As causas da diferente reação aos crimes cometidos pelas ditaduras no Brasil e na Argentina
por Fábio Konder Comparato* – Carta Capital
A Argentina conheceu dois períodos de regime político militar, na segunda metade do século XX. O primeiro deles transcorreu de 1966 a 1973 e foi instalado com um golpe de Estado, que derrubou o presidente eleito. Os militares aboliram a Constituição da República e assumiram todos os poderes, passando a governar sem leis e sem controle do Poder Judiciário. Houve vários atos de repressão violenta aos oponentes políticos e à classe estudantil universitária, considerada altamente subversiva. O país voltou ao regime civil em 1973, quando se realizaram eleições para Presidência da República.
Em 1976, porém, houve novo golpe de Estado com a retomada do poder pelos militares. Dessa vez, instituiu-se um verdadeiro regime de terrorismo de Estado, sendo afastada toda interferência do Poder Judiciário nas ações dos militares. Os presos por razões políticas eram sistematicamente torturados. Estima-se que 30 mil foram mortos pelos agentes do regime (grande parte deles jogada com vida no mar), e que 1,2 milhão de argentinos tiveram de fugir do país. Comprovou-se, ainda, que centenas de crianças recém-nascidas tiveram a identidade trocada, após o assassinato de seus pais, e foram entregues a estranhos, que os registraram como seus filhos.
Cessado o segundo regime militar, os dois primeiros governos civis resolveram decretar uma anistia de todos os crimes cometidos pelos militares, entre 1976 e 1983.
Em 2005, a Suprema Corte de Justiça da Argentina julgou, porém, essa anistia inconstitucional. Iniciaram-se então os processos criminais contra os militares. Até agora, 244 foram condenados a penas de prisão, dos quais os dois presidentes durante o segundo regime militar. Jorge Videla morreu na sexta-feira 17, aos 87 anos. Reynaldo Bignone segue encarcerado, cumprindo pena de prisão perpétua.
No Brasil, ao contrário da Argentina, os militares que tomaram o poder em 1964 resolveram manter em vigor a Constituição anterior ao golpe, com a supressão de alguns artigos a respeito da proteção das liberdades individuais. Em 1967, os militares editaram, por meio do Congresso Nacional, uma nova Constituição, com as mesmas restrições da anterior. Tais Constituições, na verdade, só existiam como mera fachada, a fim de encobrir a realidade da concentração do poder supremo nas mãos da corporação militar.
Os presos pelos agentes policiais, por ordem dos militares, ficavam meses na prisão, antes de ser aberto um processo criminal. Este transcorria perante a Justiça Militar, não perante a Justiça Civil.
No Brasil, entre 1964 e 1985, a repressão aos opositores políticos, embora menos profunda que na Argentina, produziu um número de vítimas não igualado sob nenhum outro governo do passado.
Segundo a Comissão de Mortos e Desaparecidos Políticos do Ministério da Justiça, comprovaram-se oficialmente até hoje 361 casos de assassínios e desaparecimentos (isto é, mortos cujo cadáver não foi encontrado), durante o regime. Vários outros casos estão sob análise, sobretudo daqueles dados como desaparecidos.
Calcula-se que 50 mil foram presos, grande parte deles torturada durante a prisão, alguns até a morte. Por outro lado, 7.367 opositores políticos foram processados criminalmente perante a Justiça Militar, 130 banidos do território nacional e 4.962 demitidos do serviço público por serem considerados inimigos do regime.
Em 1979, os chefes militares decidiram preparar sua saída do poder e resolveram fazer uma lei de anistia que os tornasse impunes pelos crimes cometidos. Essa lei foi aprovada pelo Congresso Nacional e promulgada em 28 de setembro daquele ano.
Ora, enquanto na Argentina a Suprema Corte de Justiça anulou a Lei de Anistia promulgada logo após o retorno dos civis ao poder em 1986, no Brasil o Supremo Tribunal Federal decidiu, em abril de 2010, que a lei de 1979 aplicava-se aos agentes do nosso regime, que haviam assassinado ou torturado oponentes políticos.
Todavia, em novembro daquele mesmo ano, a Corte Interamericana de Direitos Humanos condenou por unanimidade o Estado Brasileiro por “graves violações de direitos humanos” durante a repressão à chamada Guerrilha do Araguaia, movimento que contava com cerca de 80 combatentes, instalados às margens do Rio Araguaia, no chamado Bico do Papagaio, na divisa dos estados do Pará, Maranhão e Goiás (à época; hoje Tocantins). A maior parte dos guerrilheiros foi executada sumariamente pelos militares e seus corpos até hoje não foram encontrados. A comissão também declarou nula a lei de anistia de 1979.
Em primeiro lugar, porque os crimes de terrorismo de Estado (assassínio e tortura de presos políticos) não são suscetíveis de anistia. Em segundo, porque se tratou de uma autoanistia, ou seja, os próprios criminosos no poder se anistiaram. O Brasil até hoje não acatou essa decisão internacional.
Nesse meio-tempo, algumas vítimas do regime, ou seus familiares, decidiram ingressar em juízo com ações civis, isto é, ações que não objetivam a condenação penal contra o Estado brasileiro, mas de determinados torturadores notórios daquele regime, como o coronel Brilhante Ustra, que comandou um cárcere onde foram mortos vários presos. Todas essas ações foram acolhidas pelo Poder Judiciário.
Entre as prováveis causas da diferente reação provocada pelos regimes no Brasil e na Argentina estão a longa escravidão legal de africanos e afrodescendentes no Brasil e o espírito de conciliação na vida política. No Brasil, último país ocidental a abolir a escravidão, em 1888, os escravos não eram apenas trabalhadores no campo e nas cidades, mas serviam como empregados domésticos, até mesmo em casas de famílias pobres. Em razão disso, a escravidão marcou até hoje os nossos costumes sociais e a nossa mentalidade coletiva.
É preciso salientar que os escravos eram sistematicamente torturados, tendo sido mesmo inventados, além dos açoites, vários instrumentos de tortura. Exemplos: a colocação do escravo ou da escrava (até mesmo quando grávida), no tronco, um caixote de madeira retangular, do tamanho do corpo humano, com um buraco para a cabeça e outro para os pulsos.
Essas práticas repressivas acabaram por ser aceitas pela população brasileira em geral como um tratamento normal a ser aplicado aos negros e pobres, quando suspeitos de algum delito. Ou seja, um velho costume que explica a frequente ocorrência de torturas nas delegacias de Polícia, quando o detido é da classe pobre.
Mas, de modo geral, a escravidão firmou até hoje, em nossa mentalidade coletiva, um comportamento de subserviência. Como diz o ditado popular: “Quem pode manda, e obedece quem tem juízo”.
A Argentina conheceu uma escravidão de índios, mas incomparavelmente menos abrangente e de menor duração.
Quanto ao espírito de conciliação, os partidos políticos brasileiros, embora tendo programas de ação diversos, não costumam se distinguir entre si por posições bem marcadas e atuações contrastantes.
No Império, salvo as rebeliões da Regência e a Guerra dos Farrapos, os grupos dirigentes – grandes proprietários rurais, comerciantes, militares e a Igreja Católica – sempre se ajustaram entre si. Durante todo o período imperial, houve dois partidos que se revezaram no governo: o conservador e o liberal. Os adeptos do primeiro eram apelidados de “saquaremas” e os do segundo de “luzias”. Dizia-se, então, que “nada mais igual a um saquarema do que um luzia no poder”.
Durante a República, excetuando-se o período turbulento dos primeiros anos no Sul (Revolução Federalista), e o período imediatamente anterior e posterior à Revolução de 1930, os partidos políticos sempre tenderam à conciliação. O golpe de Estado de 1964 irrompeu quando os grupos dirigentes de sempre se assustaram com a aparente guinada à esquerda das classes médias e dos sindicatos operários, representados pelo Partido Trabalhista.
A anistia aos criminosos militares em 1979 foi aprovada por boa parte da classe política conservadora, que desejava voltar ao poder sem melindrar os militares.
Já na Argentina, as posições políticas sempre foram bem marcadas e contrastantes, jamais se tendo pensado em conciliação entre os extremos.
*Professor emérito da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo
–
Enviada por José Carlos para Combate Racismo Ambiental.