No Brasil, o modelo de atenção ao parto é intervencionista, hospitalocêntrico e medicalizado, mas taxas de mortalidade materna e neonatal seguem altas e sem sinais de que irão diminuir. Conheça algumas experiências que dão certo no SUS
Raquel Torres, do Rio de Janeiro (RJ)
Da Revista Poli – Saúde, Educação e Trabalho
É uma sala ampla, com janelas abertas e muitas almofadas espalhadas pelo chão. Sentadas em círculo estão cerca de dez gestantes acompanhadas por suas mães, tias, filhos, maridos ou namorados. “Como e onde vocês nasceram?”, pergunta a enfermeira que conduz o grupo. Entre os mais jovens, a imensa maioria diz ter nascido no hospital, por cesariana. “E os pais de vocês?” Eles se dividem. Alguns afirmam que os nascimentos se deram por parto normal e outros por meio de cirurgias, mas quase todos no ambiente hospitalar. “E os avós?” Agora a resposta é unânime: em casa, parto normal.
O pequeno questionário inicia uma reunião de acolhimento na Casa de Parto David Capistrano Filho, em Realengo, Rio de Janeiro. Com uma equipe formada majoritariamente por enfermeiras obstétricas (EOs) – e sem médicos –, a Casa é voltada para gestantes de risco habitual (as chamadas de baixo risco). Qualquer intercorrência identificada durante a gravidez ou trabalho de parto leva à transferência, em tempo hábil, para um hospital próximo já pronto para receber a gestante. O encontro, que ocorre uma vez por semana na Casa de Parto, é obrigatório para quem deseja realizar o pré-natal lá e é sempre dirigido por Leila Azevedo ou por Edymara Medina, que coordenam a instituição.
No cenário descrito aí em cima, é Edymara quem está à frente. Ela questiona: “Nos últimos 60 ou 70 anos, o que será que aconteceu para que nós, mulheres, deixássemos de acreditar que somos capazes de parir sem grandes intervenções externas?”. Ela diz que o ideal não é simplesmente ‘voltar ao passado’ e deixar que as mulheres tenham seus filhos sem assistência adequada ao parto, mas sim rever certos procedimentos que se mostram ineficazes e desnecessários.
Os visitantes se apresentam e contam como decidiram conhecer o estabelecimento. “Eu comecei a fazer o pré-natal com o meu médico, do plano, mas ele disse que eu teria que fazer cesariana porque sou pobre. Disse que parto normal deixa a gente ‘larga’ em baixo e precisa fazer cirurgia plástica depois, e pobre não tem dinheiro para fazer plástica… Mas eu não acreditei muito, por isso vim”, expõe uma das mulheres, recebendo olhares perplexos das demais pelo absurdo da história descrita.
A situação brasileira
Pode ser absurda, mas não é a única história ‘mal contada’ que leva gestações perfeitamente saudáveis a terem a cesariana como desfecho. Artigos como Unwanted caesarean sections among public and private patients in Brazil, de Joe Potter e outros autores, mostram que entre 70% e 80% das brasileiras que passaram pela cesárea desejavam, na realidade, partos vaginais. Porém, hoje, apenas 48% das mulheres do país conseguem efetivamente dar à luz por essa via.
Enquanto a Organização Mundial de Saúde (OMS) preconiza que uma taxa de cesarianas razoável giraria em torno de 15%, o Brasil tem a maior do mundo: 52,3% – no setor público são 38% e, no privado, mais de 80%. Em algumas cidades, os números do setor privado são ainda mais alarmantes. No município do Rio de Janeiro, de acordo com a Secretaria Municipal de Saúde, 93% dos nascimentos ocorridos em hospitais particulares se dão por via cirúrgica. Na prática, isso significa que as gestantes cariocas têm apenas 7% de chances de conseguirem um parto normal fora do Sistema Único de Saúde (SUS).
O número elevado de cesarianas é apenas um dos problemas do nosso modelo. Os partos vaginais realizados no país ainda têm como característica, em sua maioria, o abuso de intervenções violentas ou o tratamento inadequado às gestantes. A pesquisa ‘Mulheres brasileiras e gênero nos espaços público e privado’, publicada pela Fundação Perseu Abramo em 2010, revelou que 25% das mulheres relatam algum tipo de violência durante o atendimento ao parto – atitudes que vão desde xingamentos, gritos e o impedimento da presença de um acompanhante (o que, em tese, é garantido por lei desde 2005) até a realização de procedimentos dolorosos sem aviso ou consentimento. Na rede pública o panorama é pior: a violência obstétrica foi referida por 74% das mulheres.
Além disso, o Brasil não é, nem de longe, o país mais seguro do mundo para se parir e nascer, apesar de o sistema ser altamente medicalizado e centrado nos hospitais – mais de 95% dos nascimentos ocorrem dentro dessas instituições. A razão da mortalidade materna, segundo dados do Ministério da Saúde (MS), é hoje de 78 a cada 100 mil nascidos vivos. Parece pouco, mas, para se ter uma ideia, no Canadá, Alemanha, Holanda e Suécia esses números são, respectivamente, 12, 7, 6 e 4. Em relação à mortalidade neonatal, a situação também não é boa. Em 2011, de acordo com a OMS, a taxa brasileira foi de dez mortes para cada mil nascidos vivos, bem distante dos valores de países como Reino Unido (3), Canadá (4), Holanda (3), Suécia (1) e Japão (1).
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Enviada para Combate Racismo Ambiental por José Carlos.
Este é o exemplo mais tenebroso da medicalização extrema da saúde no Brasil. Há poucos dias uma gestante foi obrigada judicialmente a aceitar o parto por cesariana no Rio Grande do Sul. Precisamos urgentemente de outra reforma sanitária neste país, como sonhou o grande David Capistrano!