Trazer à luz do dia as graves violações de direitos humanos contra os povos indígenas, no período em estudo na Comissão Nacional da Verdade (CNV), é fundamental para que nossa sociedade reconheça os crimes praticados contra a pessoa do índio, seus povos, territórios e direitos constitucionais.
Reconhecer esses crimes, significa incluir os povos atingidos pela violência do estado, por ação e omissão, no processo de justiça de transição em curso no país e ao reconhece-los, desdobra ao estado brasileiro promover a reparação a estes direitos individuais e coletivos violados, expor a verdade sobre o que viveram, fazer justiça sobre os fatos levantados, proporcionar a continuidade de apuração dos fatos que não foram esclarecidos e também promover mudanças de conduta dos entes e agentes do estado para com o cidadão indígena brasileiro, reafirmando seus direitos e educando a sociedade a respeitálos.
A justiça de transição no Brasil segue o mesmo processo lento e gradual que pautou o ritmo e o modelo de anistia aplicado no país no final da década de 1970 e traz em si os mesmos vícios de conduta do estado, quando teve de lidar com a questão das violações cometidas contra os ativistas das organizações de esquerda que combateram a ditadura.
Hoje, a história se repete e não só nas violências cotidianas contra estes povos em muitas regiões do país, mas também na forma de lidar com um conjunto de revelações que foram apontadas pela sociedade civil e comunidades indígenas à Comissão Nacional da Verdade.
O estado não colabora para uma apuração efetiva dos fatos e das graves violações contra estes povos, deixando o Grupo de Trabalho criado na CNV para levantar tais violações, à míngua de recursos, sem possibilidade de contratação de assessores conhecedores do tema, sem investimento em equipe de trabalho e digitalização de documentos, deixando, tal qual ocorreu com os familiares de mortos e desaparecidos por décadas, o ônus da pesquisa e levantamento das informações, a contribuições de parentes de indígenas e suas organizações, bem como de pesquisadores, jornalistas, entidades indigenistas e de direitos humanos, que se disporem a
pesquisar o assunto.
O mapeamento de graves violações contra o índio durante a ditadura militar e também antes dela, realizado tanto no âmbito da pesquisa colaborativa Povos Indígenas e Ditadura Militar: subsídios à Comissão Nacional da Verdade 1946-1988, como da Comissão Indígena da Verdade, aponta a necessidade de um estudo aprofundado sobre o tema, voltado a todas as regiões do país, realizado em conjunto com especialistas na área indígena, com aporte de estrutura e pessoal para estudo e sistematização dos documentos localizados, envolvendo universidades brasileiras, para que possamos construir mecanismos efetivos de reparação e nãorepetição destas violências.
Sem método e sem tempo para aprofundar as linhas de pesquisa já apontadas pela sociedade civil, corremos o risco de ver no relatório final uma colcha de retalhos, que não cumprirá o papel de alavancar um processo de conscientização do que de fato aconteceu nesse país, deixando muita violência escondida e seus nexos com a violência do presente prejudicados.
Tampouco explicitará de forma abrangente e clara os mecanismos que a geraram e as instituições que as realizaram, bem como os agentes responsáveis e as pessoas atingidas pela atitude destes.
Dada sua abrangência, continuidade e a permanência de conflitos nas relações sociais entre índios e sociedade envolvente, o estado brasileiro e a Comissão Nacional da Verdade precisam se posicionar frente a urgência de um estudo aprofundado e a criação de mecanismos de não repetição com relação a violência contra o índio e seus direitos. Isto se impõe dado o volume de conflitos decorrentes do modelo de desenvolvimento e dos interesses e cobiça sobre suas terras e as riquezas que estas contém, gerando uma violência brutal e cruel no cotidiano de muitas pessoas que vivem nestes territórios em disputa do sul ao norte do país.
São assassinatos, chacinas, massacres, envenenamentos, prisões ilegais, torturas, violência psicológica, intimidação e ameaças, despejos violentos, atentados contra aldeias, remoções forçadas, aculturação, escravização, estupros, campanhas difamatórias, preconceito, crimes que geraram (e por continuarem a acontecer em escala ainda geram) traumas individuais e coletivos sentidos intensamente nas comunidades.
No Mato Grosso do Sul por exemplo tais traumas coletivos se expressam no altíssimo número de suicídios de jovens indígenas na região, o mais alto do país. O quanto estas violências do passado incidem sobre esta população e estes tristes fatos?
Com a realização da audiência pública em Dourados, o silêncio opressor frente a dor vivida, tem se transformado em sussurros, danças, rezas e depoimentos que lembram seus incontáveis parentes, atingidos, mortos e desaparecidos fruto do encontro com nosso modelo de desenvolvimento e relacionamento com estes povos e aos poucos vão fortalecendo o clamor indígena por direitos e reparação.
Incluir ou não as graves violações contra os indígenas nesta revisão histórica de forma ampla e consequente é uma decisão política, que será um dos pontos de avaliação dos resultados do Relatório Final em preparação na CNV. Apontará a medida da vontade do governo federal em enfrentar este problema, viabilizando ou não a CNV para o estudo destas violências, que há 500 anos é uma chaga e motivo de vergonha para aqueles que acreditam em democracia e justiça social no Brasil.
Cabe à CNV avaliar as solicitações dos Grupos Tortura Nunca Mais, Comissão de Direitos Humanos da OABRJ e Movimento de Justiça e Direitos Humanos e viabilizar um estudo que garanta que a verdade venha à tona, que possamos discutir com estes povos publicamente em audiências organizadas em Brasília, para sabermos de suas histórias, dores, esperanças e recomendações, de modo que com a publicação do relatório final aconteça o fortalecimento de processos pedagógicos que valorizem suas culturas e promovam o estabelecimento de relações respeitosas, baseadas no reconhecimento efetivo do direito de existir dessas populações.
Estas verdades vindas à tona, poderão abrir portas para que o governo federal mude de atitude na forma como está conduzindo as relações da sociedade envolvente para com estes povos originários, frente às disputas de direitos e seus projetos, influindo em decisões de rumo do país, como o mais recente caso que envolve o Ministério da Justiça e a negativa do Conselho Nacional de Política Indigenista (CNPI) sobre o projeto apresentado pelo Ministro José Eduardo Cardoso aos conselheiros.
Respeitar a opinião do CNPI, que apresentou estudo fundamentado e se posicionou contrário à proposta de retirada de direitos feita pelo Ministério da Justiça, onde mudanças no rito estabelecido em lei para a realização de demarcação de terras indígenas foram apresentadas, é a régua que medirá a mudança de conduta do governo federal, frente ao comportamento do passado recente em apuração na Comissão Nacional da Verdade. Escutará o Ministro o que disse os representantes do conselho? Ou fará valer o projeto de lei a ferro e a fogo?
Às atuais e novas gerações devemos uma autocrítica fundamentada a partir dos fatos apurados pela CNV, mostrando como o estado brasileiro e a sociedade agiram errado entre 19461988 ao continuar não reconhecendo a vida no índio, ao não escutar esses povos e desrespeitar o que a esses brasileiros diferentes, lhes confere em direitos o Alvará de 01/04/1680, a Lei de 1850, o Decreto de 1854, art. 24, § 1º, e as Constituições Federais de 1891, 1934, 1946, 1967, 1969 e de 1988, além dos tratados internacionais assinados e reconhecidos pelo Brasil.
A estes povos devemos a demarcação de suas terras como direito originário e reparação, a recomposição ambiental dos territórios devastados, o cuidado com a saúde e também uma ampla campanha pública, pedagógica, de retratação histórica, através da imprensa e nas escolas, sobre o direito à vida, cultura, crença e o respeito aos direitos dos povos indígenas estabelecidos na Constituição.
Serão mais 30 anos para o estado brasileiro reconhecer os erros em relação a estes povos e começar a reparar os atingidos?
Marcelo Zelic
Vicepresidente
do Grupo Tortura Nunca MaisSP
e membro da Comissão Justiça e Paz da
Arquidiocese de São Paulo
Coordenador do Projeto Armazém Memória
(11) 997261388
www.armazemmemoria.com.br
[email protected]