Por Vilma Reis*
No contexto das forças políticas, os Movimentos Negros e de Mulheres Negras se organizam no país contra a reação conservadora que se levanta contra as diferentes formas de reparação, seja no mercado de trabalho, no acesso à educação ou no acesso a recursos, para que um grupo majoritário da sociedade brasileira, a população negra, possa apresentar suas narrativas para as gerações atuais e deixe seu legado, na dramaturgia, na dança, na música ou em outra forma de manifestação da cultura, para as gerações vindouras. Essa manifestação do conservadorismo quando não permite a equidade, através de ações afirmativas, impede a partilha dos bens e recursos produzidas por todo povo brasileiro, evidenciando que é o racismo que estrutura o Brasil, onde o medo branco da onda negra permanece como um fenômeno longevo.
O Ministério da Cultura, conhecido como MinC, uma instituição com apenas 28 anos de existência, tão jovem como o recente período que o Brasil vive de intervalos de regimes autoritários, até 2012 o MinC seguia como se não houvesse divergência e vontade por parte daqueles e daquelas que produz a cena cultural negra em sua diversidade, à demanda por acessar os recursos do Ministério. Fóruns, Conferências, Painéis locais e nacionais foram organizados, Cias, Coletivos, Grupos, Posses foram erguidas, sempre cumprindo uma missão secular de ofertar a cultura, não como produto da indústria mas como reflexão, alimento, transmissão, para nossas dores, respostas contundentes diante das tragédias, das alegrias e celebrações da memória.
Tornou-se praxe para os donos do poder quando um grupo negro se manifesta de uma forma mais arrojada, logo eles pensam ah! Vamos apoiar um projeto deles e eles não mais incomodam. Mas não é que os donos do poder ficaram perplexos quando diante de todas as ausências, desde 1944 fomos capazes de dizer o nosso texto, com o TEN – Teatro Experimenta do Negro, e bem antes produzimos um outro texto com Lima Barreto, e depois com Carolina Maria de Jesus, um século antes de Carolina, com Maria Firmina dos Reis, no Maranhão, uma mulher negra, em 1859, fez o primeiro romance de uma escritora, assinado como escritora e não com pseudônimo masculino. E depois, na cara da ditadura, em que pese não estar registrado nos manuais da historiografia dos aliados, nos anos 1970, com os Cadernos Negros, em 1978, criamos a possibilidade de dizer nossas LETRAS, com orgulho, vivos, vivas e de pé.
Mas diante do financiamento público de tantas iniciativas culturais não negras, ao longo dos 28 anos de existência do MinC, não havia caminhos institucionais para que nossas produções pudessem, como manda a etiqueta republicana, serem também apoiadas pelo Ministério da Cultura do Brasil? Essa falta sempre nos incomodou, mas era preciso, como tudo que vira política pública para a população negra, que nós mesmo fossemos pensar, organizar, montar uma proposta. Foi assim na educação básica, no acesso a universidade, na saúde, e nós não fugimos da tarefa. Em 2012, associações negras nacionais, que se organizam no campo da cultura, construíram uma proposta e submeteram ao MinC, que, como nos lembrou a matéria de O Globo, do dia 22.05.2013, respondeu com a criação inédita de cinco editais, lançados em 20 de novembro.
Hoje o Brasil, cenário de mega eventos mundiais, de forma conservadora há segmentos contra qualquer forma de partilha dos recursos que já estão circulando e que obrigatoriamente terão que circular dentro das produções culturais, onde o país irá se mostrar ao mundo, como ocorreu no fechamento das Olimpíadas em Londres, em 2012, quando produtores culturais de diversos grupos da Inglaterra participaram da elaboração das apresentações do legado cultural Inglês. No Brasil corremos sério risco de ver representando o país somente com o que passar por olhos brancos. Por isso a fala de Emanuel Araújo, de afirmação dos editais precisa ser retomada, pois estes eventos não são somente esportivos, eles cumprem agendas, em disputa interna e externa, de visões sobre o Brasil e mesmo discordando da sua pertinência, devemos ter papel protagonista na produção de imagens que vão ocorrer, pois somos 51% do país e esta tarefa passa pela cultura e suas produções.
Mas como nos disse Machado de Assis, em seu magnífico conto “Pai contra Mãe”, a violência racial brasileira está secularmente organizada para impedir a nossa existência, negar a nossa humanidade, esmagar nossa criatividade coletiva, que, para todas as sociedades humanas passa pela vivencia cultural, por se mostrar nos palcos, nas letras, na musica, nas telas de cinema e em outras formas de expressão artísticas. As filhas do vento, em 2005 e Raça, em 2013, de Joel Zito Araújo, é uma dessas possibilidades. Mas a recente e grave manifestação contra os editais para a produção afro-brasileira do MinC, a partir da justiça federal no Maranhão, não representa uma ação isolada, pois se materializa na expressão de ação política organizada Brasil afora, de ataque a qualquer política que altere a propriedade da terra, do poder político e da produção cultural, dado que esta ultima mexe, fundamentalmente, na representação histórica da imagem negra, sob controle, onde tem sido depositadas todas as formas simbólicas de negação da nossa humanidade.
O enfrentamento ao imaginário racista, que estrutura as relações sociais brasileiras, como bem observou Sueli Carneiro, em sua tese de doutorado, passa pelo nosso entendimento do bio-poder, do poder do outro dizer quem somos, nos representar, negando estruturalmente a possibilidade de fazermos uma autorrepresentação, sem tutelas. Por isso os editais para a produção de narrativas para a descolonização é algo inédito, pois que surge da necessidade de superar uma ausência nas políticas culturais do MinC. E o inadmissível para aqueles que historicamente dominaram os recursos do Ministério é exatamente o risco de ver suas teses sobre a nossa impossibilidade de produção com qualidade serem desmascaradas, pois o que sempre falta às produções culturais afro-brasileiras são os recursos para filmar, entrar em cartaz, remunerar atores, atrizes, diretores diretoras, muitos dos quais que depois de horas de ensaios nos centros, voltam para suas casas na periferia é sofrem baculejo da polícia, que ri diante do grito EU SOU ARTISTA!
Militantes de companhias negras de teatro, dança, produtores da musica, de documentários, filmes e os grupos culturais comunitários, organizados a partir de encontros nacionais, como os Fóruns de Performance Negra, quatro vezes reunidos na Bahia, observando a cultura como um direito humano e fundamental, construíram os editais e ofereceram ao MinC, num movimento liderando pela AKOBEN, por uma nova atitude do Estado brasileiro, que, em geral, tem como forma organizar e alimentar os centros culturais centrais, como espaços para poucos e abastados, onde as maiorias não acessam, e, de entrar nas comunidades negras com a presença do aparato policial, o qual quase sempre viola direitos, ficando a oferta de bens e produções culturais a cargo dos grupos do lugar, onde os jovens e outros grupos organizam festas, bailes, rodas, coletivos literários, bibliotecas contando com recursos próprios, sem qualquer tipo de remuneração. É contra esta situação que lutamos e aqui falamos a nossa palavra, por ora infinita, REPARAÇÃO contra todos e todas que não nos querem de cabeça erguida e bicão na diagonal !!!
…Cada pedaço de pau, cada pedra fincada um pedaço de mim, Ilê Aiyê o povo negro ajudou a construi…
Construímos tudo e a obra segue!!!
Salvador, 23 de maio de 2013.
*Vilma Reis, Militante do Movimento de Mulheres Negras, Socióloga, Pesquisadora associada do Ceafro e membro do CDCN- Conselho de Desenvolvimento da Comunidade Negra da Bahia.
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Enviada por Patrícia Santana para a lista CEDEFES.