Cimi Regional Mato Grosso do Sul
Frente à notícia de despejo iminente, mais de 50 famílias Guarani-Kaiowá passaram a clamar desesperadas por justiça no estado do Mato Grosso do Sul (MS). Um pedido da suspensão da liminar de despejo, peticionada pela procuradoria da Funai, encontra-se nas mãos do ministro Ricardo Lewandowski, presidente do Supremo Tribunal Federal (STF). Agora está com o presidente da Corte Suprema o poder de evitar mais uma tragédia anunciada contra os indígenas de Kurusu Ambá, tekoha – lugar onde se é – localizado nas imediações do município de Coronel Sapucaia, no sul do estado do MS, já na fronteira com o Paraguai.
Lembranças de sofrimento, dor, mortes, expulsões forçadas e vidas despedaçadas nas beiras das rodovias pesaram novamente na memória e no coração de cada um dos indígenas de Kurusu Ambá. Segundo o depoimento dos Guarani-Kaiowá, na última sexta-feira, dia 06 de março, sem consultar a Funai, órgão indigenista oficial, delegados da Polícia Federal acompanhados de um grupo de policiais se dirigiram até a terra indígena e anunciaram que o despejo da comunidade estaria marcado para o dia 16 de março, próxima segunda-feira. Os indígenas anunciaram ainda que segundo os próprios policiais, os delegados regressarão à comunidade no dia 12 de março, quinta-feira, com o intuito de convencer os Guarani-Kaiowá a se retirarem por “vontade própria” da terra que ocupam.
Frente a esta situação, o rezador da comunidade, Yvyra’ijá, de 65 anos, declarou: “Eles já sabem qual a nossa posição. Todos sabem. Nós não podemos sair, esta é nossa terra, estamos aqui porque lá onde estávamos morrendo de fome enquanto usavam de nossa terra. Só queremos nosso espaço para plantar mandioca e ter direito a uma vida digna. Não nos moveremos porque não podemos, buscamos apenas o que é nosso, retomamos aqui porque sabemos que aqui é nosso, está lá nos estudos, a Funai já estudou, é só olhar. Retomamos este lugar em especial porque esta é nossa terra mãe, nossa terra tradicional. Respeitamos a Constituição, e só entramos onde é nosso de verdade. É muito duro para mim que sou velho ver as leis de um país que tanto amamos, nos tratando tão mal. Eles vão expulsar de novo nós que somos velhos e nossas crianças? Resistiremos. Resistiremos aqui porque não temos opção. Só sairemos daqui mortos, porque a estrada para nós significará morte também”.
A decisão de despejo foi concedida no final do ano passado e é baseada essencialmente na interpretação referente ao marco temporal. Esta interpretação tendenciosa da Constituição tem sido utilizada pelos ruralistas para tentar restringir a demarcação à luz do que se refere o trecho da própria decisão do julgador: “E, não bastasse, é de se constar também que o reconhecimento do direito dos indígenas a terras que tradicionalmente ocupassem estaria condicionada à sua habitação ao tempo da promulgação da Constituição Federal de 1988, marco temporal condicionante estabelecido pelo STF, por ocasião do julgamento da PET nº 3388 (caso Raposa Serra do Sol), e reafirmado pela 2ª Turma do Pretório Excelso, quando do julgamento do RMS nº 29087/DF, em 16.09.2014.”
O detalhe é que no julgamento da área em questão, a Raposa Serra do Sol, o próprio relator do caso, o ex-ministro do STF, Ayres Britto, definiu que as condicionantes estabelecidas não tinham o caráter vinculante com demais decisões tomadas em relação a outras terras indígenas. Na verdade, enquanto os procedimentos de demarcação das terras indígenas encontram-se paralisados em âmbito nacional desde 2013, os ruralistas têm se movimentado a todo momento para reduzir territórios, em benefício do agronegócio, e alterar os procedimentos demarcatórios por meio de inúmeras proposições legislativas e/ou administrativas, como a PEC 215/2000, a Portaria 303/2012 da Advocacia Geral da União (AGU), o PLP 227/2012 e, mais recentemente, através da incidência em instâncias judiciais às quais têm acesso.
A procuradoria da Funai ingressou com o pedido de suspensão da liminar de despejo no STF e espera-se que justiça seja feita, garantindo aos indígenas um julgamento justo, baseado nos preceitos constitucionais ao invés de ter como base teorias impulsionadas pelo ímpeto do ruralismo.
Hoje, sobre a terra de Kurusu Ambá, existe vida, pintada e simbolizada através do plantio, da casa de reza, da escola, do sorriso das dezenas de crianças que lá vivem falando sua língua e vivendo sua cultura, das práticas tradicionais, dos costumes deste povo que vive na esperança de ter o procedimento demarcatório de sua terra tradicional finalizado.
Somente a demarcação deste território ancestral poderá trazer um fim definitivo ao sofrimento que os acompanha há muitas décadas. É preciso lembrar que nos últimos sete anos, o povo de Kurusu Ambá assistiu a mais de dez de suas lideranças serem assassinadas na luta pela retomada de sua própria terra, e que, em consequência direta da paralisação dos estudos demarcatórios, a mesma comunidade assistiu também há muitas outras mortes, sobretudo de crianças, vitimadas pela fome e pela desnutrição. Este número poderá aumentar caso esta decisão temerária de despejo não seja revertida, uma vez que a comunidade indígena já anunciou que prefere morrer a ter de deixar seu território novamente. Na última ordem de despejo contra uma terra indígena, executada pela Polícia Federal no MS, houve resistência e Oziel Gabriel, jovem Terena, acabou assassinado.
O Conselho Indigenista Missionário (Cimi) em solidariedade ao sofrimento das famílias Kaiowá faz coro ao pedido por um julgamento justo, baseado nos preceitos constitucionais ao invés de interpretações equivocadas. Esta nas mãos do STF garantir que a justiça vigore sobre a força e a vida vigore sobre a morte. Só a Corte Suprema pode impedir que a violência siga sendo a lei mais forte no estado do Mato Grosso do Sul.