Cresce a Defesa dos Comuns pelo Mundo

“A caatinga estendia-se, de um vermelho indeciso salpicado de manchas brancas que eram ossadas”, escreve Graciliano Ramos em ‘Vidas secas’. Hoje, porém, não se vê o êxodo em massa de camponeses. Foto: Leo Nunes (Wikimedia Commons – CC BY-SA 3.0)
“A caatinga estendia-se, de um vermelho indeciso salpicado de manchas brancas que eram ossadas”, escreve Graciliano Ramos em ‘Vidas secas’. Hoje, porém, não se vê o êxodo em massa de camponeses. Foto: Leo Nunes (Wikimedia Commons – CC BY-SA 3.0)

A falta de água em São Paulo e em outros estados do país, além da seca no Nordeste nos põem frente aos limites do planeta

Cândido Grzybowski, Canal Ibase

A prolongada seca na Região Sudeste do Brasil, além do evidente sofrimento causado pela falta de água, despertou um necessário debate entre nós sobre ela como bem comum. Estamos descobrindo o quanto não cuidamos deste comum essencial à vida,  dada a agressão que, como coletividade, fazemos ao ciclo ecológico da água com o desmatamento, a poluição, o uso predatório. Enfim, tomamos consciência de que existem limites naturais, onde o problema tem a ver com uso e gestão de um comum como a água, mesmo num território como o brasileiro, dotado das maiores reservas naturais de água doce do Planeta. Sem água não há vida!

Neste grande tema dos comuns, aqui gostaria de chamar a atenção para os territórios que compartimos, como comuns que sintetizam condições naturais dadas com história de ocupação humana e construção social ao longo de gerações, mais a vida e a ação no presente. Neste processo de trocas e convívios, longo e curto ao mesmo tempo, criamos os territórios como bens comuns, lugares em que organizamos nosso modo de viver, que se torna parte de nossa identidade, endereço, memória, cultura e muito mais. Aliás, a água é central nos territórios, mas eles comportam muitos elementos constitutivos do que são, pois combinam os bens naturais da geografia local tornados comuns e bens produzidos, materiais e simbólicos, como comuns. A discussão sobre os territórios como comuns, porém, ainda não ganhou a evidência e a importância que merece. É nos territórios que surgem as resistências mais emblemáticas ao modo predatório da civilização industrial-produtivista-consumista em que estamos mergulhados e que nos ameaça com a mudança climática. Por isto mesmo, as resistências nos territórios as tomo como trincheiras antissistêmicas.

Lembro aqui, em primeiro lugar, o pipocar de resistências ao neoextrativismo que vivemos no Brasil, na América Latina e na África. O extrativismo mais primário voltado para exportação, com minas que destroem territórios inteiros, tornou o Brasil o maior país de mineração do continente. Isto vai aumentar em muito caso se realize a meta de exportar 4 milhões de barris de petróleo por dia do pré-sal na próxima década. Quanto vamos destruir em nome do já provado modo insustentável de viver, social e ambientalmente falando. Mas há o extrativismo de água, solo, energia solar e tudo mais de um agressivo agronegócio acaparador de terras, de transgênicos e toneladas de químicos, de “desertos verdes”, voltado também à exportação.

Há ainda a produção de energia hidrelétrica – energia sustentável, em princípio – no Brasil concretizada através de megaprojetos, com mega barragens e agressões, de interesse das grandes empreiteiras. Estas frentes de expansão, comandadas por uma lógica privada de acumulação, de fora para dentro dos territórios, tornaram-se essenciais para a economia do Brasil emergente no mundo globalizado. Olhando, porém, para a destruição socioambiental no seu rastro e para o crescimento das resistências dos grupos humanos atingidos fica evidente a sua insustentabilidade. Não se trata de resistências do velho e do passado frente a algo novo e moderno. Ver de tal modo é fruto de uma mentalidade desenvolvimentista dominante, colonizadora de nossas cabeças, incapaz de pensar que não cabe à democracia, à cidadania e às demandas de justiça social se adequarem ao mercado. Pelo contrário, justiça socioambiental e sociedades democráticas se fazem adequando economias e mercados a elas.

Sou categórico em afirmar que outro Brasil está embrionariamente nas resistências territoriais e não nas frentes de expansão econômica. As resistências são ainda muito frágeis e isoladas politicamente, mas isto não as torna menos importantes. Apontam para direitos coletivos legítimos, nem sempre legais, pois não reconhecidos como tais em nossas leis e tribunais. As práticas de resistência nos territórios trazem à tona elementos de “desobediência civil” entre nós. Mas, sobretudo, são elas que apontam para a prevalência, numa coletividade, do “comum” frente ao “privado”. São as resistências que levantam os temas da nossa relação com os diferentes territórios, com a natureza, com os sistemas ecológicos como a água, a biodiversidade e o clima, com as culturas e identidades socioculturais, enfim com os “mosaicos” interdependentes que nos tornam unidos na diversidade. Portanto, da sua fragilidade e isolamento brotam sinais e nos são jogadas no colo questões quentes fundamentais sobre os pilares da democracia e da vida em coletividade.

Estes sinais de resistências territoriais, de defesa de comuns, estão se ampliando nas cidades também. O modelo hegemônico de cidades esbarra nas resistências de favelas e periferias populares. Lembro aqui o “Favela é Cidade” como exemplo, onde a resistência às remoções tem por trás uma afirmação de território comum constituído por outra lógica de cidade, diferente do asfalto, condomínios privados, espaços públicos privatizados. Mas vale pensar nas demandas da explosão de cidadania nas nossas principais cidades em junho de 2013, quando dominantes foram as demandas de direitos de cidadania coletiva: transporte público, educação pública, saúde pública, segurança pública, teto para todo mundo, enfim, mais do comum e menos de negócios privatizantes das e nas cidades.

O fato é que as expressões de lutas cidadãs pelos territórios como comuns se multiplicam no Brasil, na região e pelo mundo. Podem ser de populações diretamente atingidas, residentes nos territórios, como por grupos que se insurgem contra a lógica destrutiva e privatizante de comuns dos negócios privados, em geral com apoio de governantes de plantão ou com sua omissão, sem ação firme de sua parte na defesa do comum agredido. Cabe se perguntar se ilegais não são os próprios governos com seus projetos, financiamentos e licenças socioambientais, até à revelia da lei.

No Brasil, pouco discutimos o que se passa na China, por exemplo. Uma grande frente de lutas emergentes por lá, de um capitalismo agressivamente implantado pelo Estado, são de populações locais frente a projetos de governos e empresas que alteram substancialmente o seu modo de conviver no território em questão. Dada a natureza do regime autoritário e centralizador, pouco se divulga a respeito. O mais curioso é que no contexto chinês não é raro que as resistências locais, com ocupações e desobediência civil – como são geralmente tais lutas em qualquer parte do mundo –, busquem chamar a atenção do governo central e demandam a sua intervenção contra as decisões de autoridades locais ou iniciativas empresariais. Mas o sentido é a defesa do que é considerado um comum sendo agredido. Os emergentes movimentos de cidadania planetária estão sendo desafiados a se conectar com esta outra China, de trincheiras de resistência cidadã.

Os movimentos como os “indignados” e os “occupy” também resgataram práticas de resistência territorial. Suas ações foram concretizadas com ocupação de espaços públicos simbólicos, de praças e ruas, resgatando o seu sentido de comuns, de ágoras da cidadania. Em recente viagem pela Europa, tive contato com um novo movimento em expansão na França: o dos “zadistas”. Trata-se de jovens de todas as galeras que se unem para defender território concretos ameaçados por projetos considerados destrutivos de um comum fundamental a preservar. O nome “zadistas” vem de ZAD – que na linguagem dos urbanistas e técnicos gestores da organização territorial seriam   zonas de ocupação diferenciada (“Zone d’aménagement différé”, em francês). As e os jovens, com sua luta de proteção territorial, transformaram ZAD para “zona a defender” e daí o nome “zadistas”. Com base nas redes sociais, juntam-se milhares de jovens ecologistas, anticapitalistas, hackers, feministas… e organizam um acampamento no território ameaçado por um grande projeto, seja barragem, usina nuclear, aeroporto, o que for. Vão dispostos a ficar meses se necessário. E reinventam modos de viver, inclusive com produção. Praticam a desobediência civil conscientemente e afinam suas estratégias em um esforço de tudo decidir coletivamente. São contra políticos e representações, não acreditam mais em partidos e estão sempre preparados diante da polícia, lá também truculenta. Os “zadistas” tem vitórias a celebrar, com projetos que foram suspensos, mas já contam com um jovem assassinado pela polícia. Enfim, o maior mérito dos “zadistas” é de levantar um imaginário de defesa de comuns, de direitos e de outro modo de vida no debate público da França, bem no lado oposto da extrema direita.

Muito mais poderia ser lembrado aqui, mas os exemplos que assinalei são suficientes para mostrar uma questão que demanda pesquisa e análise, colhendo o que as defesas de comuns territoriais entre nós e pelo mundo trazem de novo e inspiração para paradigmas alternativos de sociedades e economias sustentáveis. Mais, precisamos elaborar ideários mobilizadores da cidadania, revitalizadores da democracia como método de transformação no sentido da justiça socioambiental, de direitos para todos e de sustentabilidade da vida e do Planeta. Precisamos fazer a cartografia social e cidadã das resistências pelo mundo. Esta me parece uma agenda incontornável para os movimentos da nascente cidadania planetária poderem se reinventar e se revitalizar.

Deixe um comentário

O comentário deve ter seu nome e sobrenome. O e-mail é necessário, mas não será publicado.