Comissões têm pressa em apurar crimes contra povos indígenas

O cacique Domingos Xacriabá falou das torturas e massacres que presenciou, ainda menino, em sua aldeia, no Norte de Minas (Fotógrafo: Guilherme Dardanhan)
O cacique Domingos Xacriabá falou das torturas e massacres que presenciou, ainda menino, em sua aldeia, no Norte de Minas (Fotógrafo: Guilherme Dardanhan)

Convênio entre a Assembleia e a Comissão da Verdade poderá ser agilizado a pedido da Comissão de Direitos Humanos.

ALMG

A Comissão de Direitos Humanos da Assembleia Legislativa de Minas Gerais (ALMG) vai solicitar ao presidente da Casa, deputado Dinis Pinheiro (PP), que agilize o processo de convênio entre o Parlamento estadual e a Comissão Estadual da Verdade (CEV), no sentido de apurar os crimes cometidos contra os povos indígenas no Estado durante a ditadura militar.

O compromisso foi firmado pelo presidente da comissão parlamentar, deputado Durval Ângelo (PT), perante lideranças indígenas e o presidente e o coordenador da CEV, respectivamente Antônio Romanelli e Betinho Duarte, em audiência pública realizada na ALMG na tarde desta segunda-feira (28/4/14). Na ocasião, convidados e demais participantes defenderam a mobilização social em favor da reparação cível e penal dos povos indígenas do Estado, em razão das inúmeras violações de direitos humanos sofridas por essas comunidades durante os chamados anos de chumbo. 

Foram mencionadas, em particular, as torturas cometidas em dois centros de detenção, geridos e vigiados por policiais militares, destinados a índios tidos como infratores: o Reformatório Krenak, em Resplendor, e a Fazenda Guarani, em Carmésia, municípios da região do Vale do Rio Doce. As duas cadeias foram classificadas pelos participantes da reunião como verdadeiros “campos de concentração”, equiparáveis aos campos nazistas, como observou um dos convidados da audiência, o procurador Edmundo Antônio Dias Netto Júnior, da Procuradoria Regional de Direitos do Cidadão do Ministério Público Federal.

Convocada a requerimento do deputado Durval Ângelo, como desdobramento do Ciclo de Debates Resistir Sempre, Ditadura Nunca Mais, promovido pela ALMG, a audiência teve por finalidade debater a situação dos povos indígenas no Estado e no País, considerando-se desde as históricas violações aos direitos humanos até os desafios da atualidade. Além dos representantes da Comissão Estadual da Verdade, também participaram da reunião os caciques Domingos Xacriabá e Toninho Maxacali, entre outros.

Grupo vai apurar denúncias sobre a Guarda Rural Indígena

A audiência resultou também na criação de um grupo formado por lideranças indígenas, pesquisadores e defensores da causa dos índios, destinado a discutir os massacres que vitimaram índios em Minas Gerais, a partir da criação, no final da década de 60, da Guarda Rural Indígena (Grin), treinada pela Polícia Militar, sob o comando do coronel Manoel dos Santos Pinheiro. Denúncias apontam graves violações dos direitos das populações indígenas, como torturas e chacinas, além de desrespeito à cultura dos povos tradicionais.

Ao abrir a audiência, o deputado Durval Ângelo denunciou o “processo de dizimação e silenciamento” a que foram submetidos os povos indígenas desde a chegada do homem branco ao Brasil, e em particular durante o regime militar. “Historicamente as culturas tradicionais nunca foram respeitadas e consideradas, mas esse processo se acentuou durante a ditadura militar”, disse. Ele considera fundamental que os crimes desse período sejam agora apurados. “O Brasil tem uma dívida histórica com os povos indígenas, como tem também com os quilombolas”, ressaltou.

Betinho Duarte elogiou o trabalho da Comissão de Direitos Humanos da ALMG, bem como a lei que criou a Comissão da Verdade em Minas Gerais, cujo texto original foi aprimorado até ela se tornar, segundo ele, a mais avançada do País. Foi dele o pedido para que a Comissão de Direitos Humanos tente agilizar a assinatura do convênio entre a Comissão da Verdade e a Assembleia Legislativa e o pedido para realização de audiências públicas para discutir o papel da Igreja durante o regime militar e os atentados terroristas em Minas Gerais no mesmo período.

Questão indígena foi militarizada

O coordenador do Conselho Indigenista Missionário Regional Leste, Antônio Eduardo Cerqueira de Oliveira, denunciou “a militarização da questão indígena” mesmo antes da ditadura. Segundo ele, já nos anos 50 e 60 os militares eram colocados à frente de órgãos como o Serviço de Proteção ao Índio (SPI) e a Fundação Nacional do Índio (Funai), com o respaldo da Constituição Federal de então, que preconizava a tutela do índio pelo Estado.

Por trás dessa filosofia, denunciou, estavam interesses econômicos e mercadológicos de grandes empresários de olho nos ricos territórios indígenas. “A Constituição de 1988 mudou essa filosofia no papel, mas na prática a relação dos índios com o Estado não mudou muito”, disse.

Ainda segundo Antônio Eduardo, em Minas Gerais vivem 12 povos indígenas originais ou procedentes de outros Estados, que lutam por suas terras e detêm pouco mais de 60 mil hectares. “Muitos vivem em situação degradante, como o povo maxacali, próximo a Governador Valadares, que ocupa pouco mais de 5 mil hectares”, denunciou.

O vice-presidente do Grupo Tortura Nunca Mais e coordenador do Projeto Armazém da Memória, de São Paulo, Marcelo Zelic, disse que o Reformatório Krenak é “parte de um iceberg de uma rede de cadeias clandestinas que existem em vários pontos do País”. Segundo ele, em muitas áreas as práticas de tortura ainda permanecem. “O Estado brasileiro deve uma reparação coletiva a esses povos, e isso está ligado diretamente à demanda por terras indígenas”, denunciou, defendendo a demarcação das terras.

O procurador Edmundo Antônio Dias Netto Junior, do Ministério Público Federal, também denunciou “o grave etnocídio cometido contra os povos indígenas do País”, mencionou diversos artigos e documentos que abordam as violações de direitos humanos nos dois centros de detenção indígenas do Estado e disse que a Procuradoria Regional de Direitos do Cidadão já instaurou procedimentos para apurar os casos. Ele também defendeu a reparação cível, que pressupõe a indenização dos povos indígenas pelas perdas e danos morais, e a reparação penal, com a punição de torturadores e de todos os violadores dos direitos desse estrato da população.

O presidente da Comissão Estadual da Verdade, Antônio Romanelli, louvou a iniciativa da Assembleia Legislativa pela realização da audiência e também pediu agilidade na assinatura do convênio entre a ALMG e a CEV.

Maria Flor Guerreira (Fotógrafo: Guilherme Dardanhan)
Maria Flor Guerreira (Fotógrafo: Guilherme Dardanhan)

Emoção marca discurso de lideranças indígenas

Emocionado, o cacique Domingos Xacriabá falou das torturas e massacres que presenciou, ainda menino, em sua aldeia, no Norte de Minas, em 1987, quando seu pai, um tio e vários conhecidos foram assassinados por causa de disputas pela terra. Ele próprio, bem como sua mãe, foram feridos à bala. “Ao demarcarem nosso território, reduziram em 70% nossas terras, sofremos torturas e perseguições”, denunciou.

Comovente foi também o relato da educadora pataxó Maria Flor Guerreira. “Pela primeira vez, hoje, escutei alguém falando das dores que nós temos, alguém que fala por nós, porque sempre fomos silenciados”, disse, chorando. “Isso me conforta porque vejo pessoas que compreendem a nossa luta, compreendem que somos todos humanos e que lutamos não só por nossas tradições, mas por toda a humanidade. Ao contrário dos brancos, que estão preocupados com dinheiro, nós precisamos da terra viva para  comer”.

Alessandro Santos da Cruz, pataxó da comunidade Aldeia Barra Velha, cantou a dor da história de seu povo entoando uma música que retrata um massacre ocorrido em 1951. Finalizando, após ouvir o testemunho dos colegas e de vários pesquisadores e estudiosos presentes, o cacique Toninho Maxacali entoou um canto indígena em um dos 12 idiomas arcaicos que domina.

Audiências e visitas – Durante a reunião, o presidente da Comissão de Direitos Humanos disse que vai apresentar requerimentos propondo a realização de audiências públicas conjuntas com a Comissão Estadual da Verdade, com o objetivo de discutir o papel da Igreja durante a ditadura militar e os atentados terroristas ocorridos no mesmo período em Minas Gerais, entre eles o que resultou no incêndio de quatro gabinetes de parlamentares na Assembleia Legislativa.

O deputado Durval Ângelo também vai apresentar requerimentos propondo a realização de visitas a algumas aldeias xacriabás no Estado e o envio das notas taquigráficas da audiência desta segunda-feira a diversos órgãos públicos estaduais e federais com pedidos de informações e solicitação de cópias de documentos.

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