Por André Takahashi, em Carta Capital
Durante o mês de junho as manifestações massivas contra o aumento das tarifas fizeram emergir novas dinâmicas no cenário político brasileiro, uma renovação da organização social que questiona os limites legais do status quo. A inovação e o choque desse outono de 2013 aconteceram porque a desobediência civil – tática histórica de movimentos contestatórios – teve uma aceitação popular jamais vista no Brasil desde a proclamação da república (sempre é bom lembrar que a proclamação da república foi uma quebra da institucionalidade).
Surgiram alternativas de luta, cada qual com suas táticas. A ação direta não violenta das multidões veio em Porto Alegre no levante contra o aumento das tarifas, reforçado pelo Movimento Passe Livre (MPL) de São Paulo. Foram bloqueios de vias, abertura de catracas, escrachos (denúncia públicas de pessoas acusadas de violações de direitos, como ex-agentes da ditadura) e ocupações de prédios públicos.
São ações questionadoras da ordem que, em muitas ocasiões, despertam resposta violenta da polícia e tentativas de criminalização por parte da grande mídia. Ao mesmo tempo, essas ações se colocam diretamente contra o Estado e os efeitos da exclusão econômica, partindo sem intermediários para a disputa do modelo de sociedade.
Black Bloc. Paralelo a essa estratégia – e independente do MPL e congêneres – se manifestou nesse período a tática do Black Bloc, em grande parte como resposta à violência policial. O Black Bloc é composto por pequenos grupos de afinidade, muitas vezes feitos na hora, que atuam de forma independente dentro das manifestações. Mas, ao contrário do MPL, o Black Bloc não é uma organização ou coletivo e sim uma ideia, uma tática de autodefesa contra a violência policial, além de forma de protesto estética baseada na depredação dos símbolos do estado e do capitalismo. A dinâmica Black Bloc lembra mais uma rede descentralizada como o Anonymous do que um movimento orgânico e coeso.
Utilizada primeiramente pelos movimentos autonomistas da Itália e da Alemanha, é muito presente na Europa e EUA, e mais recentemente nos países árabes, mas nunca havia encontrado condições para se desenvolver em solo brasileiro.
O primeiro sinal de propaganda Black Bloc no país ocorreu no início dos anos 2000, durante o surgimento do movimento anticapitalista global (antiglobalização), mas foi descartado pelos ativistas autônomos da época por avaliarem a ação direta não violenta, manifestada principalmente nos protestos contra a Área de Livre Comércio das Américas (ALCA), estrategicamente melhor para o cenário brasileiro. Anos depois essa opção pela ação direta não violenta combinada com trabalho de base, organização horizontal e uso intensivo da internet influenciou a criação do MPL e outros movimentos autônomos, como a Bicicletada, o Centro de Mídia Independente e o Rizoma de Rádios Livres.
No entanto, a ideia do Black Bloc nunca morreu, manifestando-se em escala menor e de forma bem isolada em manifestações anteriores. Nada muito significativo ou mesmo duradouro, sendo impulsionado por elementos anônimos que não deram continuidade à sua atuação. Mas a ideia estava lá, sempre lá, e na primeira oportunidade se manifestava em algum canto do País, geralmente como recurso para a autodefesa.
Violência policial e autodefesa. Em junho o cenário de manifestações criou um ambiente favorável para o florescimento do Black Bloc brasileiro na sua forma de autodefesa. Em diversas capitais as mobilizações extrapolaram a capacidade organizativa dos grupos e movimentos que as desencadearam, criando movimentos multicêntricos onde cabem diversas estratégias, táticas e narrativas mobilizadoras. Como na maioria das cidades esse crescimento veio pela solidariedade popular pós-repressão, é coerente afirmar que a violência policial foi o fermento da indignação que levou a população às ruas no auge das jornadas de junho; e serviu como justificativa moral, segundo seus defensores, para a disseminação descentralizada da tática Black Bloc.
Reações de autodefesa começaram a surgir no meio da massa de manifestantes, de forma cada vez mais organizada. No Rio de Janeiro, devido à intensidade da repressão e às condições geográficas e sociais da cidade, que aproximam bairro e favela, jovem de classe média e jovem da periferia, a intensidade da repressão policial e da resposta dos manifestantes foi maior.
Apoio aos irmãos cariocas. Recentemente, na sexta-feira 26 de julho, houve um ato na avenida Paulista denominado “Ato em apoio aos irmãos cariocas versão sem pelegos”. Esse ato pode ser considerado um ponto de virada na narrativa do Black Bloc brasileiro. Pela primeira vez a ideia e a tática se manifestaram em sua plenitude na forma da manifestação direcionada para a destruição de propriedades privadas e públicas. Cerca de 300 pessoas percorreram o trajeto do Masp até a 23 de Maio destruindo bancos, bases policiais e veículos da mídia hegemônica. A polícia acompanhou a movimentação de longe, alegando esperar o reforço da Força Tática para iniciar a dispersão do ato.
Na terça-feira 30, o ato chamado pelo Facebook, reuniu manifestantes contrários ao governador paulista, Geraldo Alckmin, e ao governo de Sérgio Cabral, no Rio de Janeiro. Alguns manifestantes picharam paredes, quebraram o vidro de uma concessionária e de agências bancárias na região. A Força Tática e a tropa de Choque da Polícia Militar seguiram atrás dos manifestantes.
A retomada da polícia já havia sido prometida na página da Secretaria de Segurança Pública na internet, com o órgão dizendo que a PM agiria “com a energia necessária para evitar atos criminosos,” após agências bancárias e bases policiais terem sido danificadas na avenida Paulista na última sexta-feira. Com a ação de 220 oficiais, segundo a própria corporação, foram detidos 20 manifestantes. Destes, cinco ainda continuam presos por suspeita de formação de quadrilha, resistência à prisão, desacato e dano ao patrimônio público.
Os protestos recentes e especificamente as manifestações Black Bloc têm sido usados como pretexto para pautar soluções repressoras. A mídia tem feito o trabalho de recortar as imagens de depredação e confronto sem o mínimo de contextualização, imprimindo a narrativa que melhor lhe convém, e muitas vezes criminalizando pessoas não envolvidas nos confrontos. Do outro lado, iniciativas midialivristas e os demais veículos de esquerda têm trazido outros pontos de vista sobre a questão, forçando uma pequena mudança na linha editorial dos meios hegemônicos como demonstrou o caso do ativista carioca Bruno, incriminado injustamente de ter atirado molotovs na polícia.
Vale nos questionarmos como o Black Bloc vai impactar na disputa de imaginário da sociedade e como o estado e os demais movimentos vão lidar com essa novidade política. Com a expansão dessa tática será possível realizar novas ações diretas não violentas de multidão, convocadas pela internet, sem essas terminarem, necessariamente, em confronto físico?
Como diferenciar o Black Bloc do agente provocador infiltrado, que está na manifestação apenas para criar fatos que justifiquem a repressão? A suspeita sobre os P2 levanta outra questão: até que ponto a violência por parte dos manifestantes serve aos interesses de determinado governo?
Cada caso é um caso, e só nos resta avaliar cada conjuntura com lucidez, a fim de que não sejamos levados a tomar opinião direcionados por interesses ocultos. Formação política, clareza dos objetivos e capacidade de análise de conjuntura serão dos fatores determinantes para o futuro da ação direta urbana no Brasil, seja ela violenta ou não violenta.
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Enviada para Combate Racismo Ambiental por José Carlos.