Projeto de assentamento Areia, em Trairão, não pode ser considerado autossuficiente porque faltaram investimentos e atendimento da legislação, diz recomendação
O Ministério Público Federal (MPF) encaminhou notificação à superintendência do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) no oeste do Pará em que recomenda a anulação da medida que considerou consolidado o Projeto de Assentamento (PA) Areia, localizado em Trairão, na região da rodovia BR-163.A consolidação de um assentamento é a declaração oficial de que o assentamento não precisa mais do apoio direto das políticas públicas para a reforma agrária porque é autossuficiente em seus aspectos sociais, econômicos e ambientais. Para o MPF, no caso do PA Areia a consolidação ainda não ocorreu.
Criado em 1998, o assentamento foi considerado consolidado apenas quatro anos depois, sem a devida conclusão de investimentos por parte do Incra, sem a implantação de obras de infraestrutura e sem o atendimento da legislação.
“A chamada ‘consolidação’ de um projeto de assentamento somente pode ocorrer em um momento em que as famílias assentadas contam com uma série de benefícios – vale dizer, um conjunto de estruturas básicas – tais como água, estradas, energia elétrica, habitação, condições de trabalho, bem como o título de domínio a pelo menos cinquenta por cento dos beneficiários, excetuados Projetos Agroextrativistas e Projetos de Desenvolvimento Sustentável”, destaca a recomendação assinada pela procuradora da República Janaina Andrade de Sousa.
Conforme relatório produzido por técnicos do próprio Incra, a consolidação do assentamento não foi precedida de disponibilização de infraestrutura básica (água, energia, estradas de acesso), não houve a titulação mínima de 50% das parcelas e não houve quaisquer providências em relação às etapas seguintes à consolidação. Para o MPF, “a consolidação do PA Areia acarretou o regresso das condições de vida dos beneficiários da reforma agrária, como, por exemplo: baixos níveis de bem-estar; níveis incipientes de produção; condições de difícil sustentação das famílias; venda, abandono e reconcentração das parcelas; e conflitos com violência.”
Segundo o MPF, a consolidação do projeto, ocorrida em 2002, carece de fundamentos legítimos e contraria normas e dispositivos legais. Além de recomendar a anulação da resolução que considerou o PA consolidado, a procuradora da República autora da notificação recomendou à superintendência do Incra no oeste do Pará que a gestão do assentamento seja retomada até que a área tenha condições efetivas de ser emancipada.
Assim que receber oficialmente a notificação, o Incra terá dez dias para se manifestar. Se a resposta não for apresentada ou for considerada insuficiente, o caso pode ser levado à Justiça.
Conflitos – Com a consolidação e abandono do projeto pelo Incra, parte do assentamento nunca foi implantada, com lotes sem acesso e sem qualquer infraestrutura. Já as áreas onde o Incra atuou antes da consolidação passaram a ser disputadas entre os assentados, grileiros e madeireiras que controlam o acesso ao assentamento e utilizam esse acesso como porta de entrada para a retirada ilegal de madeira em unidades de conservação da Terra do Meio, como a extração de ipê da Floresta Nacional do Trairão e da Reserva Extrativista Riozinho do Anfrísio por meio de uma extensa rede de estradas ilegais abertas no meio da floresta, conforme detalha a nota técnica do Instituto Socioambiental “Evolução da extração de madeira ilegal na Resex Riozinho do Anfrísio”.
Em 2011, os agricultores João Chupel Primo e Júnior José Guerra denunciaram que quadrilhas chegaram a transportar, em um único dia, cerca de 3.500 metros cúbicos – o equivalente a 140 caminhões carregados de toras e 3, 5 milhões de dólares brutos no destino final -, a maior parte ipê, extraídos das unidades de conservação e transportados por dentro do assentamento.
Chupel e Guerra haviam denunciado o esquema ao Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio), à Polícia Federal, à Secretaria Geral da Presidência da República, ao Ministério Público Federal, ao Ministério Público Estadual e à Polícia Civil do Pará. Por denunciar este crime, logo em seguida às denúncias João Chupel Primo foi assassinado e Júnior José Guerra teve que sair da região para não ter o mesmo destino.
Em 2012, o MPF entrou na Justiça Federal em Altamira com ação para pedir garantia de proteção para Júnior José Guerra. A ação judicial foi o último recurso do MPF para obter a proteção, depois de vários pedidos que não foram respondidos ou que foram recusados – caso do Programa Estadual de Proteção aos Defensores de Direitos Humanos do Pará (PEPDDH), que considerou que o ameaçado não preenche as características de uma liderança ameaçada.
A Justiça decretou sigilo em relação às informações sobre a tramitação do processo.