Por Elaíze Farias
Oito pessoas foram presas nesta quarta-feira (21) pela Polícia Federal sob suspeita de explorar sexualmente meninas indígenas do município de São Gabriel da Cachoeira (a 852 quilômetros a noroeste de Manaus), na região do Alto Rio Negro, no Amazonas.
A prisão destas pessoas (seis homens e duas mulheres – eram pra ser nove, mas um conseguiu fugir antes da ação policial), cujos nomes não foram relevados pela Polícia Federal (mas há indicações que são ligadas a uma rede de supermercados da sede daquele município), é resultado de um processo iniciado ano passado, no mês de setembro, quando o MPF, por meio do procurador da república, Julio Jose Araujo Junior, requereu que a investigação passasse para a esfera federal. Até então, inquéritos sobre o caso estavam parados na esfera estadual.
Em conversa que tive com o procurador hoje, ele explicou que a questão é da esfera federal pois, na sua avaliação, os direitos dos povos indígenas podem ser afetados coletivamente.
“A violência sexual gera impactos socioculturais e identitários naquelas comunidades. deve ser reconhecida a pluralidade da nossa sociedade, na qual os indígenas têm diferenciados modos de vida e de encarar o mundo, de maneira que o impacto dessa possível exploração não se restringe a uma única pessoa”, disse.
O pedido do MPF tem uma relação direta com uma matéria que eu produzi e que foi publicada no dia 9 de setembro no jornal A Crítica e reproduzida no portal.
Início
A minha apuração começou quando recebi a ligação de uma amiga que mora naquele município. Uma aliada veterana dos povos indígenas. Ela estava com medo de ser identificada (e, a pedido dela, nunca a identifiquei na matéria).
Coincidentemente, durante a apuração, o procurador Julio Jose estava de viagem a São Gabriel da Cachoeira, para realizar uma série de reuniões e visitas com lideranças da cidade e conhecer a realidade do Alto Rio Negro.
Após a publicação da matéria e após conversar com várias lideranças de São Gabriel da Cachoeira, o procurador instaurou um inquérito e solicitou que a investigação criminal passasse da esfera estadual (onde os inquéritos criminais estavam parados) para a federal.
É importante esclarecer que, independente da (não) investigação da Polícia Civil, onde estavam alguns inquéritos a Polícia Federal já vinha recolhendo alguns depoimentos das meninas vítimas dos exploradores sexuais.
Naquela semana de apuração para a reportagem, falei com várias pessoas: conselheiros tutelares, psicólogos, um agente da PF que estava em SGC naquele mês, uma delegada da Polícia Civil, lideranças indígenas, etc. O assunto: o surgimento de uma rede de pedofilia (embora não organizada) que explorava sexualmente meninas indígenas de São Gabriel da Cachoeira entre 10 e 16 anos de idade.
Dos entrevistados que denunciaram a história, os dois únicos que aceitaram ser identificados na matéria foi o então presidente da Federação das Organizações Indígenas do Alto Rio Negro (Foirn) e a irmã Giustina Zanoto, presidente do Conselho Municipal da Criança e do Adolescente (CMDCA).
A irmã Giustina está atuando hoje na África, após supostamente receber várias ameaças de morte devido à sua coragem em denunciar a prática da exploração sexual de crianças e adolescentes (peguei uma declaração da irmã Giustinha, que reproduzo neste texto).
O medo reinava entre os denunciantes. Não sem razão. Os aliciadores e exploradores das menores eram violentos em suas ameaças. Acreditavam sinceramente na impunidade. Também apostavam, mesmo inadvertidamente, na omissão da justiça estadual.
Durante a minha apuração, tentei falar com o promotor (ou promotora, pois não sabia se era homem ou mulher) que atuava em São Gabriel da Cachoeira. A mesma coisa com a juíza. Ambas não estavam na cidade.
Chamou a minha atenção (e aqui faço uma crítica) a indiferença com que a segurança pública estadual tratava o assunto. Mas não tem como atribuir essa atitude exclusivamente à competência (no sentido de capacidade) ou não da delegacia estadual. A própria delegada com quem falei na época lamentou que a Polícia Civil tivesse apenas um investigador para atuar na cidade, em vários casos.
Daí a fundamental medida do MPF em transferir a investigação para a Polícia Federal (é bom lembrar que a PF não tem delegacia em São Gabriel da Cachoeira, apesar da região ser área de fronteira, em apenas um escritório com agentes que são remanejados periodicamente). Leia relato sobre o procedimento do MPF.
Nos meses seguintes, acompanhei este caso, pessoalmente, não apenas como repórter, mas como cidadã e pela minha identidade étnica com os povos indígenas. Felizmente, o assunto ganhou mais reforço na imprensa, com a apuração que a colega jornalista Kátia Brasil também realizou, com uma ótima série de reportagens sobre o assunto.
Ainda hoje à tarde, troquei umas palavras com a irmã Giustina pelo Facebook. Ela estava muito feliz e aliviada. Valente e corajosa, a irmã Giustina não está mais em São Gabriel da Cachoeira. Ela não quis comentar sobre as supostas ameaças que vinha recebendo, mas me enviou o seguinte comentário:
“Ficou feliz de saber que quando se trabalha pelo bem e os Direitos das nossas crianças e adolescentes se ajuda a fazer valer uma Lei que foi implantada para dar cidadania. O poder do dinheiro pode corromper, mas a força da justiça é mais forte. E também muita oração por parte das nossas comunidades para que se podesse dar uma resposta a tantas vitimas….O nosso grande amigo da Polícia Federal Claudio Cesar foi uma mão amiga que soube estretar laços e conduzir com muita prudencia a bom fim…Obrigada”
Ameaças
Na nota que enviou à imprensa hoje, a PF disse que foram cumpridos 10 mandados de busca e apreensão, quatro mandados de prisão preventiva, seis mandados de prisão temporária e um mandado de condução coercitiva.
A nota diz que participam da operação 45 policiais federais, que contam com o apoio do Exército Brasileiro para deslocamento até os locais de busca e de cumprimento dos mandados de prisão.
“As investigações, que visavam apurar a existência de uma suposta rede de exploração sexual de menores indígenas, na cidade de São Gabriel da Cachoeira, foram iniciadas com base em denúncias recebidas, além de matérias publicadas na imprensa sobre o tema”, diz trecho da nota.
A nota prossegue: “Com o avançar das investigações, constatou-se que a rede não estava formalmente constituída e organizada, embora tenham sido identificadas duas aliciadoras que ofereciam vantagens econômicas na cooptação de menores indígenas, que trabalhariam em casas noturnas e bares. Também constatou-se que alguns dos autores dos ilícitos em questão mantinham relações sexuais com as vítimas em troca de dinheiro, presentes ou alimentos, tendo em vista a condição social destas”.
No curso das investigações, diz a nota, alguns dos autores ameaçaram e coagiram algumas vítimas, as quais foram encaminhadas para o Programa de Proteção à Criança e ao Adolescente Ameaçado de Morte (PPCAAM), para resguardo de suas integridades físicas.
* As informações deste texto são baseadas em release do MPF e da PF, em conversa que tive com o procurador Julio Jose Araújo Junior e com a irmã Giustina Zanoto e em informações pessoas obtidas anteriormente. A pequena foto genérica é de minha autoria, quando estive em São Gabriel da Cachoeira em 2010.