Maria Gercina tinha uma princesa a quem muito amava. Socorro, era a única filha. Um dia, ela avisou que iria morar com Esequias. A mãe ficou preocupada: pediu que o genro tivesse cuidado, que se percebesse que não amava mais a mulher, a deixasse. Há três anos, encontraram na rua, no meio da noite e com a ajuda da luz de um celular, a princesa morta
Por Fabiana Moraes, no Jornal do Commercio – “Eu disse a ela: ‘filha, uma pessoa chegou aqui em casa dizendo que você tá gostando de Esequias, e Esequias é mau elemento. Minha filha, não faça isso não. Porque meu dinheirinho é pouco, mas eu lhe ajudo o suficiente para você não precisar se agarrar com quem é errado’. Aí Socorro disse ‘é não, mainha, o povo fala muito’. Eu falei ‘você tem certeza?’ Ela disse ‘tenho’. Aí ficou. Depois um dizia, outro dizia, um falava, outro falava. ‘Socorro tá com Esequias, Socorro não sei o quê.’ Quando foi um dia ela me disse ‘é, mãe, eu tô gostando dele e vou morar com ele.’ Eu falei ‘você é quem sabe. Você lembra o que ele faz com as mulheres, né?’ Ele já tinha cortado o pescoço de outra esposa dele, de Ana. Só sei que ela ficou.
Quando foi um dia, eu cheguei lá na casa dela e fomos ver Londinha, minha nora. Aí o telefone de minha filha tocou. Ela disse ‘mãe, quer falar com ele?’ Eu peguei o telefone. Ele disse assim ‘a senhora me quer como genro?’ Eu disse ‘não.’ Eu nunca tinha visto ele, nunca tinha conhecido. Ela pegou o telefone e disse ‘mas mãe, a senhora tá me fazendo uma desfeita dessa, tá me fazendo vergonha.’ Eu disse ‘minha filha, a forma dele não é agradável.’
Eu sei que ficou. Depois ela começou a ficar vindo aqui com ele, eu comecei conhecendo ele… quer dizer, minha filha, fui me acostumando. Aqui, na minha casa, na minha residência, no meu território, ele não fazia violência com ela não. Era um amor, era agarrado, ele tratava ela super bem, isso eu não vou negar, eu tenho que falar a verdade. Mas era aqui, na minha frente. Era pra eu ter confiança. Agora, lá fora, a coisa era diferente, minha filha. Aí com uns dois anos, acho que uns dois anos e alguns meses, que eu não guardo mais nada, é muita perturbação na minha vida… só sei que vieram num dia de domingo, eles vinham todo domingo, Natal passavam comigo, Quaresma também. Eu ficava feliz, porque eu vivo só. Eu moro com meus dois filhos, os dois homens, mas você sabe, esse povo jovem, um sai pra um canto, outro sai pra outro. Eu fico aqui. Eu só sei que Socorro e Esequias passaram um domingo comigo. Perto do outro, ela disse ‘mãe, eu não venho domingo que vem, vou à praia com Esequias e os meninos’. Eu disse ‘tá certo, minha filha’. Ela tinha o direito dela de se divertir, de ir pra praia, né? Quando foi à noite, eu tava aqui, os meninos chegaram chorando, o maior desmantelo. Eu fiquei ‘o que foi, meu filho, o que foi?’, fiquei tremendo, perdendo a memória… ‘mãe, Dôi tá morta, Dôi tá morta…’ Dôi era o apelido dela. ‘Esequias matou Dôi, mãe. Ela tá morta’. Eu fiquei abestalhada aqui, minha filha, sem saber o que fazer.
Quem viu primeiro foi um sobrinho meu, ele mora perto de onde aconteceu o crime. Só que ele não tava em casa. Uma vizinha é que ouviu a briga deles pra lá. Aí não sei se ela ouviu que Socorro estava furada. O meu sobrinho foi chegando em casa, aí a vizinha foi e gritou ‘seu Bau, ali tem uma mulher furada, caída.’ Ele disse ‘eu vou olhar quem é.’ Quando ele foi, que iluminou com o celular, gritou ‘meu Padre Cícero, é a minha prima!’ Ele me disse que não passou nem cinco minutos e ela terminou de morrer. Só estava arquejando, ficou com a faca enterrada nela.
Depois eu soube que ela passava ordem para o meninos não me falarem que ela apanhava, para eu não me preocupar. Foi a perdição dela. Porque, se eu soubesse, eu tinha tirado ela dele, ligeiro e cedo. Mas ela só dizia que vivia feliz com ele. Filha que não gostava de preocupar a mãe, suportava tudo calada. Ela sabe o que eu fazia com ela, o que eu fazia para ela não cair em tentação. Eu sou pobre, fraquinha de dinheiro. Mas eu não deixava ela passar por decepção. Pronto, foi assim que eu soube. Foi meu sobrinho que avisou a Ademir, meu menino, faz seis meses que mataram ele. Esse meu filho morava em Rio Formoso, mataram ele por lá, eu não sei se foi confusão, briga em bar. Só sei que ele foi morto a tiro. O mundo hoje tá muito violento, ninguém pode nem olhar na cara do outro. Foi isso, Ademir que foi ver Socorro e depois veio me avisar.
Eu disse para ele ‘vá avisar a seus irmãos por aí’, depois chegou meu filho caçula, ele foi chamar o outro que estava no vídeo-game. Aí eu saí por aqui mais o caçula, minha sobrinha me acompanhou. Quando eu cheguei lá, no canto onde ele matou ela, tava a desgraceira. Eu já não sabia mais o que fazer, eu não sabia mais onde pisar. Eu estava cega já, não enxergava ninguém. O que é que eu ia fazer? Uma multidão de gente, na minha vista eu vi umas duas mil pessoas lá. Era polícia, era delegada, era tanta da gente. Todos esperando pela mãe para fazer o levantamento do corpo. E pronto, e foi assim. Ela tinha 31 anos. E ele tá por aí. Ela tem uma filha chamada Maria Eduarda Conceição Vieira. Tem um filho chamado Mario Eduardo Conceição Vieira. Tem outro filho, o caçula, Maicon Edgard Conceição Vieira. A menina está indo pra 14 anos, o outro tem 12 e o menor tem oito. Estão todos os três comigo. Eu comprei uma casa aqui na frente e aí chamei o pai deles, o primeiro marido de Maria do Socorro. Chamei ele para tomar conta, para me ajudar, que eu não aguento mais, eu vivo quase aleijada. Eu fico lá e cá tomando conta deles.
Eu sempre trabalhei muito. Eu sou cozinheira, de forno a fogão. Mas eu não trabalhava fichada não. Naquela época não tinha exigência de patrão fichar a empregada, você sabe, hoje é que tem lei. Naquela época não tinha não. Só trabalhei clandestina. Criei os meninos assim. Trabalhei aqui com os veranistas, tinha patrão bom, patroa boa. Me ajudavam, eu também dava meu serviço, fazia o gosto deles. Eu deixava Socorro e os meninos em casa, deixava comida pronta. Fazia comida à noite, lavava roupa à noite. Quando chegava, arrumava a casa. Era assim que eu fazia. Tinha minhas vizinhas boas, que ficavam olhando os meninos. Onde eu chego, eu faço boas vizinhas, eu sou uma pessoa alegre, feliz, faço amizade com todo mundo.
Eu morava lá embaixo, na invasão. Eu botei todos os meus filhos na escola, todos eles eu botei na escola. Agora, depois de 15, 16 anos, eles desistiram dos estudos. Mas todos os filhos eu botei na escola, tinha prazer. Comprava roupa, calçado, livro, caderno, perfume. Dava comida na hora certa, é como eu faço com meus netos. Depois que eles chegaram aqui em casa, se distraíram com os cachorros, as galinhas e os gatos. Aí esqueceram da falta da mãe. Socorro era alegre, feliz, fazia amizade, aquela menina contente, aquele prazer, aquele voo de viver… o povo chorou muito a perda dela. Diziam ‘meu Deus, uma pessoa tão boa daquela…’ Com ela, não tinha tempo ruim.
Agora, Esequias está solto aí por Tamandaré. Domingo retrasado ele estava no espetinho, lá em Régis, tomando todas as cervejas. Segunda-feira, umas nove horas do dia, ele estava saindo de carro, parece que era para Serrambi, não sei pra qual inferno ele ia. O pessoal vê ele, chega aqui e me diz. Agora, a ele eu digo perante ao céu, a terra e o mar: onde ele estiver, vá pra bem longe, porque seu eu topar com ele na minha frente, se ele matou minha filha, vai me matar. Porque eu voo em cima dele. Eu voo, minha filha, eu voo. Não vou dizer a você que sou santa, não vou dizer a você que eu tenho o coração de Maria. Porque se eu ver ele na minha frente eu voo em cima dele, com o que eu tiver. Se ele matou a minha filha, vai me matar também. Que eu não tenho coragem de ver ele e ficar rindo para a cara dele não. É ódio até quando fala no nome dele.
Eu disse a ele, aqui, nessa mesa, nesse cantinho, em um dia que Socorro chegou com ele e eu chamei ‘vamos tomar uma cerveja, que a quentura tá grande.’ Ele disse ‘bora, sogra’, que ele me chamava de sogra. Eu fui buscar a cerveja na geladeira, botei três copos. Enchi um copo pra mim, um pra ela e um pra ele. Eu não tinha tomado ainda nem o primeiro gole, aí eu disse assim ‘Esequias, se você perceber que não dá mais para viver com a minha princesa, pelo amor de Deus, deixe ela. Deixe que eu tomo conta dela, que toda vida eu ajudei a minha filha. Porque eu só tenho ela de filha, é a minha princesa, é a pessoa que eu mais amo na minha vida, eu só tenho ela de mulher. Cinco filhos homens eu tenho, e só ela de mulher.’ Socorro chegou e disse pra mim ‘mãe, se acalme, que Esequias não vai fazer nada comigo não.’
A minha raiva é essa. Porque ele matou. Ele deixasse ela viver. Deixasse ela com os três filhos dela, mas deixasse ela. Ela não ia morrer de fome não. Ela não ia não. Agora só a covardia, de ele matar ela… não ficou para ele, não deixou ela para ninguém, não deixou ela para mim. E eu queria ela. Com marido, sem marido, com três filhos… se ela tivesse quatro filhos eu queria, se ela tivesse cinco eu queria, se ela tivesse 20 eu queria. Agora ele tá aqui dentro de Tamandaré, bebendo, farrando, pintando o sete. Só que ele peça bem a Jeová de nunca topar eu e ele assim na cara. Porque se ele matou ela, vai me matar também.”
Maria Gercina da Conceição tem 62 anos. Sua filha, Maria do Socorro da Conceição, foi assassinada com várias facadas nas costas e no abdômen em 18/04/2010, em Tamandaré, por Esequias da Silva Soares. No dia 18/7/2012, quase dois anos após o crime, a juíza Adrianne Maria Ribeiro de Souza decretou a prisão preventiva de Esequias. No dia 20/12/2012, o juiz Fábio Mello de Onofre Araújo (processo n. 0001028-24.2010.8.17.1450) revogou o pedido de prisão, alegando que o eletricista era réu primário. Três anos após o assassinato, ele continua em liberdade.
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Enviada por Vanessa Rodrigues para Combate Racismo Ambiental.