Marcelo Zelic: Graves violações contra Povos Indígenas e a Comissão Nacional da Verdade

Cena do filme "Arara", de Jesco von Puttmaker, que mostra cenas da formatura da 1ª turma da Guarda Rural Indígena, em 1970
Cena de filmagem feita por Jesco von Puttmaker, descoberta por Marcelo Zelic, que mostra cenas da formatura da 1ª turma da Guarda Rural Indígena (GRIN), instituída pela ditadura, em 1970. Ilustração postada por este blog.

Trazer à luz do dia as graves violações de direitos humanos contra os povos indígenas, no período em estudo na Comissão Nacional da Verdade (CNV), é fundamental para que nossa sociedade reconheça os crimes praticados contra a pessoa do índio, seus povos, territórios e direitos constitucionais.

Reconhecer esses crimes, significa incluir os povos atingidos pela violência do estado, por ação e omissão, no processo de justiça de transição em curso no país e ao reconhece-los, desdobra ao estado brasileiro promover a reparação a estes direitos individuais e coletivos violados, expor a verdade sobre o que viveram, fazer justiça sobre os fatos levantados, proporcionar a continuidade de apuração dos fatos que não foram esclarecidos e também promover mudanças de conduta dos entes e agentes do estado para com o cidadão indígena brasileiro, reafirmando seus direitos e educando a sociedade a respeitálos.

A justiça de transição no Brasil segue o mesmo processo lento e gradual que pautou o ritmo e o modelo de anistia aplicado no país no final da década de 1970 e traz em si os mesmos vícios de conduta do estado, quando teve de lidar com a questão das violações cometidas contra os ativistas das organizações de esquerda que combateram a ditadura.

Hoje, a história se repete e não só nas violências cotidianas contra estes povos em muitas regiões do país, mas também na forma de lidar com um conjunto de revelações que foram apontadas pela sociedade civil e comunidades indígenas à Comissão Nacional da Verdade.

O estado não colabora para uma apuração efetiva dos fatos e das graves violações contra estes povos, deixando o Grupo de Trabalho criado na CNV para levantar tais violações, à míngua de recursos, sem possibilidade de contratação de assessores conhecedores do tema, sem investimento em equipe de trabalho e digitalização de documentos, deixando, tal qual ocorreu com os familiares de mortos e desaparecidos por décadas, o ônus da pesquisa e levantamento das informações, a contribuições de parentes de indígenas e suas organizações, bem como de pesquisadores, jornalistas, entidades indigenistas e de direitos humanos, que se disporem a
pesquisar o assunto.

O mapeamento de graves violações contra o índio durante a ditadura militar e também antes dela, realizado tanto no âmbito da pesquisa colaborativa Povos Indígenas e Ditadura Militar: subsídios à Comissão Nacional da Verdade 1946-1988, como da Comissão Indígena da Verdade, aponta a necessidade de um estudo aprofundado sobre o tema, voltado a todas as regiões do país, realizado em conjunto com especialistas na área indígena, com aporte de estrutura e pessoal para estudo e sistematização dos documentos localizados, envolvendo universidades brasileiras, para que possamos construir mecanismos efetivos de reparação e nãorepetição destas violências.

Sem método e sem tempo para aprofundar as linhas de pesquisa já apontadas pela sociedade civil, corremos o risco de ver no relatório final uma colcha de retalhos, que não cumprirá o papel de alavancar um processo de conscientização do que de fato aconteceu nesse país, deixando muita violência escondida e seus nexos com a violência do presente prejudicados.

Tampouco explicitará de forma abrangente e clara os mecanismos que a geraram e as instituições que as realizaram, bem como os agentes responsáveis e as pessoas atingidas pela atitude destes.

Dada sua abrangência, continuidade e a permanência de conflitos nas relações sociais entre índios e sociedade envolvente, o estado brasileiro e a Comissão Nacional da Verdade precisam se posicionar frente a urgência de um estudo aprofundado e a criação de mecanismos de não repetição com relação a violência contra o índio e seus direitos. Isto se impõe dado o volume de conflitos decorrentes do modelo de desenvolvimento e dos interesses e cobiça sobre suas terras e as riquezas que estas contém, gerando uma violência brutal e cruel no cotidiano de muitas pessoas que vivem nestes territórios em disputa do sul ao norte do país.

São assassinatos, chacinas, massacres, envenenamentos, prisões ilegais, torturas, violência psicológica, intimidação e ameaças, despejos violentos, atentados contra aldeias, remoções forçadas, aculturação, escravização, estupros, campanhas difamatórias, preconceito, crimes que geraram (e por continuarem a acontecer em escala ainda geram) traumas individuais e coletivos sentidos intensamente nas comunidades.

No Mato Grosso do Sul por exemplo tais traumas coletivos se expressam no altíssimo número de suicídios de jovens indígenas na região, o mais alto do país. O quanto estas violências do passado incidem sobre esta população e estes tristes fatos?

Com a realização da audiência pública em Dourados, o silêncio opressor frente a dor vivida, tem se transformado em sussurros, danças, rezas e depoimentos que lembram seus incontáveis parentes, atingidos, mortos e desaparecidos fruto do encontro com nosso modelo de desenvolvimento e relacionamento com estes povos e aos poucos vão fortalecendo o clamor indígena por direitos e reparação.

Incluir ou não as graves violações contra os indígenas nesta revisão histórica de forma ampla e consequente é uma decisão política, que será um dos pontos de avaliação dos resultados do Relatório Final em preparação na CNV. Apontará a medida da vontade do governo federal em enfrentar este problema, viabilizando ou não a CNV para o estudo destas violências, que há 500 anos é uma chaga e motivo de vergonha para aqueles que acreditam em democracia e justiça social no Brasil.

Cabe à CNV avaliar as solicitações dos Grupos Tortura Nunca Mais, Comissão de Direitos Humanos da OABRJ e Movimento de Justiça e Direitos Humanos e viabilizar um estudo que garanta que a verdade venha à tona, que possamos discutir com estes povos publicamente em audiências organizadas em Brasília, para sabermos de suas histórias, dores, esperanças e recomendações, de modo que com a publicação do relatório final aconteça o fortalecimento de processos pedagógicos que valorizem suas culturas e promovam o estabelecimento de relações respeitosas, baseadas no reconhecimento efetivo do direito de existir dessas populações.

Estas verdades vindas à tona, poderão abrir portas para que o governo federal mude de atitude na forma como está conduzindo as relações da sociedade envolvente para com estes povos originários, frente às disputas de direitos e seus projetos, influindo em decisões de rumo do país, como o mais recente caso que envolve o Ministério da Justiça e a negativa do Conselho Nacional de Política Indigenista (CNPI) sobre o projeto apresentado pelo Ministro José Eduardo Cardoso aos conselheiros.

Respeitar a opinião do CNPI, que apresentou estudo fundamentado e se posicionou contrário à proposta de retirada de direitos feita pelo Ministério da Justiça, onde mudanças no rito estabelecido em lei para a realização de demarcação de terras indígenas foram apresentadas, é a régua que medirá a mudança de conduta do governo federal, frente ao comportamento do passado recente em apuração na Comissão Nacional da Verdade. Escutará o Ministro o que disse os representantes do conselho? Ou fará valer o projeto de lei a ferro e a fogo?

Às atuais e novas gerações devemos uma autocrítica fundamentada a partir dos fatos apurados pela CNV, mostrando como o estado brasileiro e a sociedade agiram errado entre 19461988 ao continuar não reconhecendo a vida no índio, ao não escutar esses povos e desrespeitar o que a esses brasileiros diferentes, lhes confere em direitos o Alvará de 01/04/1680, a Lei de 1850, o Decreto de 1854, art. 24, § 1º, e as Constituições Federais de 1891, 1934, 1946, 1967, 1969 e de 1988, além dos tratados internacionais assinados e reconhecidos pelo Brasil.

A estes povos devemos a demarcação de suas terras como direito originário e reparação, a recomposição ambiental dos territórios devastados, o cuidado com a saúde e também uma ampla campanha pública, pedagógica, de retratação histórica, através da imprensa e nas escolas, sobre o direito à vida, cultura, crença e o respeito aos direitos dos povos indígenas estabelecidos na Constituição.

Serão mais 30 anos para o estado brasileiro reconhecer os erros em relação a estes povos e começar a reparar os atingidos?

 

Marcelo Zelic
Vicepresidente
do Grupo Tortura Nunca MaisSP
e membro da Comissão Justiça e Paz da
Arquidiocese de São Paulo
Coordenador do Projeto Armazém Memória
(11) 997261388
www.armazemmemoria.com.br
[email protected]

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