Na história, um coelho muito branco admira uma menina negra que usa um laço de fita. Em função desta admiração, o coelho faz de tudo para ficar parecido com a menina. Ao terminar a narrativa, uma de suas alunas disse que “o coelho era louco, porque ser preto é feio”.
G1/Circuito MT
Em várias partes do Brasil, professoras de educação infantil e ensino fundamental têm usado a criatividade para abordar com os seus alunos questões como direitos das mulheres, racismo e exploração infantil. Para tratar dos temas, crianças de entre 5 e 14 anos foram estimuladas a, por exemplo, se expressar durante rodas de conversa e comparar histórias de contos de fadas com a vida real.
Levando para a sala de aula livros e filmes, as professoras conseguiram ouvir a opinião das crianças sobre diversos temas. Os alunos questionaram o porquê de só os príncipes salvarem as princesas em contos de fadas e os motivos de meninos não poderem chorar.e
Embora seja um trabalho gratificante, ele também é cansativo e mostra histórias nem sempre positivas, como casos de alunas vítimas de abuso. Mas o resultado, segundo as professoras, vale a pena, porque é através dele que elas conseguem ajudar os pequenos e pequenas a aprenderem a respeitar os direitos de todos.
O G1 conversou com três professoras do Rio, de São Paulo e do Rio Grande do Sul sobre projetos desenvolvidos durante ou após as aulas em escolas públicas. Conheça abaixo as experiências de cada uma:
DESCONSTRUINDO MITOS
Durante uma aula em uma escola municipal de Duque de Caxias (RJ), a professora de educação infantil Magna Domingues Torres, de 28 anos, leu o livro “Menina bonita do laço de fita”, de Ana Maria Machado, e foi surpreendida com a resposta de seus alunos. Na história, um coelho muito branco admira uma menina negra que usa um laço de fita. Em função desta admiração, o coelho faz de tudo para ficar parecido com a menina.
Ao terminar a narrativa, uma de suas alunas disse que “o coelho era louco, porque ser preto é feio”. Ao ouvir isso, Magna identificou a necessidade de descontruir mitos sociais dentro de sala de aula. “Eu fiquei inquieta e comecei a pensar em como os preconceitos chegam até as crianças e como eu poderia mudar isso”, conta a professora, que atualmente ministra aulas para crianças de 5 a 6 anos na Escola Municipal Todos os Santos.
Aproveitando que uma vez por semana promove rodas de conversa em sua escola, a professora passou a ouvir as crianças sobre temas mais densos. “As rodas desenvolvem o espírito crítico das crianças, é uma orientação pedagógica e isso é muito rico, porque elas falam de suas vivências e nós podemos descontruir os mitos”, explica.
A cada semana era discutido um assunto diferente e a conclusão das conversas virava um cartaz. Após sete semanas, e sete temas, Magna fez uma montagem com as fotos das crianças segurando cartazes que diziam: “meninos e meninas brincam juntos de casinha”, “meninas também adoram jogar bola”, “eu adoro rosa, azul, verde e amarelo”, “meninos também adoram dançar”, “menino brinca com menina” e “amigos dizem ‘te amo'”.
As discussões tiveram o apoio da escola e respostas positivas dos pais. “Eu tenho encontrado bastante aceitação e muito agradecimento. As crianças mudam de postura e levam isso para dentro de casa, o diálogo passa a ser possível”, afirma Magna, que foi convidada pela Secretaria de Educação do Estado do Rio de Janeiro a dar uma palestra para outros professores sobre seu projeto.
Apesar do bom resultado, a professora acredita que o trabalho deve ser multiplicado para que não se perca. “É um trabalho de formiguinha, porque eles passam por mim e depois vão para outra professora ou outra escola”, conta.
Para Magna, é necessário dar aos alunos a oportunidade de pensar e conversar, para que eles possam levar para o imaginário discussões como identidade e igualdade. “Educação é um ato de amor. E eu quero que eles lembrem da escola como aprendizado, felicidade e amor. A educação é mais do que as quatro operações. Passa pelo nosso corpo e pela nossa vida”, define.
RODA DE CONVERSA SÓ COM MENINAS
Após terminar uma de suas aulas, a professora do ensino fundamental Juliana Delmonte da Silva, de 27 anos, foi procurada por um grupo de alunas, de 13 e 14 anos, que desejava conversar longe da presença de meninos. Diante disso, a educadora procurou a direção da Escola Municipal Viana Moog, que fica no bairro Jardim Jaqueline, em São Paulo, e sugeriu reuniões semanais, fora do horário de aula, com grupos de meninas.
Nestes encontros Juliana viu a possibilidade de discutir diversos assuntos do universo feminino sem que as meninas se sentissem envergonhadas. Temas como identidade, igualdade entre gêneros, religião, questionamentos sobre sexualidade e história das mulheres eram discutidos durante a uma hora e meia de atividade.
“É bem difícil trabalhar gênero em sala de aula, tem pouco material, principalmente na questão lúdica”, conta a professora, que passou a “traduzir” o material de suas pesquisas para que suas alunas assimilassem o conteúdo.
Em uma de suas reuniões, Juliana discutiu a violência verbal, física e sexual com as integrantes do grupo, e a realidade que encontrou a surpreendeu. “Eu perguntei para elas se elas já tinham sido agredidas física ou sexualmente e, de um grupo de 20 meninas, apenas duas meninas não tinham sido vítimas dessas violências”, afirmou a professora, que, a partir dessas reuniões, intuiu que precisava de parcerias com psicólogos para atender as alunas.
Com o objetivo de fortalecer as meninas, de modo que elas entendessem seu espaço, que não sofressem mais violências, e que tivessem a liberdade de se comunicar, a educadora promoveu debates e atividades envolvendo os meninos. O resultado agradou a professora, a coordenação e os pais das alunas. “Os pais parabenizam, falam do amadurecimento das filhas e de outras perspectivas. As mães, principalmente, me davam demanda e agradeciam mais”, conta.
Para Juliana, todo o projeto exigiu muito psicologicamente. “É muito cansativo, muito intenso. Mas no período em que eu trabalhei neste projeto, percebi que as crianças têm outra profundidade de entendimento, mas elas conseguem, desde muito cedo, ter uma compreensão de mundo”, conta Juliana.
CONTOS DE FADAS
Pensando em apresentar diferentes versões de uma mesma história para seus alunos, uma professora de Uruguaiana (RS), que prefere não se identificar, desenvolveu um projeto para discutir questões sociais com alunos do ensino fundamental.
Em uma das aulas, S.P. leu o conto de fadas “A bela adormecida”, na versão Disney. Em outra aula, as crianças assistiram ao filme “Malévola”. Na terceira, foi feito um comparativo entre as duas histórias e um dos alunos levantou a questão do beijo, que no filme é dado pela fada madrinha e, no conto de fadas, pelo príncipe, enquanto ela dormia.
A partir dessa discussão, a professora teve a ideia de montar um gráfico com as opiniões das crianças, que foram surpreendentes. “As crianças relacionaram e deram exemplos como ‘será que o amor da mãe da princesa também não era verdadeiro, tinha que ser só o príncipe?’, ‘por que só os homens podem salvar as mulheres?’, ‘é falta de respeito beijar uma guria sem ela dizer que quer'”, lembrou ela.
A educadora aproveitou os comentários das crianças para falar sobre abuso infantil. “Expliquei que, se isso acontecesse com eles, ou com alguém que eles conhecessem, deveriam contar para um adulto em quem eles confiassem, pois não era uma coisa normal, assim como era no livro”, conta. Se for possível “salvar uma criança de sofrer abuso ou uma adulta de sofrer com relações abusivas”, diz ela, o trabalho de anos já terá valido a pena.
Para incluir no currículo a questão de gênero, S.P. mostrou o filme “Frozen”. “[O filme mostra] que nem sempre o amor verdadeiro da nossa vida está centrado apenas na imagem de um homem, príncipe, mas sim de uma irmã, mãe ou amiga. Nós podemos amar verdadeiramente qualquer pessoa e não apenas alguém em um relacionamento amoroso”, explica.
A professora acredita que as crianças têm capacidade de entender e refletir sobre qualquer assunto, desde que trabalhado em uma linguagem apropriada e que, para isso, não se pode subestimar as crianças. “As crianças devem ser tratadas como seres pensantes, e o professor que nega isso está muito enganado”, afirmou a docente gaúcha.
Fonte: G1