Marcela Belchior, Adital
Camponeses, povos indígenas e tradicionais estão ameaçados em sua própria existência por um Projeto de Lei (PL) que viola direitos fundamentais dessa população, através da falta de acesso aos seus conhecimentos e à restrição do direito à repartição de benefícios oriundos da exploração econômica desses saberes. A matéria nº 7735/2014 (atual Projeto de Lei Complementar nº 02/2015, que tramita no Senado Federal), representa, para os movimentos sociais, um retrocesso na convivência com os recursos naturais e entre comunidades locais. Outro dado grave: a proposta é de autoria do próprio governo federal, por meio do Ministério do Meio Ambiente (MMA).
O projeto versa sobre o acesso ao patrimônio genético, proteção e acesso ao conhecimento tradicional associado e sobre a repartição de benefícios para conservação e uso sustentável da biodiversidade. Esses recursos genéticos são encontrados em animais, vegetais ou micro-organismos, como em óleos, resinas e tecidos encontrados em florestas e outros ambientes naturais. Já os recursos genéticos da agrobiodiversidade estão contidos em espécies agrícolas e pastoris. Comunidades de indígenas, quilombolas, ribeirinhos e agricultores familiares, entre outras, desenvolvem e conservam, por décadas ou séculos, informações e práticas sobre o uso desses recursos.
Porém, segundo representantes de povos e comunidades, além de vários setores dos movimentos sociais, com o suposto objetivo de regulamentar o acesso aos recursos genéticos e aos conhecimentos tradicionais a eles associados — e atendendo aos interesses dos setores farmacêuticos, cosméticos e do agronegócio —, o projeto expropria a biodiversidade e os conhecimentos seculares dessas comunidades. Ameaça ainda programas estruturantes para a segurança e soberania alimentares.
Nesse sentido, a proposta viola a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), a Convenção da Diversidade Biológica (CDB), o Tratado Internacional dos Recursos Fitogenéticos para a Alimentação e Agricultura (TIRFAA), da Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura (FAO), e a própria Constituição Federal.
“É inacreditável que, justamente, o Ministério que deveria defender o meio ambiente foi quem elaborou este PL, que nada mais é que a própria legalização da biopirataria no Brasil”, observa Marciano Toledo da Silva, membro da Coordenação Nacional do Movimento dos Pequenos Agricultores (MPA). “Ele destrói a biodiversidade relacionada à fauna e à flora, mas também ameaça a própria diversidade dos povos e comunidades do país. Ou seja, tem amplo potencial para destruir as duas maiores riquezas que o Brasil possui. Além disso, ele é inconstitucional”, acrescenta o ativista.
Exclusão no processo
Os povos atingidos criticam também o fato de terem sido excluídos do processo de elaboração do projeto e reagem por meio da divulgação de informações sobre a discussão, reuniões, mobilizações e debates em vários setores da sociedade brasileira. No último dia 27 de fevereiro, eles realizaram uma entrevista coletiva diante do próprio Ministério, em Brasília, capital federal. No mesmo dia, reuniram-se com representantes dos poderes Executivo e Legislativo, quando entregaram um documento com sua posição sobre o projeto (eles criticam 17 pontos da proposta), cuja aprovação pela Câmara dos Deputados, no último dia 10 de fevereiro, foi comemorada por ruralistas e industriais.
“Denunciamos o amplo favorecimento dos setores farmacêutico, de cosméticos e do agronegócio (principalmente sementeiros), a ponto de ameaçar a biodiversidade, os conhecimentos tradicionais associados e programas estruturantes para a segurança e soberania alimentares”, afirma o texto entregue ao MMA.
As mobilizações que questionam o projeto contam com a participação de um conjunto de 80 movimentos sociais, organizações e redes da sociedade civil de todo Brasil, entre eles a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), Conselho Nacional dos Seringueiros (CNS), Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), Movimento dos Pequenos Agricultores (MPA) e Articulação Nacional de Agroecologia (ANA), dentre outras.
O interesse industrial
Tanto o patrimônio genético quanto os conhecimentos dos povos tradicionais são úteis para pesquisas e produtos da indústria de remédios, sementes, gêneros alimentícios, cosméticos e produtos de higiene. Por isso, podem valer milhões em investimentos nacionais e internacionais. O Brasil é a nação com maior biodiversidade do mundo e abriga milhares de comunidades indígenas e tradicionais, por isso é alvo histórico de ações ilegais de biopirataria, crime que a lei deveria coibir e punir.
Acesse Projeto de Lei aqui.
Leia documento dos movimentos sociais que contesta a proposta.
Foto: Projeto de exploração da biodiversidade favorece indústria e ameaça povos tradicionais. Foto: Reprodução.