Ministro do STF mandou para a gaveta a principal raiz da corrupção e aproveita ‘docilidade’ da mídia tradicional para não acenar com nada que realmente interesse ao país
por Helena Sthephanowitz, para a RBA
O jornal Folha de S. Paulo conseguiu a façanha de entrevistar o ministro do Supremo Tribunal Federal (STF), Gilmar Mendes, sem fazer a principal pergunta: quando ele devolverá o processo para prosseguir o julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade (Adin) 4.650, proposta pelo Conselho Federal da OAB, contra o financiamento empresarial de campanhas eleitorais?
Aliás, se ele dá todos os sinais de que já tem convicção formada para votar contra, por que segurar o voto?
A Adin 4.650 aponta que leis menores, permissivas ao financiamento empresarial, contrariam a lei maior, que é a Constituição Federal. O financiamento empresarial de campanhas é considerado a principal raiz da corrupção. Sem cortar o mal pela raiz, combater a corrupção torna-se apenas esforço para remediar o problema.
A ação foi ajuizada em setembro de 2011, passou pelos diversos trâmites, incluindo audiências públicas, até entrar em julgamento pelo plenário. Quando já havia seis votos a favor e um contra, placar suficiente para proibir o financiamento empresarial de campanha, o ministro Gilmar Mendes pediu vistas do processo, o que paralisou o julgamento. Desde abril deste ano o processo está parado nas mãos do ministro.
O fato já suscitou até campanhas populares nas redes sociais com o mote “Devolve Gilmar”.
A reforma política, incluindo o fim do financiamento empresarial de candidaturas, foi pauta antes, durante e depois da campanha eleitoral. É bandeira antiga de entidades da sociedade civil, de movimentos sociais e de partidos, contando com ampla mobilização popular.
Uma consulta popular, extraoficial, realizada no mês passado, teve mais de sete milhões de votos a favor de um plebiscito para o povo decidir se quer a eleição de uma assembleia, escolhida por um processo eleitoral absolutamente dentro dos preceitos constituintes, mas que trate exclusivamente da reforma política.
Um projeto de lei de iniciativa popular reformando o sistema eleitoral, promovido por uma coalizão de 103 entidades, já conta com mais de 500 mil assinaturas, frente a 1,5 milhão necessárias para ser apreciado pelas comissões do Congresso.
Neste contexto, é estranho que a Folha fuja da pergunta sobre a ação parada nas mãos de Gilmar Mendes, de inegável interesse público, e use a entrevista apenas para levantar a bola para o ministro emitir novas e antigas patacoadas. A certa altura, o repórter afirma que em dois anos o próprio Gilmar Mendes será o único ministro no STF não indicado por um governo petista para, em seguida, perguntar se isto muda alguma coisa na Suprema Corte. O ministro respondeu dizendo ser importante evitar que o tribunal se torne “bolivariano”. A afirmação virou a manchete da entrevista.
Óbvio que há uma provocação política na resposta, deselegante até com seus próprios colegas de STF. O termo “bolivariano” tornou-se pejorativo na mídia demotucana, pois procura desqualificar governos nacionalistas latino-americanos que não se submetem mais à colonização econômica por potências imperialistas.
Gilmar Mendes usa o termo, provavelmente, para desqualificar as Supremas Cortes de países como a Venezuela como se não fossem independentes do poder Executivo, repetindo estereótipos comuns publicados na revista Veja e similares. Estes estereótipos ignoram processos históricos naqueles países que levaram a ter suas Constituições renovadas, como o Brasil teve em 1988 após a ditadura e, consequentemente, chegou à renovação de instituições e poderes.
Ao contrário do noticiário deturpado, no Brasil a presidenta da República não tem carta branca para nomear quem bem entende para ministro do STF. A prerrogativa da presidenta se limita a indicar um nome e encaminhá-lo ao Senado, cuja aprovação depende do voto da maioria dos senadores, Casa onde o PT nunca teve maioria sozinho para impor nomes.
Todos os ministros do STF aprovados nos governos Lula e Dilma foram nomes bem recebidos inclusive pelos senadores de oposição que votaram pela respectiva condução ao cargo. Alguns ministros que chegaram ao STF antes foram indicados ao STJ (Superior Tribunal de Justiça) ou outros tribunais superiores pelo ex-presidente Fernando Henrique Cardoso. Os novos nomes que substituirão os ministros que se aposentarão também terão que ter perfil aceito pela maioria dos senadores, o que afasta qualquer possibilidade de não haver independência entre os três poderes.
É mais do que provável que o ministro Gilmar Mendes tenha plena consciência destes fatos, mas tenha usado a entrevista para pautar factoides que queria no noticiário. Na docilidade das perguntas da Folha acabou encontrando o veículo ideal para isso.
Lideranças do PT na Câmara e no Senado, e o ministro das Relações Institucionais, Ricardo Berzoini, criticaram a entrevista de Gilmar, tanto pelo tom desqualificador das instituições democráticas sólidas que o Brasil tem, como pela deselegância com os colegas que chegaram à Suprema Corte de 2003 para cá. O advogado-Geral da União, Luís Inácio Adams, também rebateu em tom mais formal e suave. Mas faltou a estas lideranças pedir o que de fato interessa: “Devolve Gilmar”.