Elaíze Farias, Amazônia Real
A decisão da Câmara de Conciliação da Advocacia Geral da União (AGU) sobre a remoção das famílias da Comunidade Quilombola do Tambor foi apresentada em abril deste ano, quando uma equipe da superintendência regional do Incra esteve no local. Segundo os próprios moradores, a decisão foi apresentada de maneira “vaga” e não foi aceita pela comunidade.
“Vieram aqui e a gente já foi falando que ninguém quer sair. Nos disseram que as famílias ou iriam para Novo Airão ou para a Reserva Extrativista Unini. Unini faz fronteira com o Jaú, mas não tem mais área para receber as famílias. E ainda é uma área de várzea, que alaga, vai tudo para o fundo. Aqui no Tambor é terra firme, as famílias estão acostumadas com esse ambiente. E se for para a cidade, o que vai acontecer com as famílias? Vão ficar à mercê de outra realidade, sem experiência de viver em cidade. No Tambor, apesar de ser distante, as famílias têm bem estar, não passam fome, tem comida, tem peixe, tem roça”, diz Sebastião Ferreira, uma das principais lideranças do Tambor e atuante desde o início do processo pelo seu reconhecimento como quilombola.
O antropólogo João Siqueira, que trabalhou no procedimento de delimitação territorial da comunidade quilombola do Tambor, diz que considera a proposta de remoção dos moradores um dano que irreparável para manutenção do modo de vida do grupo.
“Não há, na região que fica no entorno do perímetro do Parque Nacional do Jaú e também na sede do município, área de mesma equivalência agronômica-ambiental que viabilize o modo de vida a que esse grupo está tradicionalmente vinculado”, afirmou Siqueira.
Indefinição preocupa
Ma a indefinição associada à resistência dos moradores deixa apreensivas as famílias do Tambor. José Alberto Nascimento, presidente da Associação dos Moradores Remanescentes de Quilombo da Comunidade do Tambor, tem dúvidas sobre o real posicionamento dos órgãos, sobretudo do Incra. “O Incra diz que está do nosso lado, mas tanto o Incra quanto o ICMbio, são órgãos federais. Brigam entre eles mesmo”, diz Nascimento.
Os irmãos Marivaldo Oliveira, 34, e Josué Oliveira, 25, respectivamente vice-presidente da comunidade e vice-presidente da associação, se ressentem da indefinição e temem pelo futuro dos filhos.
“Dizem que querem tirar a gente daqui. Mas eu acho que é o pessoal do ICMBio lá de ‘fora’, dos que não conhecem como a gente vive”, afirma Marivaldo, referindo-se aos de “fora” como a estrutura do órgão sediada em Brasília, para distinguir a estrutura sediada em Novo Airão, onde está o escritório do órgão, cuja uma das atribuições é a gestão do Parque Nacional do Jaú.
“Aqui não temos perturbação. Temos fartura e não precisamos gastar muito. A única dificuldade é a distância. Se tivéssemos uma embarcação boa, seria mais fácil”, diz Josué. Os irmãos Marivaldo e Josué Oliveira são casados, respectivamente, com as irmãs Aldeniza Cardoso de Andrade, 28, e Aldinete Cardoso de Andrade, 23.
Nascida em uma área do rio Manapana, afluente do rio Jaú, Eliana Gonçalves da Silva, 54, mãe 10 filhos, entre eles Josué e Marivaldo, diz que “não pensa em sair da comunidade”. “A gente não compra comida, não compra farinha. A maior dificuldade é a distância, mas se formos para outro local, teríamos que começar tudo de novo”, diz.
Eliana é uma das pessoas que se incorporaram ao Tambor no processo de união dos moradores que resistiram em permanecer no Jaú mesmo após a criação do Parque, na mobilização empreendida por José Maurício dos Santos, neto de um casais de negros que se deslocaram para o Jaú há mais de 100 anos. Santos é considerado o principal aglutinador das famílias que resistiram no Jaú.
Reconhecimento étnico
O reconhecimento da Comunidade Quilombola do Tambor é resultado de uma série de processos de formação e auto-identificação étnica e territorial por que passaram os moradores a partir dos anos 2000. A principal referência desse processo é Sebastião Ferreira, 54, a partir de seu contato com a pesquisadora da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), Ana Felisa Guerrero.
Sebastião Ferreira, mesmo com estudos que foram apenas até a quinta série do antigo ginásio, foi o primeiro professor da comunidade do Tambor, em uma época em que a prefeitura de Novo Airão não remunerava profissionais de ensino na comunidade – antes, ele havia dado aulas nas localidades Brabo e Seringalzinho. Foi com Sebastião Ferreira que Ana Felisa e o perito em antropologia do Ministério Público Federal do Amazonas, Marcos Farias, iniciaram uma série de visitas à comunidade, dando início à formação dos moradores e esclarecimentos sobre o que vem a ser “comunidade quilombola”.
Neto adotivo de um dos casais negros primeiros no Tambor (Jacinto e Leopoldina de Almeida), Ferreira conta que somente após a primeira viagem de Ana Felisa à comunidade é que ele foi compreender o trabalho empreendimento na comunidade, o que lhe ajudou a despertar para a relevância da auto-identificação como quilombola. Até então, a Ferreira vinha atuando somente no processo de pedido de indenização das famílias que tiveram que sair do Parque.
Segundo João Siqueira, o Relatório técnico elaborado por Ana Felisa e Marcos Farias é considerado como peça fundamental nas ações envolvendo o processo de reconhecimento e autoatribuição étnica do Tambor. Cópias do relatório foram enviadas para a Fundação Cultural Palmares, Incra, MPF e Fiocruz.