Para Paulo Abrão, presidente Comissão de Anistia do Ministério da Justiça, o Brasil pode conciliar a decisão da Corte Interamericana de Direitos Humanos com entendimento do STF
por Marsílea Gombata, CartaCapital
Ao contrário da versão geralmente aceita, a Lei de Anistia não é um obstáculo para o julgamento de agentes repressores da ditadura. É possível, portanto, levar ao banco dos réis os torturadores do regime militar mesmo à sombra da legislação de 1979. As afirmações são de Paulo Abrão, presidente da Comissão de Anistia do Ministério da Justiça. “Esse é o exemplo do Chile, que nunca revogou sua lei de anistia, para que lá se pudesse implementar os juízos em torno das condutas criminais dos agentes de Estado”, diz o jurista de 39 anos em entrevista a CartaCapital.
Há uma decisão jurídica internacional e uma do STF sobre a Lei de Anistia. A sentença da Corte Interamericana de Direitos Humanos, de 2010, determinou que o Brasil deveria julgar os agentes repressores. No mesmo ano, o Supremo Tribunal Federal determinou que todos os crimes do período devem ser anistiados. Abrão, que também é secretário nacional de Justiça, diz haver uma área comum entre as duas decisões, em relação aos “crimes permanentes”, aqueles que não prescrevem. “Acredito em uma forma de complementariedade, ou seja, existe uma zona de interseção entre as duas decisões, na qual temos um espaço efetivo para poder atuar”, disse sobre a realização de ações penais.
Abrão explica ainda que, apesar dos 35 anos da aprovação da Lei de Anistia de 1979 – completos no último dia 28 -, o próprio conceito de “anistia” ainda está em disputa no Brasil. Na década de 60 a batalha era pela liberdade aos presos políticos, o retorno à legalidade dos partidos clandestinos, a anulação da expulsão dos brasileiros e de processos criminais baseados na Lei de Segurança Nacional e no início da redemocratização. Hoje, o conceito de anistia se aproximou da ideia de “impunidade”, como se fosse uma forma de perdão. Mais tarde, com a aprovação da nova Constituição, a anistia passou a configurar reparação. Hoje há a busca de um novo significado. “A luta do presente não é a da revisão de lei de anistia, mas sim por sua adequada interpretação à luz dos preceitos internacionais”.
Abaixo, os principais trechos da entrevista:
CartaCapital – No imaginário popular a Lei de Anistia ficou marcada como criada sob um pacto entre o regime e seus adversários. Esse acordo realmente existiu ou trata-se de uma interpretação e posterior jurisprudência que levou a essa ideia, em sua opinião?
Paulo Abrão – As pessoas confundem o pacto político que ocorreu na transição com a aprovação da Lei de Anistia. Em 1979, dois projetos tiveram embate dentro do Congresso Nacional. E um deles, que era o projeto do governo, em contraposição ao projeto popular, foi vencedor por uma margem pequena de votos. Tivemos uma explícita disputa que resultou na vitória do texto do governo militar. Até mesmo porque existia ali um ambiente de controle do Congresso Nacional por meio dos senadores biônicos. Por outro lado, em 1985, a derrota da emenda das Diretas Já forja a composição de uma chapa civil encabeçada pelo líder da oposição consentida, tendo como presidente o ex-dirigente da Arena (José Sarney) durante todo o regime militar. Neste momento existe um acordo entre forças políticas diferentes: após a derrota da emenda das Diretas Já eles se unem com vistas a promover uma transição pelo alto. As pessoas têm de saber identificar o momento histórico do acordo. É impreciso dizer, portanto, que ele tenha sido forjado em 1979. Isso tudo se deve a explicações simplistas da nossa transição política.
CC – A que se devem essas explicações simplistas?
PA – É natural que no processo de construção da memória existam algumas grandes sínteses históricas. E elas justificam determinados momentos da nossa história. E nossa versão, trabalhada na sociedade, de um grande acordo em torno da retomada do poder pelos civis tinha por detrás dela a ideia de que o primeiro governo civil, eleito de forma indireta pelas forças que deram sustentação ao regime anterior, não teria nenhum tipo de interesse de promover rupturas com o passado. Assim, é necessário a construção de uma narrativa explicativa dessa ausência de ruptura na transição do regime ditatorial para o regime democrático. E, assim, dentro dessa narrativa surgiu a ideia de um acordo, uma conciliação.
CC – O fato de ser um texto aprovado em um congresso controlado não deslegitima a lei?
PA – Esse é o elemento decisivo para que nós caracterizemos a Lei de Anistia de 1979 como uma autoanistia. E todos os tratados e convenções internacionais em matérias de direitos humanos rejeitam a hipótese de validade dessas autoanistias. Afinal de contas, elas têm como a regra de ouro o autoritarismo – torturadores e ditadores de plantão podem entregar o poder após feitura de crimes contra a humanidade, desde que aprovem para si mesmo uma regra se autoperdoando. E, contra essa regra de ouro do autoritarismo, se construiu a regra de ouro da não repetição. É aquela que diz que crimes contra a humanidade serão sempre imprescritíveis, impassíveis de anistia, e a história sempre promove um acerto de contas com o passado.
CC – Sem a Comissão de Anistia e a lei seria possível, na opinião do senhor, a “abertura” ou a transição para a democracia que o Brasil pedia?
PA – O conceito de anistia no Brasil ainda está em disputa. Tivemos na década de 60 toda uma luta a favor da Lei de Anistia. O que reivindicava o povo? A liberdade aos presos políticos, o retorno à legalidade dos partidos clandestinos, a anulação dos procedimentos de expulsão e banimento dos brasileiros, a anulação de processos criminais fundados na Lei de Segurança Nacional, a permissão para que surgissem novas organizações políticas. Então essa era uma luta pela liberdade. O conceito e ideia de anistia nesse instante está intimamente ligado à ideia de liberdade. Essa é a gênesis da anistia no Brasil: a ideia de anistia como liberdade. Depois tivemos esse conceito apropriado pelo regime militar, ao perceber que não conseguiria mais impedir o início de uma redemocratização, para que esse conceito de anistia se aproximasse mesmo a uma ideia de impunidade, pendendo-se ao dispositivo legal denominado “crimes conexos”, como uma forma de se perdoar as atrocidades cometidas pelos agentes da repressão. E esse sentido da anistia como impunidade foi sendo reafirmado pelos tribunais superiores, que foram julgando presos políticos detidos mesmo após a edição da Lei de Anistia, pois haviam cometido crimes.
Depois, em 1988, durante a nossa Constituinte, com aprovação da nova Constituição, a anistia foi constitucionalizada e ali ela recebeu um outro sentido constitucional, que foi o de reparação. Nela, se prevê que a anistia seja concedida a todos aqueles atingidos por atos de exceção, ou seja, é destinada aos perseguidos e não aos perseguidores. A palavra anistia na Constituição foi recepcionada nesse sentido de reparação. E isso constituiu uma Comissão de Anistia para promover atos de reparação e memória a todos aqueles lesados pela violência estatal. Hoje a luta do presente não é a da revisão de lei de anistia. Nenhum movimento social brasileiro nem o Ministério Público Federal, que advoga essa tese mais fortemente, muitos menos a Corte Interamericana de Direitos Humanos decidiu pela revisão da Lei de Anistia, mas sim por sua adequada interpretação à luz dos preceitos internacionais. Essa luta, no contexto brasileiro, é o de disputar o conceito como uma anistia que internalize esses princípios internacionais. Portanto, é tentar aproximar a ideia de anistia a luta por verdade e memória.
Então essas mutações no conceito de anistia ao longo do tempo são uma caracterização de como disputamos o conceito de anistia no Brasil. A lei de 1979 é uma lei ambígua, porque ao mesmo tempo em que simboliza a expressão da impunidade, traz consigo alguns dispositivos de reparação para determinados perseguidos políticos. E essa ambiguidade acompanha a transição brasileira a ponto de sustentarmos que naquele instante nós tivemos o “paradoxo da vitória de todos”: ao mesmo tempo em que o regime ganhou e aprovou o projeto que queria, a sociedade venceu ao impor à ditadura uma anistia que sequer era admitida pelos generais à época.
CC – Tendo em vista esse paradoxo, então, é impossível ambos os lados saírem vitoriosos…
PA – Essa é uma construção histórica. Eu particularmente não trabalho com ideia de dois lados. Temos o Estado enquanto representação institucional de proteção à vida dos cidadãos e que tem como finalidade institucional a defesa das liberdades públicas, dos direitos sociais e públicos. Quando o próprio Estado desvirtua a sua natureza e a sua finalidade por meio de seus agentes ele está descaracterizando a sua função primordial. Então, temos apenas vítimas de um Estado que desvirtuou-se de seus objetivos institucionais e todas suas atenções devem ser dadas na reparação integral, na construção da verdade e no reconhecimento da proteção judicial dessas pessoas.
CC – Então a Lei de Anistia é incompatível com a possibilidade de julgamento dos agentes repressores do Estado?
PA – Não há incompatibilidade entre a existência de uma lei de anistia em vigor e julgamentos de crimes contra a humanidade. Esse é o exemplo do Chile, que nunca revogou sua lei de anistia, para que lá se pudesse implementar os juízos em torno das condutas criminais dos agentes de Estado. O desafio neste momento no Brasil está em conciliar duas decisões jurídicas, ambas válidas no nosso ordenamento: uma é a do STF, que declarou a Lei de Anistia compatível com a Constituição brasileira, e um segundo crivo de juízo que é a decisão da CIDH, que fez um juízo de convencionalidade. Ou seja, a Corte Interamericana questionou se a Lei de Anistia brasileira era conforme a Convenção Americana de Direitos Humanos. Uma norma jurídica só tem validade dentro do nosso ordenamento se superar dois crivos de validação: o de constitucionalidade e o juízo de convencionalidade, de acordo com as convenções. Quando ela falha em uma dessas esferas, ela tem um déficit de validade que precisa ser resolvido.
Eu não trabalho com a hipótese de que a decisão da Corte Interamericana é incompatível com a do STF. Acredito em uma forma de complementariedade, ou seja, existe uma zona de interseção entre as duas decisões, onde temos um espaço efetivo para poder atuar. E qual é esse espaço de interseção? São os denominados “crimes permanentes”, vinculados aos desaparecimentos forçados, que estão sendo cometidos até os dias de hoje, porque os respectivos corpos não foram encontrados. Essa zona de interseção entre a decisão da CIDH e o STF seria exatamente a esfera de possibilidade concreta da realização de algumas ações penais dentro do caso brasileiro.
CC – Mas para isso o STF teria de dar um novo parecer?
PA – A decisão da CIDH é posterior à do STF, então trazer uma melhor segurança jurídica é necessário, de modo que nossa Corte Suprema possa esclarecer esses efeitos da decisão da Corte Interamericana à luz da sua própria decisão anterior. Há duas oportunidades concretas para que isso ocorra: a primeira com os embargos declaratórios na própria Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental 153, à qual a OAB interpelou originariamente em 2010, e agora mais recentemente uma segunda ADPF 320, que exatamente questiona o efeito vinculante da decisão da CIDH no caso brasileiro. Então há duas ações em tramitação no Supremo.
CC – Muitos argumentam que para fazer valer a decisão da CIDH, em termos de direito internacional público, uma vez que o Brasil é signatário das convenções internacionais, era preciso uma revisão da interpretação feita pelo STF, de modo a levar os agentes acusados de graves violações a julgamento. Neste caso, podemos pensar em hierarquia das cortes?
PA – Não se trata de hierarquia, é um exercício de competências distintas. Nós temos duas decisões jurídicas: uma da Corte que diz que a Lei de Anistia no Brasil é válida, porém não alcança os crimes contra a humanidade, ou seja: desaparecimentos forçados, tortura sistemática, massacres, execuções sistemáticas. Temos uma segunda decisão do STF que diz que a Lei de Anistia no Brasil abrange todos os crimes cometidos durante a ditadura. Mas o próprio Supremo fixou também um entendimento de que crimes de desaparecimento forçado são permanentes e, portanto, estão sendo cometidos até o dia de hoje e sobre eles não há qualquer tipo de prescrição. Há, portanto, uma interseção entre as duas decisões, que é inconteste. De que os crimes de desaparecimento forçado são imprescritíveis e hoje poderiam ainda ser apurados. Esse é o entendimento entre as duas cortes. O restante, de que há mais crimes entendidos pela CIDH como imprescritíveis e impassíveis de anistia, continua uma controvérsia que precisaria ser resolvida.
CC – O senhor teme que o relatório final da Comissão Nacional da Verdade traga uma recomendação sobre a reinterpretação da lei? O que se esperar do documento que deve ser divulgado em dezembro?
PA – A Comissão de Anistia tem posição desde 2008 que é de que os crimes contra humanidade são imprescritíveis e impassíveis de anistia. Se isso deve ou não ser objeto do relatório da CNV é algo que cabe à ela.
CC – Quem defende que não se deve remexer o passado fala do aspecto negativo do revanchismo. Na opinião do senhor, quais seriam os riscos de se rever a Lei de Anistia? Quais precedentes isso poderia abrir?
PA – Creio que já superamos o medo de discutir o passado, que as fortalezas de uma democracia se constroem a partir do instante que conseguimos discutir livremente todos os assuntos sem quaisquer riscos de qualquer instabilidade institucional. Essa é uma grande lição pela qual o Brasil está passando, porque durante muito tempo vigorou a ética de esquecimento como fórmula de pacificação. Uma sociedade só tem capacidade de avançar na medida em que reconheça formalmente os erros do passado, o que implica em construir compromissos para não repeti-los no futuro.
CC – Fala-se muito dos entulhos autoritários da ditadura que persistem ainda hoje. O senhor concorda com a informação de que no Brasil não houve ruptura?
PA – Não acredito na tese de que a ditadura venceu ou continua vencendo. A democracia está vencendo, até mesmo porque a democracia não é um fim em si mesmo, é um processo. E isso implica reconhecer que temos um conjunto de legados autoritários que precisam ser superados. No campo da administração pública, no campo da segurança pública, no campo dos nossos valores culturais, nas relações de poder inadmissíveis, como expressões machistas, xenófobas, discriminatórias. Discutir a agenda política da transição é debater o modelo de sociedade que nós queremos, debater uma agenda política suprapartidária que tenha compromisso com a democratização, não apenas das nossas constituições, mas também das nossas relações sociais.