Fiscais encontram condições degradantes de trabalho e moradia em carvoaria localizada em Sacramento, no Alto Paranaíba. Trabalho nos fornos era trocado por três refeições diárias
Pedro Rocha Franco, Estado de Minas
Sacramento – “A promessa que ele fez, na porta da minha casa, era para ganhar R$ 2,3 mil como tratorista. Mas o que encontrei aqui é bem diferente”, relata Diorles Henrique Malta, que, enganado, trabalhou somente por cinco dias na carvoaria da Fazenda Chapadão da Zagaia, em Sacramento, no Alto Paranaíba. Não só a desilusão de uma mentira fez com que ele e o irmão conseguissem romper o contrato, mas principalmente as condições desumanas para exercer qualquer atividade naquela propriedade rural. Se por si só o ofício à frente do forno de carvão já gera desgaste excessivo, a situação se agrava com o estado da fazenda.
Na semana de aniversário da Lei Áurea, o Estado de Minas acompanhou uma ação encabeçada pelo Ministério do Trabalho e Emprego, em parceria com o Ministério Público do Trabalho e a Polícia Federal, para resgatar 32 vítimas de trabalho escravo em Minas. Além dos 28 adultos, duas crianças menores de 5 anos e dois adolescentes se encontravam na fazenda, com a liberdade cerceada por capatazes. “A condição de degradação é clara, tanto no alojamento quanto na frente de trabalho”, afirma o auditor fiscal e coordenador do projeto de combate ao trabalho escravo da Superintendência Regional do Trabalho de Minas Gerais, Marcelo Gonçalves Campos.
Em pleno século 21, pode ser complicado acreditar no relato sobre as condições de trabalho da carvoaria. Tendo que transportar toras de eucalipto até os fornos onde a madeira é queimada, homens e mulheres se dividem nas tarefas sem nem mesmo usar luvas para proteger os dedos ou camisas de manga longa suficientes para cobrir os braços. Os chefes fornecem apenas as botinas. Assim mesmo, é feita uma anotação em um caderno para identificar quem as recebeu. Caso tenham coragem de abandonar o emprego antes de completar dois meses de trabalho (ou consigam sair de algum modo, como aconteceu com Diorles e o irmão), são obrigados a pagar o valor dos calçados.
O mesmo vale para a passagem de volta para casa. Se, no momento da contratação, empregados da fazenda vão até cidades distantes, com vans, buscar famílias inteiras que tenham disposição para trabalhar, na saída é bem diferente. No acerto de contas, cada um é obrigado a quitar os débitos registrados no caderno. Além da bota, são cobradas despesas com sabonetes, cigarros, remédios, sucos e tudo mais que for encomendado da cidade.
Até comida pode estar na lista. Afinal, são só três refeições por dia. Pela manhã, o pão seco com café preto; por volta das 11h, depois de quatro horas de trabalho intenso sob sol forte, é a vez do marmitex de arroz e feijão com macarrão e um pedaço de carne. O mesmo prato se repete às 18h, quando é servida a última refeição. Caso queiram algo mais até a hora de dormir, é preciso pagar à parte. Exceto bebida alcoólica, terminantemente proibida na fazenda. Na última vez que trabalhadores conseguiram escapar até um vilarejo próximo para comprar cachaça, acabaram apanhando na volta.
Sem dinheiro
As encomendas eram a única forma de obter qualquer objeto desejado. No período em que ficavam confinados, trabalhando, ninguém via a cor do dinheiro. O pagamento só era feito quando encerrado o “contrato”. Além disso, a distância entre a zona rural e a sede da cidade isolava os trabalhadores. São mais de 80 quilômetros de estrada de terra, o que, de carro, significa quase uma hora e meia devido às condições precárias. A pé é praticamente impossível.
No caso de Diorles, ele e o irmão só conseguiram sair porque entraram no carro de um dos responsáveis por gerenciar a fazenda, conhecido como Dengo, e bateram o pé, falando que não sairiam do veículo a não ser na cidade. “Chegando aqui, ele queria me dar R$ 25 por dia trabalhado. Agora faz as contas aí para ver se, em um mês, isso dá R$ 2,3 mil”, afirma, em referência ao valor prometido. Se considerados 30 dias trabalhados, como é praxe segundo os relatos colhidos no local, seriam R$ 750, fora os descontos das compras. No caso de Diorles e do irmão, o fato de terem experiência em outras atividades, como operador de máquinas e até instrutor de autoescola, mudou o tratamento dos superiores. “Todo mundo aqui trabalha sob ameaça. É gritaria o tempo todo”, afirma, apontando o funcionário conhecido como Estrangeiro como o responsável pelas ameaças. O Estado de Minas tentou contato com o proprietário da fazenda, mas não obteve resposta até o fechamento desta edição.
Descontos anulam suposto salário
Em meio ao calor escaldante dos fornos de carvão, a pequena M.E. brinca, chora e pede o colo da avó ao perceber a chegada de estranhos. São os fiscais do trabalho, acompanhados de policiais federais e da equipe do Estado de Minas. Aos 2 anos, ela deixou a mãe em Quartel-Geral para seguir com os avós e tios para Sacramento, onde todos teriam a garantia de emprego na fazenda por três meses. Com mais de 60 anos, idade que ele nem se lembra ao certo, Luís Eva de Sousa aceitou a proposta de um homem chamado de “Estrangeiro” para se mudar com a família e enfrentar as dificuldades do carvão. Acostumado com as lavouras de diferentes pontos do estado, ele acreditava que o desafio não seria difícil. Mas a surpresa foi negativa. “Nós sofre (sic) aqui dentro”, relata.
Sem luvas e qualquer espécie de equipamento de segurança, ele era obrigado a retirar o carvão dos fornos diariamente. Cada etapa concluída vale R$ 10. Ou seja, se fizer muito esforço, o máximo que consegue são R$ 40 por dia, que, somadosao valor do seguro-desemprego, poderiam ajudar no fim do mês. Por enquanto, no entanto, ele não recebeu nada, tendo ainda que quitar os débitos do caderninho de anotações. “O dinheiro só vai. É trabalhar para sobreviver”, relata ele, que diz não ter condições de voltar para sua terra.
Além dele, vieram de Quartel-Geral outras 10 ou 11 pessoas da família, entre os quais a filha de 16 anos, que trabalha de forma irregular e desempenha função semelhante à do pai. O filho, Gilmar, antes mesmo da chegada dos fiscais já havia discutido com os patrões e estava decidido a abandonar a fazenda de alguma forma. Isso porque o combinado era que ele exerceria outra função, que não na carvoaria, mas acabou sendo obrigado a encher os fornos de madeira, o que lhe rendia R$ 20 a cada etapa. Novamente, o acordo foi descumprido.
Outra da família que estava na fazenda era dona Maria Aparecida Souza. Em uma função menos desgastante, ela era uma das responsáveis pela cozinha. Em um fogão à lenha, fazia a refeição de todos e tinha a ordem de regrar nos pratos. “Um só pedaço de carne, o que enche barriga é arroz.”
Fora isso, tanto Luís como Maria Aparecida – além da filha adolescente e seu marido – eram obrigados a dividir o alojamento com outros trabalhadores. No espaço, não havia distinção de sexo, nem importava o fato de serem casados ou a presença de filhos. Sob colchões nada confortáveis, eram obrigados a dormir e a enfrentar o frio da estrutura de madeira sem cobertor. O artigo de luxo tinha que ser comprado: R$ 15 a unidade. Valor cobrado de trabalhadores em água potável disponível e que, às vezes, eram obrigados a tomar banho numa represa próxima. (PRF)
Desdobramentos em breve
A ação fiscalizatória desencadeada ontem em Sacramento terá desdobramentos nas próximas semanas. No primeiro ato, a intenção dos órgãos federais era somente de resgatar os trabalhadores da fazenda e dar início ao processo de rescisão contratual – apesar de a maioria não ter a carteira de trabalho assinada, os direitos trabalhistas são mantidos – e fazer o cálculo do que deve ser pago a eles.
Daqui para a frente, os auditores do Ministério do Trabalho e Emprego devem produzir um relatório sobre a fiscalização e repassá-lo ao Ministério Público do Trabalho (MPT) para que os responsáveis possam ser responsabilizados e para que sejam tomadas providências para evitar a repetição da situação.
O procurador do trabalho Paulo Gonçalves Veloso explica que a função do MPT é fazer com que as irregularidades cessem. Para isso, pode propor um termo de ajustamento de conduta ou uma ação civil pública. O primeiro procedimento é válido para casos em que o empresário concorda com a situação, enquanto o segundo é tomado caso haja discordância. Além disso, será averiguado quem está envolvido na cadeia do carvão da fazenda Chapadão do Zagaia. Fornecedores e compradores podem ser co-responsabilizados caso estejam envolvidos no processo, como ocorreu quando a rede de lojas Zara foi enquadrada por trabalho escravo devido à situação de uma fornecedora em São Paulo. (PRF).
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Enviada por José Carlos para Combate Racismo Ambiental.