Lógica perversa orienta ideia segundo a qual Estado deve, nas favelas, “garantir segurança”. É como se moradores pudessem receber proteção, mas jamais reivindicar direitos
Por Gabriel Bayarri | Imagem Alberto Costa – Outras Palavras
Desde a chegada das Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs), as favelas da Zona Sul do Rio de Janeiro afetadas pela política de segurança têm visto, além de muita Polícia Militar, a criação de um turismo nacional e internacional, do desenvolvimento de novos modelos de negócio locais, e de uma lenta chegada dos serviços paralelos à segurança com a presença do Estado.
As categorias dos moradores dessas favelas têm se alargado para incluir novos referentes (1), e cabe discutir as novas relações entre as categorias, assim como o princípio de acesso à categoria “cidadão”, entendida como a do indivíduo com admissão aos mesmos serviços que o indivíduo do “asfalto”. Assim, o debate atravessa o alargamento de categorias para dar um salto na discussão, pois o acesso pleno a novas categorias está submetido a uma autêntica “transformação estrutural” (2) nas relações entre os moradores.
O debate não deve girar só em torno ao papel da polícia, mas também ao reconhecimento do favelado dentro da categoria “cidadão” em sua busca pela igualdade de direitos, entendendo que ser cidadão corresponde a pertencer a uma comunidade particular, sendo igual na sua diferença (3). No Estado republicano brasileiro, as desigualdades apesar de não estar constitucionalmente demarcadas, encontram-se estabelecidas em práticas e códigos gerais aplicados de acordo com o status de cada um, buscando assim não cometer a injustiça de não adequar as práticas de administração institucional de conflitos às desigualdades inerentes a cada indivíduo ou grupo (4).
É comum associar no Brasil a categoria “cidadão” com a categoria “trabalhador” ou “estudante”, em oposição a “vagabundo” ou “bandido”. A representação sobre as noções de dever e de direito está fundada em um paradoxo, no qual duas lógicas operam simultaneamente: uma que concebe a igualdade jurídica e outra que pressupõe a desigualdade, aplicando particularizadamente as regras (5). Trata-se de uma cidadania regulada, embutida na profissão, na qual os direitos do cidadão se restringem ao lugar que ocupa no processo produtivo. A singularidade brasileira, segundo o antropólogo Roberto Da Matta, estaria na inexistência de um “mundo cívico” (universo onde se dá status de cidadão e de onde se espera um trato uniforme) bem conformado. Assim, inviabilizam-se definições ou fronteiras claras entre os campos de vigência de direitos e privilégios, fazendo com que as autoridades do Estado soem frequentemente arbitrárias para os cidadãos. Isto traz consequência: caráter incerto dos direitos e desigualdade na população longe do poder. Assim, práticas de discriminação que surgem da construção deste espaço dificultam a harmonia na sociedade brasileira. (6)
A população da favela é percebida não como uma cidadania, mas como uma “estadania”, na qual o Estado só é representado pela polícia (7). O Estado e agentes mediadores como as associações se apresentam como os legítimos detentores dos mecanismos de administração de conflitos e produção da verdade no espaço público, tutelando, assim, os “hipossuficientes” (8). A cidadania aparece dessa forma como uma concessão dada pelo Estado e não um benefício disponível universalmente entre seus membros.
As categorias pelas quais a Polícia Militar das UPPs julga o “bem vivente que conhece e protege” (um princípio elementar da teoria de uma polícia comunitária) estarão condicionadas também pelas instituições que representam junto ao indivíduo. Surge então um universo multifacetado, de opiniões contrapostas, como aquelas que criticam a expressão cultural estar sendo limitada por uma UPP que exerce força de inserção nas práticas do asfalto em choque frontal com as expressões do morro, como a repressão aos bailes funk e outros grêmios em discórdia com o programa da pacificação.
Assim, a reflexão abarca neste ponto a transição categórica do indivíduo favelado a cidadão. Para converter-se em “pessoa” igual à do asfalto, deve-se começar mudando sua posição num sistema legal cuja lógica vincula privilégios de acesso à justiça de acordo com a escolaridade, função ocupada, profissão etc (9). Deve construir uma nova identidade, deve ter um contrato laboral, necessário para ascender ao estatuto de “pessoa”, e o indivíduo passa para isso por situações de medo, vergonha ou dificuldade de acesso aos órgãos ou autoridades competentes (10).
Por isso, por essa procura dos direitos, não se trata de ser “cidadão apesar de ser do morro”, mas de levar a cidadania às entranhas do próprio morro, de onde não possa sair nunca mais.
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(1) SAHLINS, Marshall. Ilhas de História. Rio de Janeiro: Ed Zahar, 1990
(2) Idem
(3) KANT DE LIMA, Roberto. Polícia da Cidade do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, Ed FGV, 1995.
(4) KANT DE LIMA, Roberto; MOTA, Fabio Reis; PIRES, Lênin. Efeitos da Igualdade e da Desigualdade no espaço público da Amazônia. In: Deborah Lima (org). Diversidade Socioambiental nas Várzeas dos rios Amazonas e Solimões. Manaus: IBAMA, PróVárzea, 2005.
(5) CARDOSO DE OLIVEIRA, Luis Roberto. Direito legal e insulto moral. 1. ed. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2002
(6) DA MATTA, Roberto. A digressão da fábula das 3 raças. In: Relativizando: uma introdução à Antropologia Social, Petrópolis Vozes. 1981.
(7) LUCI DE OLIVEIRA, Fabiana. UPPs, direitos e justiça. Um estudo de caso das favelas do Vidigal e do Cantagalo. Ed. FGV. 2012
(8) KANT DE LIMA, Roberto; MOTA, Fabio Reis; PIRES, Lênin. Efeitos da Igualdade e da Desigualdade no espaço público da Amazônia.
(9) KANT DE LIMA, Roberto. Polícia da Cidade do Rio de Janeiro.
(10) LUCI DE OLIVEIRA, Fabiana. UPPs, direitos e justiça. Um estudo de caso das favelas do Vidigal e do Cantagalo.