‘Hoje o problema não são os caras de capuz (Ku Klux Klan), mas o pessoal de terno’, sustenta o sociólogo Eduardo Bonilla-Silva, da Duke University
Por Dorrit Harazim, em O Globo
Um quarto de século atrás o escritor negro James Baldwin apontou para a ferida. “Os americanos não se dão conta de que uma guerra entre irmãos travada nas mesmas cidades, no mesmo chão, não é uma guerra racial. É uma guerra civil”, escreveu o autor do seminal “Giovanni”.
Paul Bastean, dono do campo de tiro Ultime Defense Firing Range, situado no entorno da inflamada Ferguson, não tem reclamado. Até duas semanas atrás vendia uma média de duas a três armas por dia. A partir do anúncio do não indiciamento do policial branco Darren Wilson, que em agosto baleou à morte o jovem negro Michael Brown, Bastean tem vendido de 20 a 30 armas de fogo por dia. Sim, por dia. Tudo dentro da lei.
Enquanto isso vão se empilhando as incongruências, falhas, esquisitices e interpretações conspiratórias da decisão judicial.
Embora o caso estivesse sendo analisado pelo grand jury há meses, só agora se descobriu que o “legista” Shawn Parcells, autor da hipótese de que Michael estava de braço erguido ao ser acertado por um dos 12 tiros, é um renomado farsante. A família da vítima o contratara de boa-fé por não confiar plenamente na autópsia efetuada pelas autoridades locais. Na realidade o espetaculoso Parcells, tantas vezes visto na TV há décadas, se faz passar por médico forense.
O circo da mídia montado em Ferguson também saiu dos trilhos quando dois tarimbados repórteres do “New York Times” tuitaram para o mundo o endereço do policial mais vilipendiado do momento. A afoiteza e a perda de cautela antes de disparar o enésimo tuíte do dia, cada vez mais frequente, poderiam ter terminado mal. Escondido em casa há três meses e meio, Darren Wilson aparava a grama do jardim ao ser informado que seu paradeiro circulava na internet. Tratou de sumir com a roupa do corpo.
Incompreensível, sobretudo, foi o sumiço da Guarda Nacional na noite do anúncio da sentença. A unidade que fora enviada a Ferguson para domar a previsível catarse saiu às ruas somente no dia seguinte, com a terra já arrasada.
Como outras comunidades urbanas e multirraciais do país, a Ferguson de antes do caso vivia em combustão latente: uma população 70% negra, onde o prefeito, o chefe de polícia, cinco dos seis conselheiros municipais e 50 dos 53 policiais são brancos, tem pouco a perder.
Um dado citado pelo colunista americano Nicholas Kristoff aponta para o tamanho da encrenca: a desigualdade socioeconômica entre brancos e negros nos Estados Unidos de hoje é maior do que a que existia na África do Sul dos tempos do apartheid.
“Hoje o problema não são os caras de capuz (Ku Klux Klan), mas o pessoal de terno”, sustenta o sociólogo Eduardo Bonilla-Silva, da Duke University, que há anos pesquisa o que ele chama de racismo sem racistas. “Quanto mais nos iludirmos pensando que o problema está restrito ao KKK, aos radicais do Tea Party e ao Partido Republicano, menor será nossa compreensão de que o processo é coletivo. Somos todos parte do mesmo jogo”, diz ele.
Um teste realizado por professores da Universidade de Chicago com o Massachusetts Institute of Technology (MIT) lhe dá razão. Em resposta a 1.300 ofertas de emprego reais, os pesquisadores elaboraram cinco mil currículos fictícios e os despacharam para as agências de recrutamento. As qualificações dos postulantes inventados eram idênticas. A diferença estava nos prenomes. Uns tinham características propositalmente anglófilas como “Brendan”, outros tinham sonoridade tradicionalmente negra, como “Jamal”.
Os “Brendan” receberam o dobro de convocações para entrevistas. Conclusão dos autores da pesquisa: os selecionadores que descartaram os “Jamal” sequer perceberam que sua escolha teve motivação racial. “E não estariam mentindo. Apenas estavam errados”, resumiu um dos analistas.
Para os adeptos da diferença entre um racista que assume abertamente sua posição e alguém que pode não ter consciência de seus preconceitos raciais, nem da natureza de suas reações, o depoimento do policial Darren Wilson é exemplar. Quase caricatural, não fosse tão assustador.
Wilson relata que “a fisionomia de Brown exprimia uma agressividade intensa, como a de um demônio”, quando o jovem se aproximou dele. Sentado dentro da viatura policial e agredido pelo jovem através da janela aberta, o policial armado descreveu seu pânico: “Me senti como um menino de 5 anos atracado a um Hulk Hogan.”
Mais adiante, quando Michael já fora baleado duas vezes, sangrava e se distanciava do policial, novo pânico do policial armado. “Ele parou, eu também parei. Foi então que ele deu meia-volta. Ordenei-lhe várias vezes que se deitasse no chão, mas ele começou a correr na minha direção.” Wilson, então, disparou mais vezes contra Michael. “Seu corpo deu uma sacudida, cambaleou, mas nada disso o impediu de continuar a avançar.” Wilson acertou outro tiro em Michael. “A essa altura ele pareceu tomar fôlego para conseguir atravessar meus disparos, parecia tomado de fúria por eu estar atirando… Ele me mataria se me alcançasse…”
Na versão do policial, tudo acabou quando Michael chegou a menos de 2,5 metros dele e inclinou-se para a frente, em sua direção. “Vi sua cabeça e disparei… Não sei quantas vezes… Quando seu rosto embranqueceu e a expressão agressiva sumiu, eu soube que a ameaça tinha sido contida.”
Apesar de descrever o jovem negro desarmado como um predador quase demoníaco, um Hulk humano do mal, capaz de atravessar uma fuzilaria sem se machucar, Darrel Wilson não se considera racista. Amparado pelo princípio da razoabilidade, pedra fundamental do direito anglo-americano, convenceu os jurados de que teve motivos razoáveis para usar de força letal.
O preconceito lhe distorceu o raciocínio. O medo, se verdadeiro, o fez matar, por sentir que corria perigo mortal. Jamais se saberá o tamanho do medo do garoto negro de 18 anos diante de um policial branco disposto a matá-lo. Os dois tinham exatamente a mesma altura. Michael Brown era apenas mais corpulento. E negro.
Dorrit Harazim é jornalista