A ascensão de uma nova política de massas? Entrevista especial com Leandro Karnal

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“Nós não temos, no momento, um partido de esquerda, no Brasil, viável em condições eleitorais. O que nós tivemos no Brasil em alguns momentos, com Lula ou João Goulart, foi um certo reformismo pequeno-burguês de centro-esquerda que, querendo manter a estrutura central capitalista, fez certos ajustes na máquina”, afirma o historiador.

Patricia Fachin, em IHU-Unisinos

Lembrando Borges de Medeiros, presidente do Rio Grande do Sul por 25 anos durante a República Velha, o historiador Leandro Karnal avalia a reeleição da presidente Dilma e os 16 anos de mandato petista à frente da Presidência da República como um fenômeno recorrente da tradição brasileira: a “manutenção do poder”. Contudo, a reeleição de Dilma também está associada a “um poder de sedução de um modelo de distribuição de renda”. É isso que explica, por exemplo, a vitória apertada da presidente no segundo turno das eleições. “Foi mais difícil exatamente porque o modelo de sedução que o PT exerceu está sofrendo alguns problemas, em função do fim da onda de crescimento econômico mundial e interno também”, comenta.

Para o historiador, o resultado das eleições “foi bastante próximo da realidade do pensamento brasileiro, em que diante de princípios, como ética, sepultados já, talvez, há duas eleições, o princípio que importa é: Minha vida melhorou em relação há quatro anos ou piorou?”. Ele pontua que a “grande decepção” do período eleitoral foi com junho de 2013, “na medida em que os atuais candidatos que digladiaram a cena final são representantes dos poderes que estão aí desde o fim do século passado”.

Apesar das tentativas de chamarem atenção para dois projetos políticos distintos durante as eleições, Karnal enfatiza que PT e PSDB representam um mesmo projeto com pequenas diferenças, as quais podem ser percebidas, por exemplo, na condução da política externa. “A política externa de Fernando Henrique caracterizava mais o pragmatismo clássico do Itamaraty, e a política externa de Lula voltou ao terceiro mundismo da era de Jânio Quadros, ou seja, de se aproximar de países ideologicamente próximos, mas economicamente irrelevantes. O resultado foi uma mudança na política externa, mas política externa não faz parte do nosso debate político, ninguém em comício tem qualquer opinião sobre o Mercosul, por exemplo”, alfineta.

Na entrevista a seguir, concedida à IHU On-Line pessoalmente, por ocasião de sua participação no XVI Simpósio Internacional IHU – Companhia de Jesus. Da supressão à restauração, Karnal comenta a história recente do Brasil, traçando relações com as heranças da colonização e da Velha República, com a ditadura militar e com a política “messiânica” da América Latina. “Continuamos testando políticas que são questionadas pelos seus autores: o socialismo como projeto francês ou alemão do século XIX não é mais discutido de fato nesses lugares, mas tudo que não deu certo na França, como espiritismo, positivismo e socialismo, é muito discutido aqui”, critica.

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Foto: Suélen Farias

Leandro Karnal é graduado em História pela Unisinos, com doutorado em História Social pela USP. Trabalha há muitos anos com capacitações para professores da rede pública e publicação de material didático e de apoio para os professores. Atualmente é professor da Universidade Estadual de Campinas – Unicamp, membro de corpo editorial da Revista Brasileira de História e da Revista Poder & Cultura. Entre suas publicações, destacamos A Escrita da Memória – Interpretações e Análises Documentais (São Paulo: Instituto Cultural Banco Santos, 2004) e Cronistas da América (Campinas: Unicamp, 2004). Confira a entrevista.

IHU On-Line – Qual é o significado histórico e político da reeleição do PT no governo federal?

Leandro Karnal – Tradicionalmente os partidos que estão no poder conseguem a reeleição. No caso de São Paulo, o PSDB vai a 20 anos de controle do estado mais rico e populoso da Federação. No caso do Brasil, o PT completará no mínimo 16 anos de controle. Lembrando que nós estamos em um Estado onde Borges de Medeiros governou por 25 anos seguidamente com eleições baseadas em fraudes – que não é o caso de agora –, pode-se dizer que há uma tradição de manutenção do poder. Na verdade nós tendemos a isso.

Mas a reeleição e a onda de reeleição do PT  muito mais fácil para Lula e um pouco mais difícil para Dilma  nasce de um poder de sedução de um modelo de distribuição de renda, de um momento econômico internacional muito bom, que também favoreceu em algum sentido a segunda eleição de FHC. Então, temos uma tradição de continuísmo de poder que só é alterada mediante uma proposta realmente alternativa, realmente diferente em um momento de crise.

Na minha interpretação  e há motivos meus para isso , nós nunca tivemos uma eleição com dois projetos tão parecidos. Talvez por isso o ódio nessa eleição tenha sido tão forte, porque os candidatos se pareciam muitíssimo e tinham que demarcar seu espaço num discurso de ódio. Então, essa reeleição foi mais difícil exatamente porque o modelo de sedução que o PT exerceu está sofrendo alguns problemas em função do fim da onda de crescimento econômico mundial e interno também.

IHU On-Line – As eleições foram marcadas por uma disputa e separação entre “nós e eles”, inclusive demarcada pelos candidatos, e seguida desse “discurso de ódio”. Em artigo recente o senhor comentou que o ódio diz mais sobre nós do que sobre o objeto odiado. Como, nas eleições, o objeto odiado ficou de lado e os “discursos de ódio” apontaram algo sobre os políticos e os eleitores?

Leandro Karnal – Psicanaliticamente o ódio significa sempre o que eu digo de mim: quando tenho ódio baseado em algum preconceito, por exemplo, misoginia contra as mulheres, racismo contra grupos distintos étnicos, negros ou outros, ou homofobia, estou expressando, na verdade, uma posição daquilo que sou, raramente sobre o outro. Se nós tivéssemos dois candidatos, por exemplo, um de extrema-esquerda pregando reforma agrária e ocupação das fábricas e piquetes e, de outro lado, um candidato de extrema-direita pregando militarização do Estado etc., seria compreensível haver aqui o que houve nas eleições de 1932 na Alemanha, ou o que houve em outros momentos, em que, por exemplo, comunistas e nazistas disputaram a atenção do eleitorado alemão.

Nós tínhamos dois candidatos defensores de um modelo capitalista: um com mais participação do Estado e outro com menos participação do Estado; dois candidatos marcados pelas denúncias de falta de ética política em seus respectivos partidos e em suas experiências eleitorais; dois candidatos que tinham um discurso muito próximo, que prometiam ambos manter o Programa Bolsa Família. Logo, a semelhança entre os candidatos é provavelmente um elemento mais forte do que a diferença. Não podendo centralizar de fato no outro, ficamos levantando nos discursos e debates essa questão.

Diria que parte da elite brasileira tardiamente está interpretando o projeto do PT como um projeto de diminuição do seu domínio histórico, o que não temos até o momento nenhuma base para dizer, porque poucos governos favoreceram tanto o capital bancário quanto o governo do PT. Na verdade os bancos nunca estiveram tão bem na sua existência como nos oito anos do governo Lula. Nenhum dos três governos, FHC, Lula e Dilma, dissolveu, atacou ou destruiu a ideia do latifúndio, que continua sólido. O agronegócio está em expansão há mais de três décadas no Brasil e não sofreu nenhum impeditivo a esse respeito.

Podiam discutir política industrializante, já que a indústria caiu muito na participação total do PIB brasileiro, mas isso pode ser mais discutido em Pequim do que em Brasília, já que a desindustrialização brasileira é um fenômeno muito mais chinês do que local.

Ódio: um exercício psicanalítico

Todas essas questões mostram que o ódio é um exercício muito mais psicanalítico do que político, ou seja, qual é a diferença entre Grêmio e Internacional fora as cores?

Absolutamente nenhuma, mas no momento que eu constituo o gremista como “ele” e o “colorado” como “nós”, ou o contrário, se eu sou gremista, nesse momento estou dizendo que precisa estabelecer o outro como ponto de contraposição para que eu possa existir. Não existiriam os amores se não existissem os ódios. O meu amor exclui como o ódio exclui, são facetas da mesma questão. Quanto mais eu tiver identidade com um projeto, mais eu odeio, e se eu não tiver identidade com algum projeto de time, de partido ou de opção sexual, então meu ódio será ainda maior.

IHU On-Line – Para o senhor, PT e PSDB são dois partidos com um mesmo projeto. Contudo, durante as eleições, parece que houve um esforço de vários intelectuais em apontar o PT como um partido extremamente diferente do PSDB, inclusive fazendo alusão a sua história progressista e de esquerda. Considerando que os dois partidos têm o mesmo projeto, o senhor os caracteriza como social democracia? E como explica a resistência de alguns intelectuais em continuar identificando o PT como partido de esquerda, depois de tudo que se viu nos governos Lula e Dilma e que o senhor acabou de mencionar?

Leandro Karnal – O PT nasceu em um movimento histórico muito importante de greves autônomas, coisa muito rara no Brasil, já que o sindicalismo havia sido domesticado a partir do Governo Vargas. O PT nasceu em um momento de greves no ABC, quando Lula foi enquadrado na lei de Segurança Nacional, na transição do governo Geisel para o governo Figueiredo no final da ditadura. O PSDB nasceu como uma crítica dentro do PMDB ao centrismo fisiológico do PMDB entre intelectuais como Fernando Henrique, que puxavam para uma articulação, e futuramente Covas e Alckmin, que puxavam para uma articulação chamada de centro-esquerda.

A partir da experiência histórica os dois deram guinadas: hoje o PSDB é muito mais conservador do que era na sua origem e o PT é muito mais conservador do que era na sua origem. Para poder governar, Lula teve de tirar a palavra revolução do programa do partido, para poder se tornar confiável, Lula teve de fazer a carta aos brasileiros dizendo que a fidelidade aos contratos e acordos internacionais seriam mantidos. Para poder governar, os governos têm de fazer exatamente o que fez o Marechal Deodoro da Fonseca ao proclamar a República  e ninguém acusaria o Marechal Deodoro de ser de esquerda , ou seja, garantir aos nossos credores que todas as dívidas seriam pagas e que o novo governo havia derrubado um imperador, mas que continuaria a ser exatamente a mesma coisa. Essas mudanças foram ironizadas pelo livro de Lampedusa, O Leopardo, quando o príncipe de Salina diz: “É preciso mudar para que tudo permaneça como sempre esteve”.

A renovação e a crença nas mudanças estruturais

A renovação de dois partidos que não representam risco algum para a grande propriedade e para os bancos poderia ser vista como uma estratégia conservadora, fazendo crer ao eleitor que a vitória de um ou de outro alteraria brutalmente as relações. Há novidades, nem tudo é sempre igual. O governo que começa agora em janeiro de 2015, fosse ele do Aécio ou seja o da Dilma, é um governo que vai enfrentar um quadro econômico difícil; a chance de desgaste é maior do que era há 10 anos. Logo, pelas condições atuais que se agravam, é pouco provável que esse governo saia com a mesma “aura” ou “auréola” que saíram os anteriores.

Os segundos governos foram sempre piores: Fernando Henrique, Lula e provavelmente Dilma, foram sempre piores do que os primeiros governos, ou seja, não há uma renovação radical.

Quanto aos intelectuais que mudam de lado, acredito que existe uma lógica possível: você apoia, como eu já apoiei outros partidos no passado, dentro de determinadas condições; vendo a atuação deste partido, você retira seu apoio. Não retirar o apoio diante de mudança caracteriza um processo mental estranho. O que as pessoas devem fazer é explicitar que optaram por “x” em função das condições “x”; vistas as condições “y”, eu deixo de apoiar.

Então, isso é natural. Fernando Henrique teria pedido que se esquecesse um pouco da sua defesa feita em livros mais à esquerda na sua época de titular de Sociologia na USP, e certamente o governo Lula teve que fazer total amnésia de promessas feitas quando o Lula era deputado federal – um dos mais votados da história do Brasil – e classificou o Congresso como um acúmulo de picaretas, o mesmo Congresso onde ele estava e com o qual ele teria que negociar e garantir a maioria abertamente.

Maquiavel nos ensina que política não é a discussão do bem comum, mas é a discussão do poder, o que está em jogo aqui é um exercício do poder, e não do bem comum. Para garantir o exercício de poder tenho que fazer o discurso do bem comum, mas nenhum dos partidos com chance de formar um presidente neste momento tem qualquer prática visando à ideia de bem comum. É claro que uns têm uma propaganda mais voltada à classe “x” ou à classe “y”. E a classe média, a classe alta ou outras formulam identidades que são fruto muito mais da estética do que identidades políticas.

IHU On-Line – A herança da ditadura certamente influenciou na constituição do PT e do PSDB. Esses partidos ainda sofrem influências daquele período? Em que sentido?

Leandro Karnal – Traduzindo em um plano psicológico, seria como devolver a pergunta a você e a mim: ter sido filha dos seus pais a influencia de alguma forma por mais que você odeie essa ideia? E vai piorar com o tempo, posso garantir. Ou seja, se você tentar lutar contra, aí é que elas aparecem. Ninguém supera a história ou a genética. Termos sido colônia de Portugal, sermos um país dominantemente católico, termos tido pouca participação política, termos tido espasmos democratizantes, como entre 1946 e 1964 e de novo a partir de outubro de 1988 com a redemocratização via Constituição, e 1985 com a eleição direta de Tancredo e Sarney, são marcas muito grandes.

Afinal, fomos um governo autoritário na maioria absoluta dos anos da nossa existência. A democracia é jovem, nós temos pouca experiência em ouvir opiniões contraditórias. Temos um país onde quando ocorre uma eleição mais disputada como esta, dizemos que o país está dividido. Na primeira eleição de Bush em comparação com Al Gore, que disputou com ele as eleições de 2000, a diferença foi inferior a 0,8% entre os dois no voto popular e não no colégio eleitoral. Resultado: nós achamos, tal como o golpismo conservador da década de 1940-50 achava, que há sempre motivos para impeachment, para deposição etc. quando nós não vencemos. Essa é a nossa pouca tradição com a posição adversária.

IHU On-Line – Em lembrança aos 50 anos do Golpe de 1964, vários historiadores e sociólogos apontaram a militarização brasileira como uma herança da ditadura. Concorda com essa análise?

Leandro Karnal – Nós temos uma herança que tem a ver com os militares, mas vamos tentar diminuir um pouco esse peso: não tem a ver só com os militares, tem a ver com toda a nossa história tradicional. Nós não temos tradição democrática, essa tradição é nova. Não interpretamos as discussões democráticas e isso atinge da Presidência da República ao guarda de trânsito: as autoridades exercendo qualquer poder são profundamente autoritárias, especialmente os pequenos poderes. Em frase atribuída a Pedro Aleixo, vice do governo Costa e Silva, quando se opôs ao AI-5, perguntaram se ele se opunha ou desconfiava do presidente da República no exercício do AI-5, e Pedro Aleixo teria respondido: “Do presidente não, mas eu tenho medo do guarda da esquina, porque as pequenas autoridades são muito autoritárias no Brasil”.

Por algum motivo  intuitivamente acho isso , os funcionários públicos, quase todos, os guardas, quase todos, os delegados etc. tratam a mim como um incômodo na sua função, e não como um patrocinador do seu salário ou usuário do serviço para o qual eles foram designados e estão lá por isso. Quer dizer, eu sou a causa de eles existirem como serviço, mas eles consideram a minha presença no Cartório, no Sistema Unificado de Saúde, ou no trânsito, um incômodo à paz deles. Essa atitude não tem a ver com militares, é uma atitude cultural, estratégica, antiga e que é muito anterior a 1964.

Herança militar

De todo modo, é claro que os militares aumentaram sua importância e participação. Mas vamos lembrar que o Golpe de 1930, quando Getúlio derrubou Washington Luís e o presidente eleito, Júlio Prestes, entre os motivos para que o Exército liderado por Góes Monteiro e outros apoiassem Getúlio em 1937, em particular estava o esvaziamento das brigadas militares, ou seja, das milícias, que se chamam hoje em todo o país de Polícia Militar.

Só no Rio Grande do Sul ainda se chama de Brigada Militar  ainda se mantém o nome militarizado da República Velha , ou seja, os PMs, as polícias militares, os brigadianos (expressão gaúcha histórica) são já uma herança oligárquica. E uma origem disso está no Código que durante a Regência criou os coronéis, a Guarda Nacional e os coronéis no início da nossa Regência, ou seja, década de 1830 do século XIX.

Haver militarização do país também está ligado aos militares, mas não apenas a Castelo Branco, Costa e Silva, Médici, Geisel e Figueiredo. Eu me refiro à ideia de militares muito mais antiga, do salvacionismo tenentista, da vontade de que a nação seja imatura e precise de amparo e de cuidado, da desconfiança das elites da capacidade de discernimento do povo, da demofobia, do horror à natureza deste povo que é simpático, é benevolente, mas é absolutamente, na visão das elites, estúpido para se gerenciar, e que quando vota contra a minha vontade está equivocado, foi iludido, votou em nome do Bolsa Família.

Metade dos votos da reeleição de Dilma veio do Sudeste rico, e não do sertão Nordestino, ainda que os nove Estados do Nordeste tenham dado maioria à Dilma. Mas a metade desses votos, considerando que o peso eleitoral do Brasil também se concentra no Sudeste pelo tamanho da população, não vem dos grotões.

Há muita gente, muitas opções que se escondem ou estão junto com essa ideia de que existe uma militarização. A militarização não corresponde só a um projeto corporativo. Ela corresponde a um desejo especialmente da classe média, média baixa e alta do Brasil de colocar mais polícia na rua, de militarizar mais, ou seja, a polícia nos lugares certos e exercendo a violência nos lugares certos, a coerção e a violência nos lugares certos segundo essa interpretação.

IHU On-Line – A falta de tradição democrática no Brasil explica as passeatas que pedem o impeachment da presidente logo após as eleições? Diante dos escândalos da Petrobras, já há razões para pedir o impeachment dela?

Leandro Karnal – Esta é uma discussão pós-eleitoral. Não há motivos no momento para o impeachment. Se abrirem uma comissão que verifique a participação da presidente, por exemplo, em fraudes da Petrobras, sim, mas não há no momento motivos para impeachment. Essas passeatas foram muito pequenas.

IHU On-Line – Junho de 2013 repercutiu nas urnas?

Leandro Karnal – Na verdade a grande decepção é com junho de 2013: era pelos vinte centavos, sim, porque encerrada aquela campanha e suspensos os aumentos dos ônibus, a campanha se esvaziou e não há nenhuma herança dos movimentos de junho; na medida em que os atuais candidatos que digladiaram a cena final são representantes dos poderes que estão aí desde o fim do século passado. Resultado: não era por algo novo, já que a personagem nova, grosso modo, que seria a Marina, foi derrotada nesse processo. Logo, aquelas multidões nas ruas nos fazem esquecer que se em São Paulo, em determinado momento, em junho de 2013, no Largo da Batata talvez houvesse, entre ali e a Marginal Tietê, 100 mil pessoas na rua, nós devemos sempre ter presente que isso significa que 11 milhões e 900 mil paulistanos estavam em casa, muito tranquilos e provavelmente condenando aquela passeata.

Minoria silenciosa

Nós esquecemos o conceito de maioria silenciosa que reelegeu Nixon nos EUA em 1972 e elegeu Charles De Gaulle na França, após os movimentos de maio de 1968; ou seja, aquela maioria que estava assistindo à televisão em São Leopoldo ou em Porto Alegre, que olhava os movimentos, que pegou o seu jornal, que viu as notícias e acha tudo isso um bando de “arruaceiros”, e vai votar em alguém que garanta a manutenção do status quo, mesmo que seja uma pessoa vitimada por esse status quo.

Então, pensando nos movimentos de rua, devemos sempre lembrar que quando há uma assembleia de um sindicato com 100 motoristas, existem dois mil que não foram na assembleia. Essa maioria silenciosa é um objeto novo da sociologia e deveria ser alvo de mais debate, porque nós temos dificuldade de identificar essa maioria silenciosa.

Existe um reacionarismo difuso na sociedade brasileira, que vai de pobres a ricos, que vai de pessoas muito simples até pessoas muito poderosas quanto à formação ou à posse de bens, e esse reacionarismo difuso é a favor da pena de morte, da diminuição da maioridade penal, de ataques a minorias e assim por diante. O Congresso, que é fruto de uma eleição ainda não polarizada entre Dilma e Aécio, ficou ainda mais conservador do que já é. Houve uma “direita volver” no Congresso e as personagens que não representam esse pensamento como, por exemplo, o deputado Jean Wyllys do PSOL do Rio de Janeiro, representante do movimento LGBT, são hoje uma voz isolada em meio a dezenas de candidatos conservadores e contrários ao mesmo projeto. Nesse ponto, isso não tem a ver com a polarização.

Há quem diga que o movimento de junho de 2013 trouxe uma nova direita, uma direita parecida com o Tea Party dos EUA, uma direita contrária à participação político-partidária, mas favorável à interferência no poder e ao impedimento de governança quando ela é contrária a isso, que não tem uma proposta de tomar o Estado, tem só uma proposta de derrubar a bastilha. É muito interessante, porque isso é uma novidade. Se isso é verdade, o resultado de junho de 2013 seria a gestação do ovo da serpente fascista, e não a maior democratização, mas isso é uma hipótese ainda a ser verificada.

IHU On-Line – Não vê reações de Junho de 2013 nem nas abstenções?

Leandro Karnal – A abstenção numericamente não foi mais expressiva do que as históricas; não tivemos uma disparada. Por que as abstenções estiveram na imprensa e na nossa memória? Porque esse é um momento em que a falta à votação é considerada traição por um dos dois lados. Só que se você lembrar que as eleições de FHC e de Lula têm índices bem próximos dos atuais, não houve uma disparada. E, se esse movimento tivesse representado isso, uma nação que se abstém, teria sido um fracasso dessa ideia, já que esses movimentos queriam um novo Brasil. E um novo Brasil não se faz com abstenção.

IHU On-Line – Abstenções, apesar de serem justificadas como um “voto crítico”, são ruins politicamente?

Leandro Karnal – É ruim, mas é também fruto de uma experiência autoritária que é o voto obrigatório. Essa experiência típica de terceiro mundo, inexistente no primeiro mundo, dizem que é para garantir que não apenas os “conscientes” votem, já que um voto livre faria que apenas pessoas com algo a dizer fossem às urnas. Como todos têm de ir às urnas, a maioria pensa desse jeito. Nós temos uma política hoje diferente do passado, muito mais baseada na imagem, no marketing, na propaganda, onde o especialista em marketing político é muito mais importante que o elaborador de políticas. Essa política que prepara a aparência do candidato, prepara as suas respostas, coloca “ponto” para ditar respostas aos candidatos, é hoje o dominador dessa política de massa, cuja raiz talvez seja o debate televisivo entre Kennedy e Nixon em 1960, assistido por 70 milhões de americanos. Kennedy, de melhor aparência que Nixon, visto na televisão, foi o vitorioso. Talvez tenha sido o início dessa política de massas. Então, aparência é tudo.

Diria, para o bem e para o mal, que as eleições representaram o exato estado onde estamos politicamente. O resultado foi bastante próximo da realidade do pensamento brasileiro, em que diante de princípios, como ética, sepultados já, talvez, há duas eleições, o princípio que importa é: minha vida melhorou em relação há quatro anos ou piorou? É um pensamento com o fígado e não com o cérebro, essa leitura literal do capítulo 18 de o Príncipe de Maquiavel e provavelmente uma ascensão de uma nova política de massas que nós ainda não digerimos completamente.

IHU On-Line – Nesse contexto, como avalia a atuação da esquerda no Brasil? A esquerda brasileira ainda tem alguma contribuição política a dar?

Leandro Karnal – Primeiro temos de fazer uma distinção entre “esquerda” e “esquerda que se considera esquerda”. Nós temos no Brasil alguns partidos de esquerda: são partidos muito pequenos, muito orgânicos, com muita militância, muita convicção ideológica. Talvez PSTU, talvez PCO, talvez PSOL, talvez movimentos ainda não organizados em partidos.

Certos partidos como o PT, que se consideram de esquerda, não são tecnicamente de esquerda. Esquerda naturalmente é uma posição surgida na Revolução Francesa a partir de comparação  ela é posicional. Certamente o PT está à esquerda de certas facções de alguns partidos, sem sombra de dúvidas. Mas chamar o PT de partido de esquerda obviamente é um recurso de propaganda, como chamavam o PSDB de centro-esquerda. Isso é um recurso de propaganda, nenhum dos dois pode ostentar essa característica.

Nós não temos, no momento, um partido de esquerda, no Brasil, viável em condições eleitorais. O que nós tivemos no Brasil em alguns momentos, com Lula ou João Goulart, foi um certo reformismo pequeno burguês de centro-esquerda que, querendo manter a estrutura central capitalista, fez certos ajustes na máquina, como favorecer questões muito leves e pontuais como o Bolsa Família ou como, por exemplo, reforma agrária de terras devolutas em 1964. Veja, o Bolsa Família não representa nem de longe o potencial de dinheiro gasto com os juros da dívida interna aos grandes bancos, tema que não aparece nas eleições, tema que não é debatido.

Política externa pragmática x política externa de aproximação ideológica

Há diferenças? Há. A política externa de Fernando Henrique caracterizava mais o pragmatismo clássico do Itamaraty, e a política externa de Lula voltou ao terceiro mundismo da era de Jânio Quadros, ou seja, de se aproximar de países ideologicamente próximos, mas economicamente irrelevantes. O resultado foi uma mudança na política externa, mas política externa não faz parte do nosso debate político, ninguém em comício tem qualquer opinião sobre o Mercosul, por exemplo.

O mesmo se vê em governos de esquerda, como a reeleição de Bachelet, no Chile. Ela é reeleita em um país que está dando certo basicamente pela manutenção de um programa que foi gerado na era Pinochet, mesmo sendo uma socialista ligada histórica e familiarmente à resistência à ditadura de Pinochet.

Projetos

Todo o discurso que ocorre no Brasil faz crer, se eu fosse um extraterrestre, que nós estamos na etapa final de uma eleição entre Silas Malafaia e Luciana Genro, quando se justificaria uma polarização, opiniões distintas, porque entre Luciana Genro e Silas Malafaia há dois projetos distintos de sociedade. Então, o que nós temos nesse caso são variações em torno desse tema, a diferença não é muito grande.

As classes dominantes, na sua vasta acepção do termo, têm uma identidade estética e tradicional com alguém como Aécio, que representa, em vários sentidos, um modelo daquilo que se espera, mas é muito mais uma adesão estética do que uma adesão efetiva. É até uma injustiça das classes dominantes com o PT, como tiveram um dia com Getúlio Vargas, outro reformista de tendência pequeno-burguesa. Como elaborar um Estado que dê aparência de novo e seja eleito e em nome da maioria, que é a suprema forma de dominação desde que Tocqueville criticou as democracias, exerça um poder muito concentrado nas mãos de poucas pessoas, a partir de acordos que não têm nada a ver com as urnas?

IHU On-Line – Essa ideia de “reforma de pequeno burguês” também apareceu com Tancredo Neves durante a ditadura?

Leandro Karnal – Sem sombra de dúvida, até porque Tancredo provavelmente, em quase todos os campos, era mais conservador que Figueiredo, a quem ele sucederia. Tal como provavelmente José Serra candidato tinha ideias mais à esquerda que as de Lula, com quem ele se bateu. Por quê? Porque Tancredo era o homem que representava a campanha das “Diretas Já”, representava a volta a um sistema e que aceitou jogar dentro desse sistema, aceitou o colégio eleitoral e aceitou vencer Maluf na última hora favorável à oposição. Mas Tancredo se tornou vitorioso nas eleições indiretas em 1985 porque ele era a oposição confiável; nem militares e nem outros teriam permitido uma oposição não confiável.

Quando digo pequeno-burguês, não me refiro à expressão marxista clássica, até porque não sou marxista, mas é a ideia de que as reformas são de caráter essencialmente moral, essencialmente epiteliais e devem corrigir a função do Estado especialmente do ponto de vista da moral. É uma ideia conservadora na base, é uma ideia que gosta mais da maquiagem do que da plástica, de passar a tinta do que de interferir da estrutura do rosto, e que se satisfaz com medidas moralizantes. Ela está presente nos seis milhões de eleitores de Jânio Quadros, porque Jânio Quadros visitava repartições de madrugada, porque Jânio Quadros proibiu o biquíni nos concursos de miss, porque Jânio Quadros proibiu a briga de galo, corridas de cavalos durante a semana, porque Jânio Quadros representa um código moral que a maior parte desse eleitor reconhece como código correto.

Geralmente, esse eleitor pequeno-burguês, que pode ser rico ou pobre – e aí que eu estou distinto dos marxistas, que identificam o pequeno-burguês a uma classe e eu identifico com um estado de espírito –, está atrás de algumas medidas que, quando realizadas, não se olha o resto.

Por exemplo, Collor governador cassou o salário de marajás em Alagoas, logo, Collor é apto a ser presidente da República, quando Collor, na verdade, mesmo não sendo alagoano de origem, era o representante clássico, tradicional e pétreo das elites tradicionais de coronéis do Nordeste. Ou seja, ter tido indisposição com seus semelhantes não quer dizer que ele deixasse de ser um desses semelhantes. Esse grupo pequeno-burguês viu em Collor o caçador de marajás, auxiliado por alguns organismos de imprensa, da mesma forma que Fernando Henrique é o intelectual, da mesma forma que Lula é o homem sofrido que cresceu sozinho. E, constituindo essas personagens históricas, você vai constituindo um modelo político que possa atuar na manutenção das coisas como elas são.

IHU On-Line – A política acaba sendo desenvolvida a partir dessas personagens com quem as pessoas se identificam?

Leandro Karnal – Sim, com as quais a sociedade se identifica, e não apenas por uma questão, de novo, como querem os marxistas, de dominação econômica, mas porque a maior parte, por inércia ou por simples continuidade, prefere a manutenção das coisas como elas sempre foram; ou como diz Christopher Hill, sobre o período de agitações da Inglaterra do século XVII: “Quando se restaura o rei, finalmente a ilha da Grã-loucura volta a ser a ilha da Grã-Bretanha”, ou seja, o Rei garante a volta das coisas como elas eram e como elas sempre deveriam ter sido e cada um em seu lugar.

Há ainda uma falta de adaptação de uma parte da população a fenômenos de distribuição, como a ascensão de classes baixas aos voos de avião, como a presença nos aeroportos de pessoas estética ou ideologicamente identificadas com grupos que antes não tinham acesso aos aviões, e isso causa incômodo naqueles tradicionais que têm de compartilhar desse espaço.

Mas a caracterização de uma campanha como a campanha dos ricos contra os pobres e da campanha da esquerda contra a direita, isso eu posso dizer categoricamente como historiador, é uma cortina de fumaça, não houve choque entre ricos e pobres, não houve choque entre esquerda e direita, não houve choque entre um projeto modernizador e um projeto arcaizante. Os dois, ao seu lado, eram modernizadores conservadores, e os dois ao seu turno eram arcaizantes, nenhum dos dois modelos era um modelo de mudança.

IHU On-Line – A imagem do PT está associada às políticas sociais e isso teve um peso forte nas eleições.

Leandro Karnal – Exatamente. Políticas sociais que foram possíveis, entre outras coisas, porque o final da inflação gestada a partir do governo Itamar e a partir do governo FHC, com o fim da inflação terminando com a poupança forçada que a inflação representa para os assalariados, passou a significar acesso a consumo ainda na era FHC.

A “revolução do frango” e a “revolução do iogurte” são da era FHC, e os eletrodomésticos e automóveis, da era Lula, reforçadas por políticas efetivas como o Bolsa Família, que matematicamente aumentou a melhoria da distribuição de renda.

Essas políticas se revelaram políticas muito saudáveis, especialmente para o capitalismo. É importante ressaltar que essa política de impedir que as massas saqueiem e que possam ganhar 70 reais por pessoa são políticas muito inteligentes de quem quer manter todos os anéis e todos os dedos. Só uma direita muito fascista e muito reacionária acha que 70 reais são um horror e que estão fazendo os pobres não trabalharem.

IHU On-Line – Voltando ao período da ditadura, as reformas de base propostas por Jango representavam uma mudança naquele período ou também eram políticas de reforma de pequeno-burguês?

Leandro Karnal – A história tem dificuldade em responder no futuro do pretérito, ou “o que teria sido se”, porque nós só trabalhamos com o que foi. Mas sem sombra de dúvida João Goulart e o PTB e a esquerda do PTB que o apoiavam eram tão pouco articulados socialmente, tão pouco expressivos na sociedade como um todo, que sua queda espantou até os Estados Unidos e a direita, já que os camponeses de Julião, já que o PCB e o PCdoB, já que a UNE, já que todos os organismos que alegavam uma força extraordinária, com um simples “clique” deixaram de ter essa força.

Logo, tal como aconteceu em 1935 na Intentona Comunista, tal como aconteceu diversas vezes no Brasil, esse barulho em torno da esquerdização da sociedade era muito pequeno e muito pouco ligado à maioria. Então, vamos pensar: dia 13 de março de 1964, o Comício da Central do Brasil falando de reformas de base e da reforma agrária, por exemplo, e vamos pensar seis dias depois, dia 19 de março, dia de São José, a Marcha com Deus pela Família em São Paulo.

Os dois episódios são marcas expressivas de mobilização no Rio de Janeiro e em São Paulo, e os dois episódios ignoram que a maioria absoluta dos brasileiros não estava nem na Central do Brasil, nem na Marcha com Deus, ainda que a Marcha com Deus tenha reunido muita gente. Em todo caso, se houvesse uma articulação de esquerda efetiva com o povo, algo muito estruturado, a queda de João Goulart não teria sido a facilidade absoluta que foi. A ajuda que os americanos mandaram na Operação Brother Sam, de um porta-aviões com gasolina para os golpistas, não saiu dos Estados Unidos, e a revolução já era vitoriosa. Novidade? Não.

De 9 para 10 de novembro de 1937, Getúlio Vargas fechou o Congresso Brasileiro e poucas horas depois a maioria dos deputados foi beijar a mão de Getúlio Vargas, ou seja, a tradição de seguir o poder, de apoiar golpes, é muito antiga. Analisando o Golpe de 1889 contra Dom Pedro II, usando a expressão de um historiador de um documento da época, “assistimos a tudo bestializados”, porque de novo não temos estrutura de opinião. E quando olhamos para países como Argentina, onde há uma sólida estrutura de emitir opinião, o caos parece ser maior. Ou seja, na Argentina se faz muito mais manifestações. Compare como os argentinos marcharam durante dois anos em função do desastre da Boate Cromagnon em Buenos Aires e como nós esvaziamos rapidamente em função do desastre ocorrido em Santa Maria, que, aliás, continua sendo um fenômeno apenas em Santa Maria; o resto do Brasil ignora solenemente o episódio trágico que matou mais gente do que em Buenos Aires. Em Buenos Aires ocorreram dois anos de passeata que movimentou a Igreja. O Cardeal Bergoglio, hoje Papa Francisco, marchou várias vezes com as pessoas em protesto contra o incêndio da Boate Cromagnon.

IHU On-Line – O senhor costuma dizer que a política na América Latina sempre foi salvacionista, messiânica, individualista, pouco ligada à coerência ideológica. Qual é a origem dessas características tendo em vista a história latino-americana? Como essas características se manifestam nos governos do PT, de Evo Morales, de Hugo Chávez à época na Venezuela?

Leandro Karnal – No caso da nossa tradição, pelo menos desde agosto de 1578, esperamos a volta de Dom Sebastião, porque haverá algum governante que vai tomar o poder e colocar as coisas em ordem. Essa crença messiânica reforçada pelo sebastianismo  e é uma crença que ocorre no Executivo, nunca no Legislativo , às vezes, pode estar associada ao Judiciário, como foi o caso da esperança em Joaquim Barbosa. Mas temos uma esperança histórica na resolução via Executivo. O Executivo é, sem sombra de dúvidas, o ponto fulcral da esperança, até porque os presidentes da América Latina reúnem muito poder. Então, imagina que Cárdenas no México, Perón na Argentina, Getúlio Vargas no Brasil, depois em outro momento Chávez, Evo Morales e outros continuem essa ação.

É uma esperança messiânica, a chave da transformação – e claro que essa opinião foi emitida por um professor , pois ela está muito mais na sala de aula do que no Palácio da Alvorada ou no Planalto, está muito mais na mudança da educação, da formação da cidadania. A mudança de um presidente, na hipótese de um dia o Brasil vir a ser governado por um presidente muito competente, de muito boa intenção e honesto, na hipótese de virmos a ser governados por esse ser que ainda não nasceu, não creio que isso seja suficiente para a transformação do país.

IHU On-Line – Isso significa?

Leandro Karnal – Isso significa que o Executivo não é a fonte das transformações do país. Usando a expressão de um conservador, João Pereira Coutinho, no livro Por que virei à direita, ele diz uma coisa que eu, não sendo de direita, também diria: “A função do governo não é estabelecer o paraíso na Terra; é no máximo evitar o inferno”. A função de um governo não é estabelecer o paraíso, porque o paraíso não é possível em sociedades humanas. Se eu criar uma sociedade perfeitamente igual com todos os direitos iguais, eu continuarei com graus altos de violência, só que por outros motivos. Em sociedades onde a riqueza é imensamente maior, como nos Estados Unidos, um estudante pega a sua arma e massacra metade da escola. Em sociedades como a norueguesa, um jovem vai para uma ilha, pega um fuzil e mata mais de 80 pessoas. Isso em uma sociedade como a Noruega, em que não há problemas sociais, não há questões étnicas gravíssimas, e os políticos vão trabalhar de bicicleta e ganham pouco.

Então, não é a riqueza ou a corrupção que causa violência humana; violência humana é anterior ao projeto político, não será a política que vai redimir. O que a política faz hoje, e bem, é reproduzir os padrões sociais, ou seja, a política é tão corrupta quanto a sociedade brasileira é corrupta, ela é tão pouco inclinada a princípios como a média das pessoas da sociedade é inclinada a princípios. Eu tenho um pessimismo estrutural sobre a espécie humana como candidata ao paraíso, um pessimismo total sobre o papel da política como elemento redentor e uma crença absoluta de que a diminuição desses problemas está em uma mudança educacional, em uma mudança de atitude.

IHU On-Line – Essa mudança de atitude tem a ver com uma revisão da historiografia que talvez influencie o modelo de política que se faz na América Latina?

Leandro Karnal – Se você entender a historiografia como produto dos historiadores profissionais nas universidades, nós podemos rever essa historiografia, mas o efeito dela sobre a sociedade é zero. As decisões que os historiadores têm nos livros jamais chegam nem ao público médio, elas são decisões discutidas dentro de congressos, de um gueto.

IHU On-Line – Mas não contribuem para um discurso geral de senso comum, como esse, por exemplo, de que a América Latina continua esperando um presidente que vai nos salvar.

Leandro Karnal – Quando o livro didático incorpora isso e é feito por aquele segundo esquadrão que faz o livro didático, ou seja, não pelos produtores de conhecimento, mas os divulgadores, pode ajudar mais. Mas, ainda assim, é bem provável que a ideia do brasileiro de política esteja mais ligada à obra de Paulo Coelho do que à obra de um historiador. É provável que a influência de autores como de 50 tons de cinza seja maior sobre o pensamento comportamental do que outro.

Citando outro conservador, Luiz Felipe Pondé, “é provável que o Viagra tenha feito mais pela felicidade humana em 15 anos que Marx em 150”. É bem provável, porque no grande público essas ideias são muito menos presentes. Faleceu na semana passada um grande historiador e filósofo, Leandro Konder, que era um bom tradutor de Lukács e um grande debatedor sobre a tradição lukacsiana do marxismo. Eu sugiro que nós possamos fazer a experiência de perguntar para as primeiras mil pessoas que nós encontrarmos aqui, em uma universidade, sobre a importância de Leandro Konder na interpretação de Lukács e anotar os resultados. Talvez aqui na universidade, na área de humanas, vamos encontrar algumas pessoas que conhecem o nome, ou até uma ideia, mas de novo não é nem minoria silenciosa, é menos que a minoria.

IHU On-Line – Como o senhor interpreta o bolivarianismo e o socialismo do século XXI? Qual é o impacto dessas ideias para a América Latina?

Leandro Karnal – Tanto na Bolívia como na Venezuela, como no Equador, na Argentina, no Chile e no Brasil, práticas de neossocialismo deram origem a uma melhor distribuição de renda: a pobreza absoluta diminuiu em Caracas, cidade que tinha uma das maiores favelas da América Latina. Ao lado de resistências e colapsos, o socialismo venezuelano é muito mais fruto de uma determinada alta do petróleo do que de um projeto muito estruturado. Agora que essa alta do petróleo diminuiu e morreu o seu articulador, a situação é mais complicada.

Como disse Alejo Carpentier, como a “América Latina é a terra das impossibilidades ilimitadas”, tudo que não pode acontecer aqui, acontece muito. Nós continuamos testando políticas que são questionadas pelos seus autores: o socialismo como projeto francês ou alemão do século XIX não é mais discutido de fato nesses lugares, mas tudo que não deu certo na França, como espiritismo, positivismo e socialismo, é muito discutido aqui.

IHU On-Line – E por que essas ideias “pegam” na América Latina?

Leandro Karnal – Pegam porque nós gostamos dessas ideias requentadas.

IHU On-Line – E essas ideias são apresentadas com um “tom de vanguarda”.

Leandro Karnal – Sim, eu acho que é colocado como vanguarda. Por exemplo, há 20 anos discutimos na Unicamp a obra de Michel de Certeau, e de repente eu chego numa instituição em algum lugar do Brasil onde eles começaram a descobrir Foucault e começam a repassar as conclusões de Foucault e não chegam a Michel de Certeau.

Não é que um seja melhor do que o outro, apenas estou datando as obras de dois momentos distintos. Sem falar nos lugares em que estão descobrindo que é um intelectual orgânico no sentindo gramsciano da expressão. Não é ruim você pegar uma ideia independente do tempo que ela tem. A grande questão é que talvez nós estejamos discutindo na América aquilo que a ditadura de Porfirio Díaz discutia no México em 1876 até 1911: se é uma questão de discutir política ou questão de discutir “administración”, porque Porfirio, sendo um ditador conservador, dizia: “más administración, menos política”. Então, na política, para o usuário da iluminação pública, importa muito pouco que o governante seja gramsciano ou que seja neoliberal da Escola de Chicago de Milton Friedman. A ele interessa que a luz acenda.

IHU On-Line – As teorias de Foucault, entre as descobertas na América Latina, pode exercer algum impacto para pensar a política na América Latina?

Leandro Karnal – Foucault está mais próximo do anarquismo do que de um socialismo organizado. Foucault tem um traço niilista, Foucault tem um traço de desconstrução de discursos. Também, dentro da sua lógica em determinado momento, apoiou a revolução do Irã dizendo que o Aiatolá seria o Gandhi do antigo Império Persa. Todos nós em algum determinado momento temos essa ideia.

Foucault é um grande e genial debatedor sobre autoritarismo de discursos e que atacou dois princípios muito fortes, na área de humanas, como a ideia de progresso e a ideia de natureza. Acho muito importante ao evocar essa microfísica do poder e a violência dentro das práticas discursivas. Mas de fato Foucault um pouco despolitizou essa polaridade da década de 1960, mesmo estando ele na chave das manifestações de maio de 1968. Foucault, em todos os campos, é um grande pensador, mas, de novo, como, no campo da política prática, no esgoto da frente da minha casa, o livro História da Sexualidade pode afetar isso?

IHU On-Line – Qual é o papel do intelectual na sociedade?

Leandro Karnal – Então, esse é outro campo muito complexo. Em que medida a intelectualidade tem algum papel na transformação social? Os intelectuais são gestadores de políticas ou simplesmente coveiros de estruturas passadas? Acho que estamos mais próximos sempre do segundo do que do primeiro: os intelectuais são mais organizadores e coveiros do que parteiros de ideias novas. Mas os intelectuais gostam de pensar que são obstetras e divulgam essa ideia.

Tem também um sentido messiânico do papel, da missão, da transformação e tudo que foge disso é dito como alienação. Isso é uma questão complexa a ser discutida, até porque grandes intelectuais como Trotsky foram muito importantes na definição de um processo revolucionário, e a condenação intelectual de uma ideia, como foi acontecendo com o racismo, foi fundamental para que a barbárie do racismo fosse pelo menos contestada judicialmente na sociedade, porque enquanto os intelectuais apoiaram o racismo na França do século XIX, não havia chance de vencer isso. Em todo caso, os ditadores nos levam muito em conta, já que um dos grupos mais atingidos por uma ditadura são os intelectuais. Então, acho que os ditadores nos dão muita importância, mas as democracias, não.

Enviada para Combate Racismo Ambiental por Ruben Siqueira.

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