Por Piê Garcia, em Observatório da Favela
Pare na vitrine de uma loja de brinquedos e repare na seção de bonecas. Quantas delas são negras? Provavelmente, uma ou nenhuma. Por que será que isso é tão natural em um país onde a maioria da população é negra. Para responder a essa e outras perguntas, é necessário olhar principalmente para ações, que parecem menos importantes, mas que demonstram a face “invisível” do racismo no Brasil.
Cercadas de capas de revistas, programas de televisão, filmes, desenhos e princesas quase sempre brancas, magras e ricas, as crianças começam a sua formação com uma série de cobranças por um ideal de beleza imposto pela modernidade. A criação da Barbie, a boneca mais vendida do mundo, por exemplo, segue esse padrão. E assim, as meninas negras crescem sem se reconhecer em suas bonecas e brinquedos, assim como nos programas de televisão entre outros produtos midiáticos.
Na busca pelo fortalecimento da autoestima da população afrodescendente, por meio da representatividade e enfrentamento ao racismo, algumas iniciativas se destacam, como é o caso das bonecas Abayomi. Criadas pela artesã Lena Martins, no final da década de 80, período em que houve a Marcha contra a Farsa da Abolição, o 1° Encontro de Mulheres Negras em Valença, inúmeras reunião do movimento negro começaram a ser articuladas e foi também a época em que se começou a pensar em sustentabilidade, além de ser o mesmo período em que se deu a Assembleia Constituinte. Nesse contexto, nasceu a Abayomi, cujo o nome significa “meu presente” em Yorubá.
As bonecas são negras e são produzidas a partir de materiais reaproveitados, retalhos de panos e malhas. Elas não possuem feição, para favorecer o reconhecimento da identidade subjetiva das inúmeras etnias africanas. Com tamanhos que variam desde as pequeninas com dois centímetros usadas como imãs ou broches, até um metro e meio, como é o caso dos presépios. Outras figuras também são representadas como os orixás, os santos, as personagens do circo, da capoeira, as folclóricas e as do cotidiano.
A artesã define sua criação como “uma bandeira poética”. Para ela, a Abayomi é a maneira de interferir de uma forma que faz parte do imaginário lúdico. Lena afirma que “como boneca, se pode tudo! Pode-se ocupar todos os espaços da vida, do mundo, da sociedade. Pode-se ter todas as condições de se realizar na vida. Eu posso fazer o que eu quiser! Eu posso fazer uma presidenta, uma atleta, tudo que estiver no topo para a sociedade como um ganho, eu posso fazer em boneca. E ao ver essa boneca, isso pode trazer uma referência positiva em relação à imagem, ao que se pretende da vida, as posições almejadas… É uma coisa muito sutil. A ideia é essa!” Isso é um dos passos que atrelados a outras influências, aos poucos vai avançando na superação do racismo.
Lena trouxe para a discussão o conceito de afrocentricidade de um dos maiores intelectuais negro do mundo, Molefi Kete Asante. “Um tipo de pensamento proativo. Uma perspectiva que percebe os africanos como sujeitos e agentes de fenômenos atuando sobre a sua própria imagem, cultura e de acordo com os seus próprios interesses.” E é isso que a Abayomi faz!
Depois da Abayomi apareceram outros grupos. Na maré, por exemplo, existem as Bonecas Banto, que seguem os mesmos princípios de reutilização e fortalecimento da autoestima.
O casal de educadores, Jaciana e Leandro Melquíades também fazem um projeto de resgate da autoestima através de elementos do cotidiano. Pelo projeto Era uma vez o mundo eles conseguem através da imaginação, o empoderamento. Na loja eles fazem brinquedos personalizados. Com a foto do presenteado eles produzem um “Avatar” com as características da pessoa. O grupo possui cerca de 350 lãs para que os cabelos sejam bem parecidos em cor e textura e mais de 25 tons de marrom para a pele.
Segundo o casal, “ser negro é um posicionamento político e é através de ações afirmativas que se valorizará a negritude”. Seja através das bonecas ou dos livros que contêm histórias para serem compartilhadas, contadas em roda. A personagem Mariana estimula, via literatura, o interesse pela ancestralidade através dos turbantes. Representatividade importa e muito, além de colaborar para não cairmos no perigo da história única, da padronização dos esteriótipos, enaltecendo alguns e estigmatizando outros. Por isso, elevar o número de bonecas negras nas prateleiras está na ordem do dia.