Por Altino Machado, Terra Magazine/Blog da Amazônia
A indústria de cosméticos Natura foi inocentada pela Justiça Federal no Acre na última quinta-feira (23) da acusação de exploração indevida de conhecimento tradicional da etnia ashaninka do Rio Amônea, na fronteira do Brasil com o Peru. O processo se arrastava há quase seis anos, a partir de uma ação civil pública do Ministério Público Federal (MPF), e envolvia murmuru, uma espécie de coco, usado na fabricação de sabonete, xampu e outros cosméticos com elevado poder de hidratação.
Sentença do juiz da 3ª Vara da Justiça Federal, Jair Facundes, rejeitou os pedidos do MPF de condenação das rés Natura e Chemyunion Química Ltda, além da alegação de que o conhecimento sobre o murmuru era tradicional e próprio dos ashaninka ou de outra tribo. Publicações, livros e artigos, em várias línguas, descrevem as propriedades e composições do murmuru e indicam seu uso para sabonetes e xampus.
Mas, na sentença de 53 páginas (clique), o magistrado condenou solidariamente o empresário Fábio Fernandes Dias e a Tawaya (Fábio F. Dias ME) ao pagamento de indenização aos ashaninka correspondente a 15% do lucro obtido pela empresa. O percentual deve incidir pelo prazo de 15 anos, a contar do início das atividades da empresa, garantida indenização mínima de R$ 200 mil.
Livros de 1927, 1949, 1950 e 1954, entre vários outros, listam o murmuru como palmeira detentora de gordura excepcional para fins alimentícios e cosméticos. No entendimento do juiz federal isso exclui a alegação de que se tratava de conhecimento exclusivo e próprio dos indígenas, caracterizando-se como conhecimento disseminado ou público, de modo que qualquer pessoa poderia desenvolver produtos com murmuru.
Embora o magistrado tenha afastado a alegação de conhecimento tradicional, reconheceu que houve uma pesquisa sob cláusula de confidencialidade, descumprida por Fábio Fernandes Dias, que se apropriou das informações obtidas na pesquisa e as utilizou em proveito próprio.
Além do empresário e das três empresas, o MPF envolveu no processo o Instituto Nacional de Propriedade industrial (Inpi), que contrariou a Medida Provisória 2.186/01 ao permitir o registro de patente de produto obtido a partir de conhecimento tradicional sem prévia autorização de acesso e sem repartição dos benefícios.
A Convenção sobre Diversidade Biológica (CDB), assinada pelo Brasil, e a Medida Provisória 2.186/01 estabelecem que o conhecimento tradicional indígena só pode ser acessado mediante prévio consentimento de seus titulares e com repartição dos benefícios resultantes do conhecimento.
O Inpi foi condenado a somente conceder direitos de propriedade industrial sobre processo ou produto obtido a partir de amostra do património genético, com ou sem conhecimento tradicional associado, quando o interessado demonstrar, além da prévia autorização de acesso, acordo quanto à repartição de benefícios e a submissão de uma e outro a exame pelo Conselho de Gestão do Patrimônio Genético.
A sentença decidiu, ainda, que não há óbice ao uso de marca com utilização de nome indígena, a exemplo do que ocorre com os produtos Baré, Tuchaua, Aymoré, Caramuru, Tupã, Cariri, Poty, Caiapó, Jurema, Iracema, Ipanema, Peroba, Jandira etc.
O MPF acusou o empresário Fábio Fernandes Dias de ter acessado o conhecimento dos indígenas sem autorização prévia e sem acordar como seria a repartição dos benefícios resultantes da exploração comercial do murmuru.
O empresário também foi acusado de ter possibilitado que outras empresas acessassem e lucrassem com o conhecimento tradicional ao compartilhar as informações obtidas junto aos ashaninka com um professor universitário que, por sua vez, publicou artigo descrevendo as propriedades do murmuru.
As empresas Natura e Chemyunion não foram acusadas pelo MPF de acesso direto ao conhecimento tradicional, mas de acesso indireto. Elas teriam se aproveitado do artigo publicado sobre o murmuru e desenvolvido produtos com base nesse recurso da biodiversidade sem repartir os benefícios auferidos com tal produto e conhecimento.
Ainda segundo o MPF, o empresário participou de uma pesquisa para descobrir o potencial de mercado de espécies e técnicas indígenas, assinando contrato pelo qual não poderia usar ou divulgar as informações obtidas na pesquisa sem prévia autorização dos ashaninka.
O juiz determinou na sentença o desentranhamento dos documentos relacionados à pesquisa patrocinada pelo Centro de Pesquisa Indígena, os quais deverão ser encaminhados ao MPF para que providencie sua entrega aos ashaninka.
O MPF pediu a condenação dos réus em danos morais com o argumento de que a apropriação indevida de amostra do patrimônio genético nacional e, em particular, do conhecimento tradicional ashaninka afetou “a imagem indígena e imagem brasileira”, as quais passariam a ser vistas sob a pecha de “trouxas”, “de tolos, de parvos, pessoas que não aproveitam suas potencialidades”.
Porém, pela ausência de prova, o juiz considerou que fatos dessa natureza não se revestem de maior densidade para ser reconhecida como causadora de dano moral.
– É mais plausível inclusive outra leitura, e vê-los como grupo que, apesar das dificuldades extremas para manter seus valores e formas de vida, oferecem singular exemplo de resistência cultural – afirma o magistrado na sentença.
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Enviada por Elen Pessôa