Em Índio é Nós
Índio é Nós – Como nasceu sua ideia de engajamento por meio do cinema e do vídeo?
Nayana Fernandez – O formato audiovisual sempre me pareceu uma poderosíssima ferramenta. Foi na Inglaterra, o berço da revolução industrial, que obtive toda instrução técnica e acadêmica nessa área. E apesar de morar em uma das sociedades consideradas “mais privilegiadas” do mundo, nunca me senti orgulhosa disso. Sempre carreguei um nível de desconforto. Era consciente de que muitos povos e todo o planeta pagaram e ainda pagam caro por esse privilégio de algumas nações. De certo modo me sentia responsável em usar das regalias e oportunidades de morar lá, para contribuir positivamente com alguma dessas ‘feridas do mundo’. Dessa forma, acabei traçando um percurso que ampliasse meu entendimento da dinâmica política, social e ambiental da nossa civilização, e que eventualmente ajudasse outras pessoas a refletir sobre isso.
Então, depois de finalizar meus estudos e através da minha colaboração no portal do Latin America Bureau (LAB) de Londres, me dediquei a entrar em contato com diferentes grupos que estão diretamente ou indiretamente envolvidos na busca de justiça e dignidade dos povos latino-americanos. A partir desse trabalho, tive a oportunidade de viajar para a Amazônia e, em colaboração com a jornalista Sue Branford, desenvolver material em vídeo sobre os problemas que algumas comunidades da floresta enfrentam hoje no estado do Pará. O caso dos Munduruku em especifico, já me havia tocado de maneira especial, entretanto, quando em colaboração com alguns estudiosos da região do Tapajós, publicamos uma matéria em inglês sobre o assassinato do Adenilson Kirixi no site do LAB (leia aqui), ocasião em que tive acesso às imagens gravadas do ataque da Força Nacional e do corpo baleado do jovem guerreiro.
Apesar de não ter uma lista longa de vídeos com esse perfil, tento de diferentes formas dar voz a pessoas e grupos que são constantemente silenciados dentro da lógica da sociedade ocidental. Vídeo, no entanto, tem sido a maneira mais efetiva que encontrei.
IEN – Que dificuldades encontrou para realizar esta filmagem? Como os Mundurukus cooperaram?
NF – Provavelmente a maior dificuldade tenha sido a de não ter programado o documentário que está sendo lançado no dia 17 agora. Inicialmente, o plano era o de apenas produzir alguns vídeos curtos para o site do LAB e para outras plataformas – como foi o caso da BBC de Londres. Então, o documentário em si não foi uma ideia programada e acabei executando as filmagens em duas partes. Uma em setembro de 2013 e outra em fevereiro desse ano.
Durante a primeira viagem, não apenas estivemos com os índios Munduruku, mas também estivemos em uma comunidade de garimpeiros no rio Pacu, afluente do Tapajós, e com comunidades quilombolas no rio Trombetas. O plano era acompanhar a jornalista inglesa Sue Branford e produzir vídeos curtos com ângulo jornalístico sobre os impactos dos “grandes projetos de desenvolvimento” do governo brasileiro nas comunidades locais. Focando no processo de registro de imagens para este projeto, além das incertezas de se alcançaríamos as nossas metas, já que pouco estava agendado ou confirmado, um dos maiores desafios dessa primeira etapa das filmagens foi o lidar com os momentos de tensão.
Por exemplo, logo de entrada, em uma de nossas paradas a caminho de Jacareacanga, no Km 180 da rodovia Transamazônica, encontramos um grupo de biólogos escoltados por agentes da Força Nacional e de segurança fortemente armados. Os pesquisadores estavam trabalhando na região sem o consentimento dos indígenas e ribeirinhos para desenvolver os estudos de impacto ambiental. E já que seu trabalho é fundamental para que o plano das hidrelétricas seja realizado, sem dúvidas eles eram conscientes de que sua presença acompanhada de homens armados era parte de uma ação intimidatória. Não se deveria estranhar que uma jornalista se aproximasse em busca de diálogo. Mas lamentavelmente, o chefe do grupo de estudos não apenas negou que os membros de sua equipe dessem qualquer informação a Sue Branford, como também foi hostilizada por ele (leia mais no blog do Cândido Neto).
Bastante perplexos, seguimos viagem nos perguntando: se uma jornalista inglesa, profissional renomada e com décadas de experiência, é tratada dessa maneira em um local público, como seria então o trato com os habitantes das comunidades locais?
Chegando a Jacareacanga encontramos com algumas lideranças Munduruku, e entre as metas que queríamos cumprir também na comunidade de garimpeiros (veja o vídeo aqui), que ficava razoavelmente próxima de lá, conseguimos agendar apenas duas entrevistas com as guerreiras Maria Leusa Kaba Munduruku e Rosenilda Bõrõ Munduruku, e com o Jairo Saw, em uma breve visita à aldeia de Boca das Tropas. Levando em consideração o perfil do trabalho que estávamos fazendo, e com recursos limitados, como foi o nosso caso, a filmagem teve que ser levada de forma bastante flexível. Era uma vitória quando programávamos uma entrevista e conseguíamos gravá-la no dia e momento esperados. Depois de uma semana tivemos que seguir viagem em direção ao rio Trombetas. Até então, as duas entrevistas e algumas imagens da aldeia haviam sido todo o material que eu havia filmado com os Munduruku.
Semanas mais tarde, já em Santarém e a pouquíssimos dias de voltar para São Paulo, soubemos que a “audiência pública” promovida pelo Ibama para o licenciamento da UH São Manoel, prevista para o rio Teles Pires, na divisa entre os estados de Mato Grosso e Pará, estava agendada para ocorrer nos próximos dias, em Jacareacanga. Não tínhamos fundos para voar e o tempo estava extremamente curto tanto para alcançar o inicio da audiência, como para voltar a Santarém e pegar o voo para São Paulo. Como se não bastasse, o Ministério Público Federal havia pleiteado a suspensão do evento até a conclusão dos estudos de impacto sobre os indígenas. Mas sabíamos que havia grandes chances de que o evento não fosse suspenso, já que as obras têm sido a prioridade.
Se, por um lado, o cancelamento do evento seria algo obviamente positivo para os Munduruku e habitantes locais, por outro, se ocorresse seria um importante momento para ser registrado, e que serviria de prova de como as audiências são feitas. Tendo em mente as todas as dificuldades, e tamanha chance de que algo saísse fora do esquema, qualquer pessoa em sã consciência não arriscaria. Não foi o nosso caso. Decidimos enfrentar mais uma vez as longas estradas e incertezas. E não foi em vão. (mais informações sobre o que presenciamos na audiência pública aqui).
Ainda no Brasil e frente a outras oportunidades de voltar para a região, decido me comprometer no desenvolvimento de algo mais longo para contar esta história de violações e de resistência que o povo Munduruku vem enfrentando. Depois de 3 semanas convivendo com algumas comunidades no rio Cururu a convite do linguista francês Pierre Pica, alcanço todo o material para montar o corte que apresento agora na próxima segunda-feira, dia 17.
Talvez não tanto uma dificuldade, mas sem dúvidas um desafio, foi a minha limitação em relação às tradições e ao modo de vida dos Munduruku. Em termos de cooperação com os indígenas, a convivência e comunicação foi crucial para contar sua história. Durante ambas as viagens, fui recebida com cautela. Mas depois de os grupos dos quais nos aproximamos confiarem no trabalho e na intenção de como o que estava sendo captado seria usado, eles manifestaram concordância. Nesse processo, a colaboração de pessoas não indígenas que já vêm apoiando esses grupos também foi muito importante. Com permissão dos indígenas, por exemplo, tivemos acesso às imagens gravadas por eles próprios com seus aparelhos celulares durante o trágico ataque da Força Nacional na aldeia Teles Pires em 2012. Incluídas as fortíssimas imagens do corpo baleado de Adenilson Kirixi Munduruku.
Apesar do leque de incertezas, limitações, e considerando que este é o meu primeiro projeto de documentário, estou satisfeita com o resultado. Desde Londres, durante todo o processo de pós-produção, mantive o diálogo com alguns dos guerreiros e guerreiras Munduruku e muitos de seus apoiadores. É imensamente gratificante, cada vez que conversamos por telefone ou via internet, e sentir que essa aliança tão humana continua forte, mesmo estando geograficamente distantes.
IEN – Como foi a reação das plateias estrangeiras que já viram o filme?
NF – Em todas as mostras em que estive presente, duas em Londres e duas em Berlim, me pareceram bastante fortes. Não é nada fácil chegar em uma sala cheia e mostrar as mazelas de povos distantes. Claramente, por causa do tema tratado, a história não é das que o público facilmente aprecia. E, apesar de trazer uma mensagem intrinsecamente humana, tampouco é tão fácil de assimilar seus porquês. Muito menos para o público europeu, distante dessa realidade. Não que para um paulista, por exemplo, seja muito mais próxima a realidade amazônica, ou a de um Munduruku. Mas certamente estamos mais familiarizados com o panorama político e social do Brasil.
Lá fora, percebi que as pessoas ficam perplexas, indignadas, mas majoritariamente com muito respeito à resistência Munduruku e com vontade de apoiar. Em uma das mostras de Londres, tivemos a participação das jornalistas Sue Branford e da Jan Rocha no painel de discussão. Foi uma troca muito boa com o público, um processo educativo mesmo. Em todas as mostras, as perguntas variaram desde os ‘porquês’ até ‘como podemos ajudar’. Pude comprovar que muitos se identificam de alguma maneira ou de outra com a luta e a dor do povo Munduruku. Que se houvesse caminhos em que as pessoas pudessem ajudar a fortalecer essa luta, eles o fariam. Uma garota em Berlim usou o exemplo do café das cooperativas Zapatistas, afirmando que dessa maneira ela colaborava desde a Alemanha com aquela luta no seu dia a dia, e me perguntou se havia alguma maneira parecida na qual ela pudesse ajudar. Outras pessoas perguntaram se existiam empresas europeias que estavam envolvidas no processo da construção das barragens, e que se tivessem acesso a essa lista eles poderiam ajudar organizando manifestações e campanhas de boicote por lá.
Muitas pessoas que já assistiram o vídeo se tornaram fiéis seguidores de nossas redes sociais, acompanhando e compartilhando as notícias da luta Munduruku nas páginas do facebook e twitter. Muitos deles se ofereceram para mostrar o vídeo em suas universidades e bairros. Tive uma sensação positiva de que existem boas possibilidades para ampliar a consciência de muitas mais pessoas com a projeção do video, somente espero que assim ajude fortalecer a luta dos Munduruku.
IEN – Quais são suas expectativas para esta luta dos Mundurukus – e do Brasil?
NF – É muito difícil vislumbrar o que será da luta dos Munduruku. Por um lado, existem todas as dificuldades internas, derivadas majoritariamente do aprender a lidar com as estruturas de funcionamento do ‘nosso mundo’ e de toda a falta de infraestrutura para executar suas articulações ou as questões legais desse processo de luta. E do outro lado, está o sistema político e econômico em que vivemos, e que lhes é imposto, do qual o governo brasileiro participa ativamente. Exemplo disso são as políticas de desenvolvimento implementadas pela presidente Dilma, que além de outros projetos, busca a industrialização da floresta Amazônica. Portanto, está claro que a luta dos Munduruku não é, nem será fácil. Se trata da sobrevivência não apenas de um povo, mas de vários. Incluídos todos nós, talvez não tão a longo prazo.
Todo esse trabalho, o documentário, os artigos, e vídeo para a BBC, têm sido tentativas de contribuir especialmente para a luta dos Munduruku, mas também de levantar a reflexão do que é e para onde caminha a civilização ocidental. Do mesmo modo como o público estrangeiro tem reagido, espero que aqui no Brasil esse trabalho tenha força para mobilizar o sentimento de indignação contra as violações que os povos da Amazônia tem sofrido, mas que ao mesmo tempo ascenda a importantíssima e tão necessária chama da solidariedade. Na minha opinião, o desdém e o abandono são inimigos tão grandes quanto as próprias estruturas opressoras.
“Índios Munduruku: Tecendo a Resistência” é um projeto feito integralmente a fruto de trabalho colaborativo e solidário. Todo o financiamento que alcançamos, que foi bastante enxuto, foi empregado nos gastos de viagem. Através de outros trabalhos que desenvolvi, também ligados direta ou indiretamente à luta dos Munduruku, como o registro do trabalho do linguista francês Pierre Pica, o video para a BBC, e um video-clip que será lançado no primeiro trimestre do ano que vêm em parceria com a Survival International de Londres, consegui levar adiante o processo de pós-produção e promoção desse projeto.
O vídeo está programado para ser lançado online na próxima segunda-feira, dia 17 de novembro, no website do Latin America Bureau, em inglês, e no Brasil, aqui no site do Índio é Nós, em português. O projeto está registrado com a licença ‘creative commons’ para livre acesso e reprodução sem fins lucrativos, e a ideia é que sua difusão seja feita o mais amplamente possível. O desejo é que as pessoas se apropriem desse material para fazer projeções em suas escolas, universidades, centros de trabalho, bairros, e esperamos que muitas mais pessoas se unam ao povo Munduruku em luta de justiça, paz e do bem estar dos povos originários desse país. Afinal, eles são os melhores guardiões de nossas florestas, e dessa forma contribuem como ninguém a que todos nós possamos sobreviver nesse planeta.
Outros links:
Trailer: https://vimeo.com/106132350
Teaser: https://vimeo.com/107204872
Video para a BBC: https://vimeo.com/103713645
Facebook: mundurukuindians
Twitter: @mundurukubrazil
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Mais informações e o vídeo completo em: