com os índios que não pode aparecer? Isso é um absurdo, porque é uma das violações mais graves (…) A pesquisa que está no Volume II [onde se encontra o capítulo indígena] não foi valorizada pela CNV, aquele capítulo está lá, mas está isolado. Não aparece remoção forçada, por exemplo, e não aparece o pessoal da Funai como autor de graves violações de direitos humanos – só o General Geronymo Bandeira de Mello”.
A CEV “Rubens Paiva” listou 188 mortos e desaparecidos oriundos de grupos urbanos. Os levantamentos sobre indígenas e camponeses da CNV apontam 10 mil mortos. Os pesquisadores ressaltam que mesmo que estes números sejam ainda uma estimativa, abaixo da realidade, são úteis para “pintar um quadro” mais realista da amplitude e dos efeitos das violências da ditadura.
À luz da Constituição de 1988, a CEV elenca algumas recomendações como a regularização, proteção, desintrusão e recuperação ambiental das Terras Indígenas atingidas como forma de reparação coletiva pelas violações de direitos. E foram apresentadas como fundamentais à efetivação dos direitos indígenas. A CEV recomenda também a criação de um órgão permanente de investigação das ofensivas contra as comunidades indígenas e seus territórios que deverá ter os próprios indígenas como protagonistas e não será restrita ao período da ditadura militar – abrangendo os espaços temporais de antes da ditadura militar e da contemporaneidade.
Leia aqui o relatório na íntegra
Foto: Entrega do relatório da Comissão Estadual da Verdade na Assembleia Legislativa de SP|Giovanna Fabbri