por Doris Wieser, em Buala
Paulina Chiziane (Manjacaze, 1955) é certamente uma das mais eminentes figuras da atual literatura moçambicana, e não só. Ponto de referência incontornável para as lutas feministas desse país, uma mulher que abordou na sua literatura, com intensidade inusitada, aspetos especialmente conflituosos do tecido cultural africano, trabalhando temas de que ninguém quer ouvir falar ou debater, nem no espaço privado, menos ainda na esfera pública e política. São temas silenciados, tabus, assuntos particularmente dolorosos, pendentes, irresolutos, como a guerra civil moçambicana (Ventos do Apocalipse, 1993), os direitos da mulher no sistema poligâmico (Balada de Amor ao Vento, 1990, e Niketche, 2002), a magia negra (O Sétimo Juramento, 2000), o curandeirismo tradicional (Por Quem Vibram os Tambores do Além, 2013), o racismo e outras formas de discriminação (O Alegre Canto da Perdiz, 2008).
Paulina Chiziane tem vindo a contribuir largamente para a (re)interpretação da realidade moçambicana e é-lhe ainda devido o seu verdadeiro reconhecimento. Conseguiu arquitetar uma voz muito particular, uma voz feminina num contexto amplamente patriarcal, que nasce não de quaisquer pretensões artísticas, mas de uma profunda necessidade de narrar Moçambique.
O seu estilo provem-lhe, antes de mais, da sua forte paixão pela escrita, e é caracterizado por uma prosa borbulhante, rica em vivências, contada por alguém que testemunhou com profunda empatia as encruzilhadas da história recente do país. Alguém para quem os discursos teóricos, as modas literárias ou as tradições da escrita são secundárias, mas que possui, afinal, uma intuição certeira para a beleza literária, tanto do ponto de vista estético como do conteúdo dos seus livros. A narrativa de Paulina Chiziane nasce diretamente da vida com um vigor cativante. Os seus livros levaram-me a múltiplas viagens interiores, viagens à dor, à culpa, à crueldade, à cobiça, à luxúria, ao amor, à compaixão, ao desespero e a outros sentimentos perturbadores, além de me terem ajudado a compreender alguns elementos cruciais da complexidade do tecido social e cultural de Moçambique.
Durante a minha viagem de investigação a Moçambique – financiada pela Fundação Fritz Thyssen – falei com a escritora em Maputo, na cafetaria da Associação dos Escritores Moçambicanos (AEMO) a 4 de Agosto 2014.
Na sua obra aparecem personagens de diferentes classes socias e diferentes cores de pele. O Alegre Canto da Perdiz é exemplar neste sentido. Qual era a imagem estereotípica dos portugueses no tempo colonial e como mudou esta imagem desde então?
São várias imagens. O povo olha para o português como alguém superior, no sentido de ter acesso a conhecimento científico e a outras formas do saber. Depois há a imagem do opressor. Há um medo terrível dos portugueses. A repressão colonial foi muito dura. Há medo sobretudo nos mais velhos. Por exemplo, nos livros de escola, quando eu estudei no tempo colonial, o branco era representado com chapéu, roupa de safari e uma arma, todo orgulhoso. E o negro era representado com uma saia de peles, sempre uma imagem caricata. Não me lembro de ter visto imagens bonitas de africanos nos livros do tempo colonial. Os indivíduos da raça negra eram sempre retratados de maneira a demostrar inferioridade. E quando se fala do confronto entre raças há ainda uma imagem que circula, dos pretos à volta de uma fogueira, e um grande pote com um branco de chapéu e uma arma lá dentro para mostrar que os negros eram canibais.
Tenho hoje 59 anos, quando a independência aconteceu eu tinha 19. E até aos 15 ou 16 anos eu convivia com estas imagens. Sobretudo nas pessoas da minha geração e das mais velhas existem estas quatro imagens típicas. Frequentei uma escola primária católica e, quando comecei a ir à igreja, Deus era branco e o diabo era preto. Com o tempo isso foi desaparecendo, mas ao mesmo tempo continua. Os anjos de Deus são brancos até hoje, anjos pretos ainda não há.
Que opina dos portugueses recém-chegados a Moçambique por causa da crise em Portugal? São bem-vindos?
É uma relação de desconfiança. Estamos juntos, mas ninguém sabe o que é que o outro vai fazer. Portanto, os portugueses que regressam não tiveram o convívio com a linguagem de libertação moçambicana nem com o processo. Muitos voltam ainda com pensamentos antigos. São poucos os que vêm de mente aberta. E o povo reage com desconfiança.
Na época colonial existia a classe dos assimilados, que abdicavam da cultura africana para obter um bilhete de identidade e uma série de privilégios. Hoje em dia, os filhos desses assimilados ainda formam uma classe social específica ou esta questão já não se coloca?
Tem alguma coisa a ver. Os filhos dos assimilados são aqueles que tiveram acesso ao ensino. Mesmo no tempo colonial, as poucas pessoas que tiveram formação em enfermagem, que trabalharam nos serviços públicos básicos, e os pouquíssimos médicos que apareceram, são filhos de assimilados. E a independência precisou de pessoas com um novo saber. Então, são os filhos dos assimilados que assumiram a maior parte dos cargos públicos de poder. Mas há também um grosso da população que saiu do vazio e que foi estudando, por isso hoje esta questão está um pouco diluída, mas é visível ainda. O comportamento de um filho de um assimilado é diferente do comportamento de filhos de uma pessoa comum.
E os mestiços estão na mesma posição social que os assimilados ou é outra classe social?
É outra classe ainda. E por mim deveria haver este tipo de estudos. Enquanto os negros lutavam pela independência, os mulatos ficaram numa situação não muito clara, porque eles tinham o privilégio dos pais, por isso para eles não fazia muita diferença a independência. Era uma situação difícil e continua a ser. Vou falar da Zambézia, a província com maior miscigenação. Ali foi onde eu aprendi que o mestiço ou o mulato é um individuo sempre numa situação de desconforto, sempre à busca de uma identidade. Quando está com os negros, é tratado de uma maneira; quando está como os brancos, é tratado de outra maneira. Ele sozinho tem de criar o seu próprio mundo. Criam-se assim grupos de mestiços. Há casos de filhos de negras com brancos que se dissociam da mãe negra e se juntam ao seu grupo mestiço. A maior parte dessas pessoas mestiças nasce de uma violação ou de uma relação adúltera, nunca de uma relação socialmente aceitável. Isso, perante os brancos, cria uma certa discriminação, e perante os negros também. O mulato é um indivíduo que vive um dilema de identidade. Na Zambézia, como são muitos, começam a criar a sua própria identidade. Mas sempre oscila entre o preto e o branco. É muito fácil ver isso na Zambézia, aqui em Maputo nem tanto. Às vezes um mulato quando está diante de um branco julga-se branco, mas quando está necessitado já se sente filho de um negro. Quando está ao lado dos brancos, sente-se inferior, mas sente que está ao lado do poder. Nunca houve estudos sobre a mestiçagem em Moçambique, mas eu acho que valeria a pena. A identidade é totalmente influenciada por estes dois polos, preto e branco.
Hoje qual a identidade de um mulato? Está a puxar mais para cima ou mais para baixo?
De uma maneira geral em Moçambique, a situação dos mulatos é muito complicada. Está acima do negro.
Em O Alegre Canto da Perdiz, Delfina deseja engravidar de um branco para ter filhos mulatos,objetivo que de fato consegue. Depois discrimina os seus filhos negros e dá preferência aos seus filhos mulatos. Hoje em dia ainda há mulheres que pensam e agem desta maneira?
A descolonização é um processo longo. Leva muito tempo. E hoje, neste país independente, as mulheres negras casadas com brancos, apesar de viverem uma situação de discriminação, são economicamente mais estáveis. A situação continua. Eu escrevi O Alegre Canto da Perdiz na Zambézia por uma razão muito simples. Eu tinha uma vizinha que era mulata ou mestiça (eu não diferencio estes termos). E havia uma mulher que varria e cozinhava na casa dela. Eu pensei que fosse empregada doméstica. Vim a saber pouco depois que não era empregada, mas irmã. E quem dava ordens na casa para as coisas funcionarem era a mãe, a mãe da mulata e da preta. A mulata quando volta deve ter a comida sempre pronta, a casa sempre limpa porque a filha negra tem de fazer este trabalho. Criei assim uma relação com a família. E a senhora preta, a mãe das duas, dizia: “Eu estou bem, tenho boas casas que o meu marido deixou, o meu marido branco. Tenho uma boa situação financeira, por causa do pai desta. Agora o pai da outra, o que é que me deu? Nada. Consigo comer e educar os filhos graças ao dinheiro que recebo do pai desta.” Portanto é a mãe que fica no meio que faz a distinção rácica. A mãe negra consegue ser mais racista do que os próprios filhos. Eu conheci esta família no ano 2001 quando fui para a Zambézia trabalhar. Para mim foi surpreendente porque até àquela altura eu considerava o racismo como defeito do branco, mas o racismo também pode ser promovido por um negro. Definitivamente, o que nós chamamos racismo não é mais do que a busca de melhores condições de vida.
Se houvesse igualdade no homem preto e no homem branco, esta mulher já não agiria desta maneira e não trataria os filhos assim. Nas províncias de Zambézia e Nampula, encontramos vários casos destes até hoje. Aqui em Maputo não é muito visível, é muito difuso, mas há. Mulher casada com branco da Ásia, África do Sul com assistência médica em outro lugar, com carro, tem acesso aos benefícios do marido.
De modo geral, na nossa época pós-colonial, catalogamosos antigos colonizadores como os culpados e os colonizados como vítimas. Mas em O Alegre Canto da Perdiz, os negros não são retratados como puras vítimas do sistema colonial, mas também como autores de violência e injustiça. Aparentemente esta distinção entre culpados e vítimas não é tão simples.
Não, não é tão simples.O projeto colonial para se desenvolver precisou de ajuda dos negros. E os negros fizeram a sua parte. (Não estou muito bem familiarizada com a história de Moçambique e da África. Não posso mencionar nem dados nem épocas exatos). Um dos maiores esclavagistas de Moçambique vivia na província de Niassa e era negro, o rei Mataca.1 Ele depois tornou-se muçulmano e teve cerca de trezentas mulheres. Hoje, se fores à província de Niassa, que é uma província enorme (diz-se que tem a extensão de toda a França), podes andar cem quilómetros e não encontras ninguém. E eu procurei saber porquê. O que aconteceu foi realmente o movimento esclavagista liderado por este rei, que armou todos os soldados e pôs-se a vender a sua população. Há uns que fogem para não serem apanhados, uns são apanhados, e uma província inteira ficou despovoada. Não foram os portugueses que fizeram isto. Este homem era muito poderoso. Ele vendia os escravos aos ingleses, aos holandeses, aos portugueses… Estabeleceu-se como um grande esclavagista. Na província de Nampula também tivemos um caso, não sei o nome dele mas foi um individuo conhecido como um dos maiores esclavagistas. Estes processos têm os dois lados.
As personagens do romance O Alegre Canto da Perdiz referem-se à Zambézia e aos Montes Namuli como o berço da humanidade e, por conseguinte, como o ponto de referência da sua identidade. Parece-me que ainda não têm uma noção da “moçambicanidade”, de uma possível identidade nacional moçambicana, só de uma identidade regional, zambeziana. Acha que hoje em dia há uma identidade cultural moçambicana?
Eu acho que existe. Nós estamos num espaço geográfico desenhado artificialmente e temos um elo comum, a história da escravatura, a colonização feita pelos portugueses, falamos a mesma língua nacional, estamos comunicados. E essas guerras que houve, tanto a guerra da libertação nacional como a guerra civil, tiveram coisas muito más, mas também coisas muito boas, como esta mistura entre as culturas. Houve sempre um movimento de norte a sul e hoje a gente vai a qualquer canto do País e encontramos gente de todas as origens. As pessoas começam a conviver juntas. E isso para mim é o início do processo de construção de uma identidade que levará talvez mil anos, ou menos. É um processo muito longo.
Então as guerras tiveram o efeito positivo de os moçambicanos se ficarem a conhecer por causa das migrações forçadas…
Exatamente.
Em Niketche apercebe-se muito bem que o Sul de Moçambique é marcado por estruturas patriarcais e o Norte por matriarcais. Em que medida as estruturas patriarcais, que são muito mais poderosas a nível global, se sobrepõem às matriarcais?
A cultura patriarcal mais forte é o islamismo e por isso está muito presente no Norte de Moçambique. Ali o matriarcado não sobrevive. Depois, o Estado tem leis patriarcais herdadas de um sistema europeu judaico-cristão. Outro fator é que em Moçambique as grandes lideranças vêm do Sul que é tradicionalmente patriarcal por excelência. Estas pequenas comunidades matriarcais estão a correr risco de desaparecimento. Ainda se encontra o modelo perfeito do matriarcado, mas é raro. Todos eles estão a ser penetrados pelo islamismo, pelo Estado, pelo cristianismo e pelas culturas do Sul. Como se trata de poder, os homens seguram-se a isso e dominam.
Na semana passada falei, em Pemba, com um homem de negócios do Quénia. Ele viaja regularmente entre o Quénia e Moçambique e disse-me: “As mulheres macua são muito agressivas.” Tive a impressão de que ele se sentia de certa forma ameaçado pelas estruturas matriarcais.
Os homens não estão preparados. Uma mulher macua, quando não está satisfeita na cama, ela reage. E a comunidade à volta dá-lhe razão porque ela tem direito ao amor e ao sexo. Toda esta gente do patriarcado não entende isto. Essa para mim foi a marca mais forte. O desejo mais profundo de uma mulher do matriarcado é respeitado, por exemplo quando ela diz: “Eu gosto de ti, eu quero casar contigo.” A mulher vai à guerra, vai buscar um homem, enquanto que no patriarcado a mulher tem de esperar que apareça um qualquer.
Eu sou do Sul. A educação que tive aqui é esta: uma mulher não pode dizer o que pensa ou o que sente, tem de obedecer a tudo o que o homem faz. As macuas não. Elas existem, elas reivindicam. Deve ser esta questão que o queniano sentiu.
Em certo sentido a cultura macua é muito moderna. No meu país, na Alemanha, as mulheres hoje têm pleno direito a exigir o seu prazer sexual, mas isto só aconteceu depois de muitos anos de luta feminista…
A outra questão importante é o próprio processo de colonização. A colonização portuguesa considerou os povos africanos sem cultura. Quiseram impor a sua própria cultura julgando-a superior. Mas entre os povos africanos já havia estes casos muito avançados. Às vezes digo: nós abraçámos o cristianismo e muitos valores do colonialismo cegamente. Hoje estamos em busca de um paraíso que já tínhamos e perdemos. Por exemplo, mesmo na nossa região bantu do Sul, onde o homem é muito poderoso, uma mulher quando se casa vai viver para casa do marido, mas nunca perde o seu nome e a sua identidade. No cristianismo não, a mulher casa e tem de adotar o nome do marido. E a justificação é que ela, como entidade individual, traz uma história e a proteção dos seus antepassados. Se ela perder o nome da sua própria família, vai perder a proteção dos antepassados e a família não será feliz.
De acordo com a nossa tradição bantu, uma mulher deve ser tratada pelo nome dos seus antepassados. Vieram os portugueses e disseram que isso era atrasado. E os assimilados absorveram este pensamento religioso como valor. Hoje as mulheres moçambicanas exigem direitos de coisas que já tinham e perderam por receber um sistema sem analisar em profundidade as coisas. Claro, tratando-se de uma situação colonial não tínhamos muita chance. Mas as culturas africanas têm muito a dar ainda para o desenvolvimento do mundo. Para mim que vivi entre as macuas, quando olho para as lutas feministas do mundo, eu digo-me “Mas nós tínhamos isso”. E os movimentos feministas, mesmo em Moçambique, quando lutam pelos direitos da mulher usam o modelo europeu, e não vão buscar experiencias práticas provenientes da nossa própria cultura. Não diria que nós temos feminismo, mas temos uma tradição, várias tradições. Mesmo no patriarcado mais severo a mulher tem alguns direitos. Na Europa a mulher não era nada. O cristianismo deles chegou aqui e derrubou tudo, não reconhece a mulher como coisa nenhuma.
Já falamos do fato de a guerra civil contribuir para a formação de uma identidade nacional. Pensemos em Ventos do Apocalipse. As mencionadas migrações, as pessoas que fugiram e abandonaram a terra com a qual mantêm ligações ancestrais, não levaram a problemas a nível espiritual? Ou seja, nas crenças africanas os espíritos habitam a terra em que nasceram. E neste sentido as migrações não causaram certo distúrbio espiritual?
É muito interessante esta pergunta. Não vou dar uma resposta muito certa. Esta é uma outra área de estudo. Voltemos um pouco atrás, ao tempo das guerras tribais. Houve muitas lutas entre os zulus, os ndaus, os rongas, os changanas.2 Hoje em dia, as pessoas um pouco mais velhas que eu que dizem que têm espíritos, quando entram em transe, falam zulu que é do Sul, e falam ndau que é do Centro, e falam outras línguas. Quando entram em transe, falam as línguas das pessoas que morreram durante as guerras tribais. Há uma dinâmica que se criou por causa das guerras antigas. Hoje, com estas guerras e estas migrações, começam a existir fenómenos também interessantes. Segundo me parece, este mundo também é dinâmico. A entrada de uns e outros cria conflitos mas depois estabelece-se uma relação de harmonia. Há dias ouvi falar de um senhor português que entrou em transe e falou maconde do Norte de Moçambique. É um homem que participou na guerra, e sempre viveu com o sentimento de remorso de ter feito alguma coisa que não devia ter feito durante a guerra. E de repente ele enlouquece e começa a falar maconde como um maconde de Cabo Delgado. Os médicos dão uma explicação, os próprios macondes dão outra. Para o médico há todo um clima que favoreceu aquela situação, mas para os macondes é o regresso de gente do passado, dos espíritos. Mesmo neste mundo existe dinâmica. Uma conhecida minha que já faleceu, quando entrava em transe falava todas estas línguas, nguni, zulu, e era daqui. Portanto há ruturas, mas mais tarde isso vai criar uma dinâmica, uma nova compreensão da vida.
Já ouvi falar várias vezes que curandeiros ou curandeiras quando entram em transe conseguem falar outras línguas e pergunto-me se são línguas que ouviam, por exemplo na infância, mas nunca aprenderam a falar ativamente, e, portanto o cérebro tem um tipo de memória destas línguas que num estado sóbrio e acordado não é acessível para a pessoa, mas em estado de transe sim. Não sei se esta explicação dá conta deste fenómeno.
Acho que não. Eu entendo as coisas da seguinte maneira. Todo o trabalho científico, as descobertas científicas que se fizeram até hoje, segundo os próprios cientistas, fazem parte de dez por cento da capacidade cerebral. O mundo é um infinito e o ser humano com estes dez por cento ainda não alcançou a dimensão do infinito. Há muita coisa ainda que tem de se descobrir. O meu ponto de vista é que é preciso haver uma abertura maior para fazer uma pesquisa mais profunda sobre estes fenómenos porque afetam muitas pessoas. Por exemplo, aqui em Moçambique, quando este tipo de coisas acontece, o primeiro recurso é a psiquiatria que funciona num modelo racional e europeu. As pessoas são tratadas com remédios que são bons, mas há casos em que o remédio não resolve e é preciso uma outra terapia. O conhecimento ocidental nem sempre resulta.
Durante a guerra civil a minha mãe teve um trastorno psicológico sério, causado pela morte violenta de um irmão, e levámo-la à psiquiatria, ela fez o tratamento psiquiátrico, mas o fenómeno não passou. Uma médica urbana tomava conta dela. A minha mãe melhorou, mas não ficou bem. A psicoterapia que se tentou fazer também não resultou e fomos transferidos para um psiquiatra zambiano. O psiquiatra começou a fazer perguntas sobre as origens e as crenças da minha mãe. Fomos explicando que ela vem de uma tradição forte. O médico disse: “Para a vossa mãe ficar melhor, é preciso leva-la de novo às raízes da sua tradição. Porque é uma linguagem que ela entende e a partir daí a reação dela vai ser diferente.” Agora um psicólogo, que normalmente é uma menina muito bem vestida, que fala português, que usa sapatos de salto alto, ou um homem bem vestido, não vai ao subconsciente dela. Tem de ser um curandeiro, igual àquele que ela conheceu na infância, e tem de fazer um ritual que está muito mais próximo dela do que aquilo que nós fazemos. O meu pai não queria, mas acabou aceitando. Trouxe o curandeiro a casa. A minha mãe olhou para o curandeiro que começou a falar, a fazer uma e outra coisa. Foi surpreendente a reação dela. Ela disse sim, reconheço, é o espírito da mãe da minha mãe e começa a comunicar com o espírito. A curandeira, que lida com estes assuntos e sabe perfeitamente como fazer o seu trabalho, fez o papel da mãe da mãe dela que lhe trazia paz, tranquilidade, a bênção, todas estas coisas boas. Uma semana depois a minha mãe estava muito bem.
Então, analisando racionalmente o papel da curandeira, ela não fez nada mais, nada menos do que situar a pessoa no seu mundo com os sinais que ela compreende e que a ajudaram tranquilamente a ultrapassar o problema. Quando os europeus chegaram com a supremacia do seu saber cultural, para eles a medicina era uma questão mecânica: ele está doente, tira o dente ou põe um dente postiço e já está. Quando começam a ver que a máquina e o mecânico falham, então vão buscar uma figura chamada psicólogo. O psicólogo é aquele que estuda segundo os padrões de Europa, sem reconhecer que há uma série de outros fenómenos do ambiente que fazem com que o africano seja o que ele é. Com isso eu quero dizer que para um desenvolvimento harmonioso de uma cultura tanto africana como europeia, há uma série de saberes que precisam de ser resgatados e estudados. O que hoje se considera irracional, quem sabe se amanhã será considerado racional. O importante é caminhar ao encontro da verdade das coisas.
Outra questão interessantíssima é a seguinte: quando os europeus chegam com a sua grandeza, dizem logo, os africanos não conhecem Deus, não têm igreja. Têm de ter uma Igreja grande para Deus vir e rezar. Eles fazem cultos rudimentares e primitivos em baixo das árvores, aquela caricatura que se faz. Mas um bom oficiante tradicional vai explicar onde é que se faz a melhor oração para Deus: não pode haver paredes. É preciso um lugar aberto porque Deus é invisível. Está em todas as forças do cosmos, lua, estrela, mar, água, árvore, tudo. Então, a verdadeira oração para chegar a Deus tem de ser fora, não pode ser dentro da igreja. Hoje, uma coisa que ainda precisa de ser debatida e aprofundada é esta crença que a religiosidade tem de ser feita em catedrais e que os africanos, de uma maneira geral, recusam porque para eles Deus é a expressão de todo o cosmos. Quando se está dentro de uma igreja só se vêem paredes. E onde está a união das forças cósmicas? E hoje cada dia mais as pessoas começam a reconhecer que acreditar em Deus, se ele existe, pode ser na igreja, pode ser na rua, e pode ser em qualquer lugar. Então, esta liberdade dos africanos faz com que eles sejam indivíduos mais crentes porque para eles em qualquer lugar, a qualquer momento pode estar em comunicação com Deus, enquanto que na igreja só se vai quando o padre está, às 8 horas no domingo quando a missa começar.
Tenho observado – e isto parece ir ao encontro do que a Paulina acaba de dizer – que as culturas bantu têm uma enorme capacidade de absorver outras crenças, outras culturas, sem sentir um conflito ou uma contradição. Por exemplo, falei com dois curandeiros (em Nampula e em Maputo) e ambos me disseram que trabalham juntamente com o hospital, com a medicina moderna. Dizem que às vezes eles precisam primeiro do diagnóstico do hospital para depois poderem tratar o paciente. As culturas bantu também absorveram o islamismo e o cristianismo sem sentir conflitos com a religiosidade espiritista local. Parece-me que as culturas europeias são mais rígidas neste sentido. Acha que esta observação é correta?
É certa. Eu acho que os europeus têm uma rigidez que não tem razão de ser. Os europeus apropriaram-se das grandes tradições, sem pesquisar quais eram as origens, e construíram dogmas. Aqui o conhecimento da história do cristianismo e do islamismo é importante. Se olharmos para a história da Bíblia sagrada, é muito bonita. Eu gosto de ler a Bíblia no sentido da busca de diferenças. Quando abrimos o Génesis e o Êxodo, a primeira referência territorial é em África: Egito. Depois vêm Abraão e Moisés. São as três grandes figuras de que eu gosto. Abraão chega com a sua mulher, que era estéril, no Egito e recebe como prenda do faraó uma escrava egípcia com quem vai ter o filho Ismael, que é considerado o pai da nação árabe. Então a história do mundo árabe começa em África. Depois Moisés, que é criado como um príncipe pela filha do faraó, aprende tudo sobre conhecimento, leitura, escrita, etc., e tem a grande revelação divina no monte Sinai que fica no Egito, escreve os Dez Mandamentos no Egito e parte para a terra prometida. Os Dez Mandamentos da lei de Deus foram escritos em solo africano por um indivíduo nascido e criado em África. O cristianismo e o islamismo têm África como berço. Mas, quando o europeu pega na história, inventa outra para apagar as origens desta grande coisa que eles consideram religião e que depois deu origem a tantos outros desenvolvimentos. Querem excluir África quando não se pode excluir. África faz parte da história. O tempo foi andando, aconteceram tantas coisas e estamos aqui como povo de novo a sermos colonizados com uma doutrina considerada europeia quando na verdade começou aqui. É sobre este lado que eu acho que os próprios africanos devem começar a dialogar.
A Bíblia sagrada é outra escola de irracionalismo [risos], mas é a base a partir da qual se afirmam os grandes poderes. Sim, tivemos que criar a capacidade de conviver com as outras culturas por sermos oprimidos, por querermos sobreviver, por necessidade de resistência. E definitivamente não pode haver conflitos de saberes porque África tem alguma coisa para dar. É uma questão de respeitar e pesquisar.
Acha que a FRELIMO conseguiu dar conta das tradições africanas? Como convivem a política e a tradição? Que tipo de diálogo há, por exemplo, entre a Associação dos Médicos Tradicionais e a FRELIMO?
Em 1975, a Declaração de Independência foi feita numa linguagem colonial: “Abaixo o obscurantismo, abaixo o curandeiro, abaixo os ritos de iniciação! Viva o mundo novo, viva o socialismo científico!” Mas o que é que o socialismo científico está a fazer aqui numa terra cheia de uma cultura? A FRELIMO viu que isso não ia dar certo, porque aumentou outros conflitos. Agora estamos numa altura de tentar serenar de uma forma muito lenta, fazer de conta que se está a respeitar a tradição e a cultura, quando por vezes no fundo é só aparência. Porque o verdadeiro trabalho ainda está por ser feito, ainda não se fez.
Que dificuldade constitui para si o uso do português para contar estórias que, se contadas em línguas locais, seriam provavelmente mais verosímeis? Qual é a sua relação enquanto escritora com a língua portuguesa?
A minha relação é de conflito. Não há dúvida que eu aprendi a ler e a escrever em português, socializei-me com a literatura de língua portuguesa. Mas existem alguns aspetos culturais que a língua portuguesa não tem capacidade para cobrir. Para além de que, sendo uma língua de dominação, a língua portuguesa é também uma língua de segregação. Quando escrevo e vou pegando das palavras, de vez em quando fico chocada: os curandeiros são o centro do saber africano. Mas o que é um curandeiro na língua portuguesa? Vai ver no dicionário e a explicação que vai achar é redutora e simplista e serve simplesmente para colocar o curandeiro de lado. Para eles, é um indivíduo que deve ser banido e eliminado.3
Isto acontece também nos dicionários brasileiros?4
Há alguma diferença. Não é grande, mas há. Em geral, os dicionários brasileiros são mais avançados. Os dicionários da língua portuguesa são livros da cultura do branco. Portanto, o curandeiro é considerado charlatão. O meu dicionário da Porto Editora é de 2002, não sei se melhoraram. Se você procura a palavra “palhota”5, que é aquela casinha feita de palha e palmeira, encontra: “habitação rústica caraterística da raça negra.” Mas porque isso? Hoje é reconhecido que aquele tipo de construção é a mais ecológica. É fresca, quando faz calor arrefece, quando está frio aquece. Como aliar a pobreza a uma raça? Encontro vários aspetos de supremacia de uma cultura sobre a outra. As palavras no dicionário são alguns. Algumas vezes que eu quero retratar uma realidade (eu falo do Sul), quero escrever um ditado e uma forma de pensar, mas tenho de fazer uma tradução e uma aproximação de significado. O que vai resultar não é propriamente a identidade deste povo, mas é uma construção, e as coisas não chegam a ser realmente como deviam ser. Mas os próprios escritores atuais ainda não fizeram muito exercício cultural. Eu penso que talvez com tempo vamos dar um espaço àquilo que é a nossa própria cultura. É lógico que vamos servir-nos da língua portuguesa por muito tempo, porque é a língua através da qual comunicamos.
Pessoalmente, como pessoa que estuda a cultura e a literatura moçambicana, gostaria muito que no futuro as línguas locais alcançassem o estatuto de línguas oficiais, mas o problema é que são muitas. Seria possível escolher uma língua como padrão para o Sul, outra para o Centro e outra para o Norte, e agrupar as outras línguas como dialetos relacionados com uma destas três principais?
Não sei se isso seria uma grande solução. Eu estou a escutar esta pergunta com muito desgosto porque nós, africanos, como povos tínhamos a nossa estrutura. Por exemplo, a língua changana é grande. Há changanas na província de Gaza em Moçambique, em Gazankulu na África do Sul e no Zimbábue. O território changana é enorme. Chegaram os brancos e dividiram tudo. E agora querem que a gente invente uma nova língua. É muito difícil. Outro exemplo é o macua: o macua abarca quatro províncias: Nampula, Cabo Delgado, o Niassa e a Zambézia. Tem uma enorme extensão territorial e era um Estado.
Vou falar de outro aspeto da nossa realidade para chegar à questão da identidade nacional. Quando saio daqui e vou a Nampula sinto-me estrangeira porque a cultura é muito diferente. E quando vou para a Cidade do Cabo na África do Sul sinto-me em casa. Porque eu sou chope, um grupo que vive no meio dos changana. As nossas tradições todas são muito próximas do changana e do zulu da África do Sul. Quando falam zulu na África do Sul, eu entendo. Quando a colonização chegou, nós éramos um grande povo, e hoje somos obrigados a reconstruir. O futuro dirá, mas hoje é muito difícil recuperar as fronteiras antigas. Mas há grandes línguas, o Norte tem macua, o Sul changana, o Centro chona. A partir destas línguas pode-se criar alguma coisa.
Como a Paulina e a sua família viveram o tempo da guerra civil? Onde estavam e em que sentido sofreram com a guerra? Estou a pensar também no seu romance Ventos do Apocalipse.
A guerra foi feita no país inteiro e não há uma família que não tenha sofrido, salvo raríssimas exceções. De forma direta ou indireta sofremos a guerra. Eu vivia na Matola com os meus pais e os meus filhos. Várias vezes a rua era o maior hospital, porque no hospital tiravam os remédios, capturavam os enfermeiros, raptavam pessoas. Foi um cenário que vivemos nos últimos anos da guerra civil. Eu era trabalhadora da Cruz Vermelha na altura. Era jovem e quase inconsciente. Percorri o país todo em plena guerra. Vi tanta coisa, chorei e disse: “Guerra nunca mais!” Vivi a guerra civil em direto, vi massacres em direto, vi gente a cair e morrer, fuzilamentos em direto, vítimas de minas em direto. Vi pessoas a correr de um lugar para outro. A Cruz Vermelha dava assistência aos grupos de deslocados que fugiram de uma comunidade para outra em busca de paz. Trabalhei também nos campos de refugiados moçambicanos no Zimbábue a partir da Cruz Vermelha de Moçambique.
A guerra civil deve ter causado um trauma muito grande no povo. Pelo que pude observar, o povo não fala muito da guerra, ainda uma história recente. Suponho também que a política neste momento não permitiria que o povo exigisse algum tipo de reparação, por exemplos para as antigas crianças soldado que hoje já são adultos. Que tipo de memória da guerra civil pode cultivar-se hoje em dia?
Infelizmente, para além da memória amarga do tempo da guerra civil, vem essa dor profunda de ainda ir remexer nas armas da mesma guerra. Pelo menos o que tenho ouvido do povo – não dos políticos – é que o povo não quer ouvir falar da guerra. Mas as lideranças insistem… Mas o quadro é este: quando a dor é profunda, as pessoas não falam. Acho que de certa maneira tem falta de energia para se falar de coisas tão amargas. As pessoas que foram vítimas na primeira pessoa sofrem de uma dor tão profunda que não conseguem expressar. A sociedade que viveu a guerra de uma forma indireta, devia ajudar essas pessoas a reabilitar-se, a exigir os seus direitos. Mas estamos absorvidos em tantos problemas… Há associações, por exemplo, que falam dos direitos das crianças, mas não há acompanhamento. A criança vem, ajuda-se, e depois vai, não se sabe para onde. Talvez um dia estas crianças sofridas vão criar uma consciência que vai levar à reivindicação. Mas, por outro lado, as marcas também estão sendo apagadas.
A literatura, sim, fala da crueldade da guerra civil, por exemplo Ventos do Apocalipse, ou Os Sobreviventes da Noite, de Ungulani Ba Ka Khosa. A literatura pode desempenhar uma função terapêutica para o povo? Dar um tipo de consolo?
Eu acho que sim. Infelizmente somos poucos a escrever. É preciso escrever mais. Eu não falaria do povo, mas falaria de mim mesma. Ventos do Apocalipse foi o primeiro livro que escrevi, mas infelizmente não havia recursos nesse momento para publicá-lo. Fui escrevendo outro, e quando chegou a hora de conseguir algum recurso, a Associação dos Escritores Moçambicanos optou por publicar primeiro Balada de Amor ao Vento. Mas Ventos do Apocalipse foi uma história que mexeu muito comigo. Como trabalhadora da Cruz Vermelha, eu fui para a província de Gaza, para Manjacaze, onde havia um centro de pessoas que vinham porque acabava de haver um massacre. Cheguei lá toda jovial, pronta a correr de um lugar para outro, fazer o trabalho que tinha. Nós prestávamos assistência alimentar, ajudávamos a organizar os grupos sociais, juntar as crianças num lado, organizávamos pessoas que depois iam tirar a identificação das crianças para a reedificação familiar. Eu e outras colegas coordenávamos estas atividades a nível da comunidade: descobrir quem sabe ler, quem tem mais energia, etc. e colocar as pessoas a funcionar juntamente com o governo, para fazer a gestão da vida.
Encontrei uma mulher já de uma certa idade, ela olhou para mim e eu vi que ela se assustou e desapareceu da minha frente. Como eu estava com muito trabalho, vi mas não prestei muita atenção. Dando voltas no campo volto a cruzar com ela num outra ocasião e ela foge. Então dei-me conta que aquela mulher fugia de mim. Comecei a persegui-la. Ela estava numa tenda sozinha e fui lá e entrei. Quando ela olha para mim, começa a chorar. Ela só diz: “Minha Uxeme” (Uxeme é o nome da filha), “quando eu te vi chegar, parecia que era a minha filha a regressar da morte. Ela foi assassinada ontem. Vocês têm a mesma maneira de falar, a mesma maneira de andar. Tudo o que tu tens, ela também era assim. Quando eu te vi, vi a imagem da minha filha, mas depois disse não, não é ela. É esta dor que eu levo.” Sentei-me, fiquei com ela a conversar e tentei consolar a mulher. Saí dali com a sensação de uma revolta, porque comecei a compreender o grande dilema: a filha dela estava grávida, acabou na vala comum, a mulher nem viu o funeral da filha. Teve de abandonar tudo para vir e ficar no centro e lá encontra alguém que lhe faz lembrar a filha. Durante muitos meses eu viajei com isto na cabeça. Quando dei por mim já estava a escrever as memórias. Ventos do Apocalipse funcionou para mim como uma cura, porque eu sempre sonhava com aquela mulher, ouvia o choro da mulher e incomodava muito. A partir do momento que escrevi senti uma espécie de alívio, como se tivesse tirado um peso muito grande de dentro de mim. A literatura pode funcionar como catarse coletiva e também como registo da memória. A nova geração tem de saber o que se passou ontem, mas infelizmente há muito poucos relatos. Espero que um dia venham a surgir porque há coisas terríveis.
Não sei se conhece os textos da Lina Magaia [1940-2011]. São histórias trágicas. Um chama-seDuplo Massacre, outro chama-se Dumba Nengue. Ela tem uma coisa que eu gosto: ela não respeita nenhuma das regras de escrita, seja jornalística, seja de outro tipo. Ela simplesmente colocou o sentimento no papel. Escreve de uma forma crua e violenta.
Já falámos bastante de tradições africanas. Ainda gostava de fazer uma pergunta em relação à convivência entre o sistema poligâmico das famílias africanas e o sistema monogâmico das famílias cristãs. Acha que a poligamia vai desaparecer com o tempo?
O sistema poligâmico não vai desaparecer. Só vai usar outras roupagens. Aqui tudo é monogâmico, mas tudo é ao mesmo tempo poligâmico. Este conflito entre os dois sistemas é, no fundo, a sociedade a ficar desestruturada. A poligamia tem vantagens no que diz respeito à estrutura da sociedade, mas tem desvantagens no que diz respeito aos direitos da mulher. Por outro lado, a poligamia é uma questão económica. Uma mulher que diz hoje “Abaixo a poligamia!”, se encontrar um homem muito rico casado, esquece os princípios e vive com ele. Eu já vi isso muitas vezes. Raparigas que estão na universidade com uma formação muito boa, de repente estão perante um homem cheio de propriedades e lojas e carros e contas bancárias, e elas esquecem tudo e juntam-se ao homem. E fazem o que consideram um contrato de casamento que não é um casamento oficial, porque a lei só permite o casamento com uma mulher.
Conheço uma senhora com formação universitária em Economia que foi trabalhar numa província e conheceu um homem que tem duas mulheres. Era tão rico que no dia do aniversário dela ofereceu-lhe um trator agrícola de um preço muito superior a um Mercedes Benz. A menina olhou para a esquerda e para a direita e disse: “O que eu ganho como economista não vale nada. Tenho aqui este mar então deixa-me mergulhar.” Aceitou a prenda. Passado pouco tempo, o homem abriu um supermercado para ela, e depois deu-lhe uma frota de camiões. E ela diz: “Se fiz economia foi para poder dormir, se estou a trabalhar aqui é porque preciso de dinheiro. Apareceu-me aqui este homem que me dá tudo.” Esqueceu tudo e ficou com as coisas dela. Têm agora três filhos. Vive já numa relação de harmonia com as outras mulheres. Mas a harmonia entre eles é uma harmonia de interesse financeiro. Cada uma delas sabe que, se se zanga com este marido que fornece todas as soluções, vai perder. Então é mais fácil ficar amiga das outras mulheres. O inverso também existe: homens que ficam com três ou quatro mulheres para pô-las a trabalhar para ele. Existem os dois lados.
E dentro deste sistema o que é o amor? Eu falei aqui em Maputo com uma mulher e ela disse-me que amor significa cuidar. Quando tentei explicar-lhe o que é o amor para mim partindo da minha cultura, ela sublinhou muito que aqui o amor não é exclusivo. Acha que o amor é diferente dependendo da cultura ou é universal?
É um grande debate. Eu acho que não chegaremos a conclusão nenhuma. Mas eu diria que o amor como sentimento é universal, mas cada cultura fez a construção da sua ideologia sobre o amor. Eu gosto muito de ler algo sobre a poligamia e há elementos comuns. Falemos por exemplo de um dos maiores polígamos do mundo, o rei Salomão. Dizem que tinha cerca de oitocentas amantes e cerca de setecentas e cinquenta esposas [risos]. Mas para este homem das mil e quinhentas mulheres existia apenas uma: Sabá. Significa que dentro deste sistema, as outras são um número, mas há uma que é eleita. Aqui em Moçambique tínhamos o rei Mataca, que, segundo uns livros, tinha cerca de seiscentas esposas e, segundo outros, cerca de trezentas e cinquenta. Mas só uma sobressai, Achivanjila.6 Está enterrada no Niassa no distrito de Majune. Portanto, as outras todas eram um número.
O anterior rei da Suazilândia, o Sobhuza, tinha também umas duzentas e cinquenta mulheres, mas havia uma que era a eleição dele. Mesmo nesse sistema, o amor é universal e manifesta-se. Ele acabou amando alguma, ele vai dizer que ama as outras também, porque o amor é tudo, a gente tem de amar as crianças, até os bois e as galinhas, então aquelas mulheres eram um pouco como os bois e as galinhas. Existem outras histórias de príncipes dos países árabes. Outro exemplo é o Taj Mahal. O homem, quando construiu aquele palácio tinha muitas mulheres, mas dedicou aquele palácio a uma só. Aquela relação de exclusividade que todos queremos e nem todos conseguimos encontrar. A própria história da humanidade faz esta revelação, que o homem pode ter muitas mulheres, mas ama uma. Só que na nossa cultura o amor é um direito masculino e não feminino. O homem pode amar, mas a mulher não. A mulher tem de amar de acordo com os valores culturais e daí que amar seja cuidar. Mas o amor é o mesmo.
O seu livro mais recente, Por Quem Vibram os Tambores do Além?, que escreveu juntamente com o curandeiro Rasta Pita, não foi publicado em Portugal.
Foi interessante. Ninguém comentou o livro até hoje. Regressei do Brasil há uma semana. O livro está a ser recebido maravilhosamente no Brasil. O público brasileiro acha o livro muito interessante. Encontrei curandeiros brasileiros que me confirmaram que o processo de desenvolvimento do curandeirismo é exatamente aquele. Havia pessoas lá de vários países, por exemplo da Colômbia, que me perguntavam se esse curandeiro não teria disponibilidade para viajar para uma troca de experiências, porque tudo o que ele relata é muito semelhante àquilo que eles têm. E encontrei uma pajé que também tinha lido o livro e me disse: “O meu processo de formação foi assim.”
Mais uma vez, eu tenho sorte, porque faço uma coisa que no primeiro momento todos acham estranha e acham que não se deve publicar, mas vem um mundo de fora que diz que é isso que deve ser escrito. Passou-se também com Niketche. Porque a nossa realidade ficou escondida durante muitos anos. O mundo considerado irracional, que por exemplo os psiquiatras e psicólogos consideram uma alucinação, afinal tem uma outra explicação. A compreensão deste mundo pode ajudar.
Sim, parece-me que neste campo espiritual e mágico ainda há muita pesquisa por fazer. Também considero que seria muito enriquecedor recolher os mitos das tradições orais em Moçambique, porque as pessoas estão a perder a costume se contar histórias às crianças. Por exemplo, aqueles mitos matriarcais que aparecem em O Alegre Canto da Perdiz e em que o mundo originalmente era dominado pelas mulheres, realmente existem ou são invenção sua?
Existem. Eu fui apanhar aquilo na zona mais, mais, mais tradicional. Nas cidades nunca ninguém ouviu falar daquilo. Só conhecem Adão e Eva. Mas este trabalho já começou de certa maneira. Já se publicaram alguns livrinhos, mas tem de continuar. Há mitos extraordinários. Os mitos da região Sul, por exemplo, já quase desapareceram porque não houve recolha. Para mim, o importante é esta ousadia de provocar e, a partir dali, as pessoas vão perceber que é uma riqueza que precisa de ser explorada.
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1. Mataca I (Che Nyambi) foi um chefe tradicional yao (ou ajaua) que reinou de 1850 a 1878/79 e fundou uma dinastia no Niassa que existe até hoje. O sacerdote anglicano Yohannah Bernaba Abdallah testemunhou os eventos no estado de Mataca I no final dos anos 1860 e escreveu em língua yao sobre o que viu. Há uma tradução ao inglês: Yohanna Barnaba Abdallah (21973): The Yaos: Chiikala cha Wayao. Londres: Frank Cass. Os reis Mataca estavam entre os maiores traficantes de escravos da zona sudeste da África nos séculos XIX e XX. Mataca I capturou escravos nas suas guerras de expansão e vendeu-os aos árabes em troca de roupa. Mas também dentro dos diversos Estados dos yao, a escravatura era uma prática comum e conhecia várias modalidades. Para mais detalhes veja: Zimba, Benigna (2005): Achivanjila I and the Making of the Niassa Slave Routes. Em: B. Zimba, E. Alpers e A. Isaacman (eds.): Slave Routes and Oral Tradition in Southeastern Africa. Maputo: Filsom Entertainment, Lda. pág. 219-251.
2. Refere-se muito provavelmente à época do Difaqane/Mfecane de 1817-1840. Veja-se Newitt, Malyn: História de Moçambique. Nem Martins: Publicações Europa-América, 1997, pág. 237-145.
3. Dicionário da Porto Editora: “curandeiro, nome masculino, pessoa que pretende curar sem diploma legal nem conhecimentos de medicina científica; benzedeiro; abençoadeiro (Do latim *curandar?u-, «idem», de curandu-, gerúndio de cur?re, «curar; tratar» +-eiro)”. Em: Infopédia, Porto Editora, 2003-2014. [Consult. 2014-08-31]. Dicionário Priberam: “cu·ran·dei·ro, substantivo masculino, 1. Pessoa que trata de doenças sem título legal. 2. [Figurado] Charlatão; impostor”. Em: Dicionário Priberam da Língua Portuguesa, 2008-2013. [Consult. 2014-08-31].
4. Dicionário Aurélio: “curandeiro: s.m. Indivíduo que se propõe curar doenças pela prática, sem curso de habilitação; charlatão em medicina”. Em: Aurélio [Consult. 2014-08-31]. Dicionário Michaelis: “cu.ran.dei.ro, sm, (de curar) 1 Dir Indivíduo que exerce ilegalmente a Medicina, com remuneração ou sem ela. 2 Charlatão em Medicina, que finge tratar doenças ou possessões diabólicas por meio de rezas. Sin pop: carimbamba”. Em: Michaelis, Moderno Dicionário da Língua Portuguesa [Consult. 2014-08-31].
5. Dicionário da Porto Editora: “palhota, nome feminino 1. cabana coberta de colmo ou palha, 2. regionalismo capa de palha usada por pastores e camponeses como resguardo da chuva, (De palha+-ota)”, Em: Infopédia, Porto Editora, 2003-2014. [Consult. 2014-08-31]. Dicionário Priberam: “pa·lho·ta |ó|, (palha + -ota), substantivo feminino, 1. Casa coberta de palha ou colmo. Ver imagem = PALHOTE, 2. Construção rústica africana, geralmente coberta de ramos ou palha. Em: Dicionário Priberam da Língua Portuguesa, 2008-2013, [Consult. 2014-08-31]. Dicionário Michaelis: “pa.lho.ta, sf (palha+ota), 1 V palhoça. 2 Habitação de negros na África. Em: . Dicionário Aurélio: nenhuma entrada para “palhota”. / “palhoça, s.f. Cabana rústica, dos climas tropicais, coberta de palha ou sapé; caluje; choça”. Em: Michaelis, Moderno Dicionário da Língua Portuguesa [Consult. 2014-08-31].
6. Achivanjila é o nome de uma dinastia de rainhas que se casavam com os reis da dinastia Mataca e Matola, mas não tinham necessariamente um grau de parentesco entre si. Estas dinastias continuam em existência. Paulina Chiziane refere-se a Achivanjila I (Aluzi Apitigombe, nascida em Malawi). Ela foi capturada em Malawi ainda criança junto com outras 100 pessoas, e escravizada pelo régulo yao Mataca I (Che Nyambi, reino: 1850-1878/79) provavelmente a inícios dos anos 1870. O rei yao Che Macanjila, de quem Mataca tinha roubado estas 100 pessoas, matou em vingança a primeira mulher deste. Contrário ao que assume Paulina Chiziane, Benedita Zimba não considera que o rei sentia um amor especial por Aluzi Apitigombe, mas que foram motivos meramente práticos e estratégicos que levaram a Mataca I a transformá-la em rainha e a renombrá-la Achivanjila (Zimba 2005: 229s.). Para mais detalhes veja: Zimba, Benigna (2005): “?Achivanjila I? and the Making of the Niassa Slave Routes”. Em: B. Zimba, E. Alpers, and A. Isaacman (eds.): Slave Routes and Oral Tradition in Southeastern Africa. Maputo: Filsom Entertainment, Lda. pág. 219-251.
Obrigada por essa maravilhosa entrevista com uma escritora africana que nos revela novas perspectivas sobre a realidade africana em Moçambique e cujos livros espero ler em breve