Em entrevista à Carta Maior, subprocurador geral da Procuradoria Federal de Defesa do Cidadão, fala dos esforços para julgar os crimes da ditadura
Najla Passos – Carta Maior
Brasília – Quando o Supremo Tribunal Federal (STF) julgou, em 2010, a validade da Lei da Anistia, o então procurador-geral da República, Roberto Gurgel, defendeu que os agentes de estado que praticaram crimes de lesa-humanidade não fossem responsabilizados por seus atos. O polêmico parecer foi aprovado pela maioria dos ministros, se transformou na principal barreira para a justiça de transição no país, mas não fez escola dentro do próprio Ministério Público (MP): os procuradores envolvidos com o tema mantiveram um trabalho árduo de investigação das arbitrariedades praticadas pelos militares e de busca pela punição dos responsáveis.
Na linha de frente deste trabalho de resistência, está a Procuradoria Federal de Defesa do Cidadão (PFDC), coordenada pelo o subprocurador geral da Procuradoria Federal de Defesa do Cidadão (PFDC), Aurélio Rios, que, em entrevista exclusiva à Carta Maior, fala dos esforços de membros do MP para virar essa página infeliz da nossa história. “O processo legal significa permitir que o MP possa denunciar, que o poder judiciário possa receber, que o réu possa se defender e que, ao final, haverá uma sentença. Pode-se absolver ou condenar, mas impedir que o poder judiciário venha a julgar estes casos nos aprece completamente fora do nosso esquadro constitucional e legal”, afirma.
Carta Maior – A Comissão de Direitos Humanos (CDH) do Senado aprovou, esta semana, um projeto de lei que prevê a revisão da Lei da Anistia. Ainda há uma longa tramitação pela frente, mas já é uma sinalização de que o legislativo está avançando em relação à punição dos militares que cometeram crimes de lesa-pátria. Isso favorece o trabalho do MP?
Aurélio Rios – O Congresso reflete o que a sociedade pensa. E, sem dúvida nenhuma, nos últimos cinco anos, a sociedade brasileira evoluiu muito no que pensava em relação aos atos bárbaros praticados pela ditadura. Durante muito tempo, as pessoas ficaram amortecidas com a ideia de que, se nós falássemos sobre isso, se nós viéssemos a denunciar essas injustiças ou, pior ainda, se nós viéssemos a condenar e prender os autores, isso criaria uma instabilidade, afetaria a governabilidade do país. Essa percepção começa a mudar. Os institutos de pesquisa já demonstram que grande parte da sociedade brasileira deseja, sim, ver aqueles que cometeram os atos mais bárbaros, como tortura, decapitação, desaparecimento forçado, venham a responder pelos seus atos. A aprovação pela CDH do Senado reflete muito isso: um novo momento da sociedade brasileira, da qual o congresso é o reflexo.
Não é preciso dizer que, há mais tempo, a deputada Luiza Erundina já tinha apresentado projeto sobre isso. Ela nunca se conformou com o estado das coisas, com a decisão do Supremo a respeito disso E esse estresse positivo provocado no congresso, através de sucessivas audiências públicas, proporcionou que a Comissão tivesse, hoje, a tranquilidade para aprovar isso que não teria há dez anos. E nós consideramos uma evolução, porque o congresso pode, pelo menos, dar uma interpretação autentica e mais atual do que significou aquela lei, do que significa hoje você encontrar ossadas humanas em Perus, investigar pessoas que participaram daqueles atos, enfim, fazer o que se espera do MP, que é denunciar esses casos.
CM – Então, o propósito do MP é denunciar esses crimes, mesmo com a revalidação da Lei da Anistia pelo STF?
AR – Se há uma materialidade, se a pessoa existiu e em um determinado momento desapareceu – e muitas delas desapareceram – em estabelecimentos militares e paramilitares, as pessoas ligadas aos aparelhos de repressão devem ser responsabilizadas. Hoje não há mais nenhum sentido em se alegar a possibilidade de um possível acordo feito em 1969, um acordo que ninguém conhece, que nunca foi registrado em cartório, e que, ainda que tivesse sido, não é para sempre. Todos os acordos, tanto no plano pessoal quanto na circunstancia judicial, vão mudando de acordo com a sociedade. Não existe nada, absolutamente nada, que dure para a sempre.
Essa percepção de que havia esse acordo e ele precisa ser cumprido – que é até a de muitos queridos advogados que, à época, defenderam os presos políticos e lutaram contra a ditadura – é uma visão congelada no tempo do que eles viveram na época. E, provavelmente, deve ter havido algum acerto entre as elites políticas da época para se tentar avançar. É possível. Não acho que estas pessoas estejam faltando com a verdade quando alegam a existência desse acordo. Agora, elas não podem querer que este compromisso passe ao longo do tempo sem que ocorra uma revisão, um olhar crítico sobre isso. Os jovens procuradores que nem eram nascidos na época da ditadura, por exemplo, não tem porque se sentir presos a um acordo do qual eles nem participaram.
CM – O MP tem uma posição oficial sobre essa Lei da Anistia de 1979?
AR – Na verdade, não. O que há é o parecer do Gurgel, com o qual eu já quero dizer, em alto e bom som, que eu não concordo. Na época, nos preferimos o parecer da vice-procuradora, Débora Duprat, que não foi acolhido. E já preciso dizer que esta visão que estou passando é a da PFDC. Não é a do novo procurador-geral da República, Rodrigo Janot, que ainda está analisando esta história. Ele ainda não emitiu sua opinião sobre isso. O que eu posso dizer é que nós, da Procuradoria de Defesa do Cidadão e dos grupos de trabalho sobre o tema, temos uma posição consensual de que a melhor interpretação sobre a Lei da Anistia não foi àquela defendida pelo Gurgel e dada pelo Supremo.
CM – Por que, exatamente, o parecer do Gurgel não era o melhor?
AR – O parecer do Gurgel era conforme o entendimento que prevaleceu. Um parecer juridicamente perfeito que foi aceito pela maioria que constituiu o voto, mas que nós elegantemente discordamos. Nós achamos que não é possível se interpretar que a Lei da Anistia tenha criado uma imunidade para sempre e que não tenha havido uma distinção entre os atos praticados por quem sofreu a repressão e por aqueles agentes do estado que participaram dos atos mais bárbaros e covardes, que levaram ao desaparecimento e à morte de centenas de pessoas. Isso, para nós, é uma diferença brutal. Ainda que algumas pessoas tenham pegado em armas para defender as ideologias mais extremas e que esse ideal que eles defendiam não prevalece hoje, não seja o modo como o mundo se organizou, isso, de modo nenhum, poderia justificar o que agentes do estado fizeram, com cobertura oficial. Nós temos absoluta percepção de que, quando se tem provas concretas da participação de pessoas ligadas ao estado em crimes de genocídios, homicídios e torturas, no que a gente chama de crimes de lesa-humanidade, não se pode abstrair esse fato, não se pode esquecer isso.
CM – E por que essa sua posição, que parece tão óbvia, não prevaleceu?
AR – Há uma confusão tremenda quando se interpreta esse acordo feito pelas elites políticas da época, de que anistia possa significar esquecimento, como se tudo o que aconteceu neste país pudesse ser coberto por um manto de impunidade. As famílias ainda estão aí. Poucas mães sobreviveram, mas vários irmãos, filhos, estão presentes e exigem justiça: não só que o Estado brasileiro reconte o que aconteceu, que haja uma outra visão do que foi a história oficial contada há mais de 30 anos, mas que também haja justiça. Que as pessoas que fizeram tanto mal aos seus entes queridos, de algum modo, sejam levados à justiça. Podem até ser absolvidas, o juiz pode até decretar a prescrição, mas impedir que eles sejam levados à justiça não faz nenhum sentido. Isso, sim, quebra o estado democrático de direito. Isso quebra toda a ideia que se tem de que para cada crime tem uma pena e, obviamente, de que o processo legal significa permitir que o MP possa denunciar, que o poder judiciário possa receber, que o réu possa se defender e que ao final haverá uma sentença. Pode- se absolver ou condenar, mas impedir que o poder judiciário venha a julgar estes casos nos aprece completamente fora do nosso esquadro constitucional e legal. E ainda há uma decisão da Corte Interamericana, na qual o Brasil foi condenado e tem a obrigação de fazer.
CM – O MP fica em uma sinuca de bico, de um lado com a revalidação da Lei da Anistia, que impede a justiça de transição de funcionar, e de outro com decisão da Corte Interamericana, que o obriga a fazê-la?
AR – Esse dilema é muito maior para a justiça, porque nós assumimos a decisão política de investigar todas essas pessoas, não importa se são os notórios torturadores do Araguaia ou aqueles que estavam na Casa da Morte e nos Doi-Codis. Todas as vezes que encontramos provas, nós levamos estas pessoas à justiça, para que as pessoas que cometeram esses crimes bárbaros respondam. E não importam se são velhinhos, pessoas até adoentadas. Isso é uma outra coisa que pode servir até na fixação da pena. Mas é preciso dizer que pessoas que, aparentemente, nós pensamos que sejam razoáveis, que sejam cidadãos de bem, praticaram atos horrorosos. E esse dano, essa mal que eles fizeram tem que ser apurado. Nós não vamos nos reconciliar enquanto nação enquanto tivermos tantas Marias e Clarices chorando os filhos e irmãos perdidos. E bradando por justiça que, aliás, não deve faltar a quem precisa.
Da nossa parte, nós estamos interpretando a Lei da Anistia dentro da visão como ela tem que ser pensada. Ela foi importante? Foi. Ninguém discute os critérios dela. Não precisamos revogá-la ou dizer que é inconstitucional. Precisamos é dar uma interpretação conforme, uma interpretação para dizer que certos dispositivos não significam impunidade. E é simples chegar a essa conclusão, porque não se pode deixar de investigar fatos gravíssimos, crimes de lesa-humanidade, e na qual o MP age porque se tratam de ação penal pública incondicionada. O MP nem precisa de uma representação da vítima ou dos seus familiares para poder agir. Isso é algo importante.
Agora, o poder judiciário enfrenta a grande dificuldade de vencer essa jurisprudência do Supremo. O Judiciário, sim, se encontra numa encruzilhada, porque constantemente as pessoas alegam que a decisão do juiz é contrária à jurisprudência da corte. Por isso, nós achamos que o Supremo deve à sociedade o ato de revisitar essa decisão, com um outro olhar. Passado esse tempo, deve julgar isso sem medo de que possa ocorrer uma desestabilização política. Agora, temos um elemento novo, que é poder julgar isso com um grau de racionalidade e com a visão olímpica do que esperamos para o país.
CM – Essa nova estrutura do STF pode favorecer essa revisão?
AR – Eu acredito não só na renovação dos novos ministros, mas acredito principalmente no comprometimento deles com a ideia da justiça. A partir do momento que for levado ao conhecimento deles que vários juízes estão deixando de receber denúncias com base na jurisprudência deles, que eles compreenderem que isso está servindo como manto de impunidade, eu tenho a impressão de que eles terão um outro olhar. Todo juiz, todo órgão colegiado, tem esse ideal de justiça. Pode ter uma diferença ideológica – e é bom que tenha, que seja um órgão plural – mas este ideal de justiça todos têm. Por isso minha esperança de que, com uma nova composição e um novo olhar da sociedade, sem o risco de tomar uma decisão que pudesse criar uma instabilidade política no país, a gente possa ter uma decisão, vamos chamar assim, com mais imparcialidade.
CM – Qual o perfil desse grupo de procuradores e promotores que atuam no tema?
AR – Eu quero muito, inclusive, fazer um tributo a esses jovens procuradores. Alguns nem eram nascidos, outros eram bebês, tinham menos de cinco anos quando saiu a Lei da Anistia. E eles tem tocado isso com uma enorme vontade de saber o que aconteceu no país, de buscar novas práticas, de tomar novos depoimentos, de entender o que aconteceu. E ninguém faz isso por vingança.
Muitos nem eram nascidos, não têm parentes que morreram em decorrência da perseguição política. Não são filhos de presos políticos ou exilados. Poderiam ser, mais não são. São pessoas da classe média, que ingressaram via concurso público e que nunca se conformaram, que fazem o que a sociedade espera do MP. Essa nova geração de procuradores e promotores têm o ideal de justiça à frente. Eles não estão ali preocupados com justiça pessoal. São jovens procuradores em nenhuma ligação direta nem com as vítimas nem com o sistema de opressão.
CM – A impressão que se tem, de fora, é que esse grupo tem feito um esforço imenso para responsabilizar os agentes de estado, cercando de todos os lados, mesmo com os limites da legislação: não deu criminalmente, tenta-se um dano moral, por exemplo. Qual é a estratégia adotada?
AR – Eu acho que a estratégia é vencer algumas barreiras culturais que se tem em relação a este processo de transição. Há muita gente no Brasil que ainda defende a ideia de que não se tem que apurar nada, que é melhor não reabrir velhas feridas e tal. Mas essas feridas estão abertas, nunca foram fechados. Os familiares ainda estão aí, algumas vítimas estão aí. A Comissão de Anistia tem feito um trabalho genial de reconhecer e pedir perdão em nome do estado. Então, essa reconciliação se dá também na medida em que o estado reconhece publicamente o quanto errou. E independentemente das questões ideológicas, do que pretendiam os guerrilheiros do Araguaia ou o pessoal dos grupos de esquerda, esse não é o ponto. O estado e seus agentes não tinham direito de agir com a truculência que agiram: matar, desaparecer e negar às famílias o direito de encerrar o ciclo. A nossa perspectiva dentro dos grupos é buscar a memória, para que o país não se esqueça do que aconteceu, investigar, pra buscar a verdade em toda a sua extensão, saber porque essas pessoas desaparecerem, morreram, em que circunstância, e quem fôramos culpados, que é a última parte do tripé, a justiça.
CM – Dentro das várias ações já impetradas pelo MP contra agentes da ditadura, qual poderia ser considerada mais representativa do período?
AR – Um caso paradigmático é o do Rio Centro. A ação que o MP fez é definitiva. Nós precisávamos ter uma outra visão dos órgãos punitivos do estado do que aconteceu ali. A justiça militar arquivou por duas vezes um inquérito completamente equivocado que foi, lá atrás, direcionado para um determinado resultado, inclusive com desaparecimento de provas. Agora, ainda que muito tempo depois, as pessoas precisam saber que não era só a maldade que estava por trás desses agentes do estado. No caso do Rio Centro, nós já havíamos passado da Lei da Anistia. Foi em 1981, dois anos depois. Se o plano macabro funcionasse, nós poderíamos ter perdido alguns dos nossos artistas mais queridos e registraríamos uma tragédia humanitária que contaria centenas de pessoas mortas. E isso por uma ideia absurda de se colocar a culpa no grupo de esquerda para forçar o fechamento. Então, foi um golpe contra o próprio general Figueiredo que apostava, na época, na abertura política e que foi quem afiançou a Lei da Anistia. Foi o golpe dentro do golpe: um grupo de agentes de extrema-direita, descontentes com a abertura, promoveu um ato de terrorismo.
CM – É paradigmático em relação à impunidade que marca o período: mesmo sendo um golpe dentro do golpe, ninguém foi responsabilizado.
AR – Não houve. Na época, houve até uma crise política. O general Golbery saiu do governo. O presidente Figueiredo falou amargamente que aquilo anulou completamente com ele, porque ele não pode fazer uma investigação, o que faria com que tudo o que foi feito atrás aparecesse e ele era parte daquele regime militar. Eu tenho a viva convicção de que o presidente Figueiredo e a sua ideia de transição também foram vítimas do atentado. Eles queriam de algum modo reverter isso. É uma página infeliz da nossa história que precisava ser contada. E a justiça precisa dar um outro veredito, diferente daquela farsa que houve na justiça militar. A nova denúncia, com provas, com fatos, demonstra o que aconteceu. Pode ser até que a justiça determine a prescrição e que os denunciados não sejam condenados. Mas mudará a história.
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