Qual é o fundamento da autoridade da lei? Para o psicanalista italiano Contardo Calligaris, há duas formas de responder essa questão e ele disseca as respostas no artigo que publicou no jornal Folha de S.Paulo. Calligaris foi conferencista do Fronteiras do Pensamento Porto Alegre, em 2008, e do Fronteiras do Pensamento Santa Catarina, em 2013.
Por Contardo Calligaris, em Fronteiras do Pensamento
Na segunda passada (10/11), foram divulgados os resultados de uma pesquisa que a Fundação Getúlio Vargas realizou para o Fórum de Segurança Pública. Nada surpreendente: 81% dos brasileiros concordam com a ideia de que, no Brasil, é fácil desobedecer às leis, e 57% acreditam que há poucos motivos para segui-las.
Há diferenças segundo a renda e os Estados, mas nada que altere a sensação de que existe, em geral, uma desconfiança do cidadão em relação à Justiça, à política e à autoridade pública.
Alguns dirão que ainda é um efeito da exclusão social: por que eu seguiria as regras de um clube que não me deixa frequentar sua sede? Outros, para explicar essa desconfiança, colocarão o acento na impunidade (embora talvez ela seja menos manifesta do que no passado).
Entendo. Às vezes me encontro numa fila infinita de carros, e um espertinho ultrapassa todo mundo pelo acostamento. Rezo para que, lá na frente, meus colegas de fila não deixem ele voltar para a pista – ou, então, para que, na próxima curva, haja um policial. Mas acontece o oposto: aos poucos, meus colegas de fila começam a seguir o exemplo do espertinho. Logo, o acostamento se torna uma pista, engarrafada e parada como as outras – com sorte, nenhuma ambulância precisará passar por lá.
Será que eu respeito a lei porque sou “do bem” ou porque me falta coragem, mesmo na óbvia ausência de fiscalização? Será que nós, os que ficamos na fila, somos apenas otários?
Enfim, a pesquisa da FGV levanta uma questão clássica e cotidiana: qual é o fundamento da autoridade da lei? Se você duvida que seja uma questão cotidiana, pergunte para qualquer jovem pai, quando ele é acusado pela mulher de não saber “colocar limites” nos filhos (essa expressão volta, aliás, como se todas as jovens mães tivessem lido o mesmo livro).
Subentendida nessas acusações está a ideia de que o marido, se não conseguir controlar as crianças, não deve ser homem de verdade. Mas, obviamente, a maioria das mães não está pedindo que o marido e pai conquiste a obediência das crianças à força de safanões e porradas. O que se pede é que alguém imponha uma autoridade “simbólica”, ou seja, que alguém faça que as crianças obedeçam aos pais – por ele ser o pai e por ela ser a mãe. Cá entre nós: se você leu essa última frase sem rir ( ou, no mínimo, sorrir), é porque você não tem filhos.
Em suma, é uma pergunta cotidiana: qual é a origem da autoridade? Existe uma autoridade que não comece com o safanão ou a ameaça do safanão”?
Há muitas respostas possíveis a essa pergunta. Aponto dois caminhos divergentes.
Primeira resposta: não. Em última instância, a violência ou a ameaça da violência real seria a única fonte de qualquer autoridade. Claro, o mistério é que a autoridade sustentada pela violência real deve se transformar, ao poucos, em autoridade simbólica. Se a autoridade continuar fundada apenas na violência, o que acontecerá, por exemplo, quando os filhos crescerem e se tornarem mais fortes do que os pais? Os pais vão apanhar?
Outra resposta: sim, a autoridade pode se fundar sem violência e sem ameaça. Por exemplo, ela pode ser o efeito de uma dívida: estamos em dívida com os que nos oferecem amor e cuidados, e portanto obedecemos, escolhemos respeitá-los. Isso valeria tanto para os pais provedores quanto para o Estado, do quel seguiríamos as leis na medida em que ele nos ampara. A autoridade, em suma, seria fundada na gratidão. Os partidários da violência como origem da autoridade comentarão (com ironia) que para eles também a gratidão funda a autoridade: por exemplo, cada um reconhece a autoridade de quem poupa a vida.
Enfim, uma famosa observação de Max Weber: existe Estado quando só UMA autoridade pode exercer a violência. Se alguém estiver exposto a várias violências de origens diferentes e conflitantes, nenhuma delas tem chance de se transformar em autoridade reconhecida espontaneamente.
Acabo de ler um artigo de Joanna Wheeler (“Accord”, n° 25) sobre autoridade e cidadania em várias favelas cariocas. Entre as razões pela falta de uma autoridade simbólica, Wheeler aponta, justamente, a variedade das fontes da violência (tráfico, milícia, polícia) e, portanto, a dificuldade de os cidadãos enxergarem uma legitimidade qualquer.
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Enviada para Combate Racismo Ambiental por José Carlos.