Fernando Schiavini*
A regularização de terras para o usufruto exclusivo dos povos indígenas, no período republicano, inicia-se com a criação e implantação do SPI – Serviço de Proteção Aos Indios, em 1910. Iniciava-se ali a estruturação de um processo político-ideológico do estado brasileiro, liderado pelo Marechal Cândido Mariano da Silva Rondon e reafirmado pela Constituição de 1914 e Código Civil de 1916, de oferecer “proteção”, através da tutela governamental, a povos com relativa incapacidade civil, com vistas á integração deles à sociedade nacional. Na questão de terras, a intenção era garantir glebas mínimas para essas populações, na intenção de torná-los pequenos agricultores autônomos, pelos ensinamentos transmitidos pelos Postos do SPI, quando seriam, finalmente, assimilados pela massa populacional.
Não foi isso, entretanto, que ocorreu, nem com relação aos objetivos do SPI., totalmente distorcidos ao longo do tempo, sempre na direção de lesar os territórios e bens indígenas, nem com a evolução política ocorrida na sociedade brasileira e no mundo.
Em finais da década de sessenta, era visível o fracasso das políticas integracionistas do SPI e os eminentes conflitos territoriais que se avizinhavam. A Constituição de 1969 e a Lei 6.001 de 1973 (Estatuto do Índio , reforçavam a necessidade de garantir aos em espaços suficientes para a reprodução física e cultural dos povos indígenas.
Os antropólogos e indigenistas contratados pela FUNAI para delimitação de Terras Indígenas pós-1967, ano da criação da autarquia, estavam também preocupados com a rápida ocupação do Centro-Oeste e da Amazônia, proposta pelos governos militares e tentavam salvaguardar o máximo de extensão possível dos territórios indígenas. Acrescente-se a isso o aparecimento dos movimentos sociais que ocorriam na América Latina e no Brasil na época, como a Teologia da Libertação, da Igreja Católica e a proliferação de organizações da sociedade civil, as ONGs., em defesa das minorias. Esses movimentos, aliados a parte do corpo de indigenistas da FUNAI, mobilizavam as comunidades indígenas e pressionavam o governo pela demarcação dos territórios e a revisão de antigas demarcações. Há que se registrar ainda o fenômeno dos “povos ressurgentes”, ocorrido a partir da década de noventa. Esses povos, com o advento da democracia, reapareceram, reivindicando reconhecimento e territórios.
Os conceitos evolucionista e integracionista foram definitivamente enterrados pela Constituição de 1988, ao definir no Artigo 231 o reconhecimento aos índios de sua… “organização social, costumes, línguas, crenças e tradições e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, cabendo à União demarcá-las e fazer respeitar todos os seus bens”. O primeiro primeiro parágrafo do Artigo 231, ainda define: “São terras tradicionalmente ocupada pelos índios as por eles habitadas em caráter permanente, as utilizadas para suas atividades produtivas, as imprescindíveis à preservação dos recursos ambientais necessários ao seu bem estar e as necessárias a sua reprodução física e cultural, segundo seus usos, costumes e tradições”.
Os tratados Internacionais, como a Convenção 169 da OIT- Organização Internacional do Trabalho e resoluções da ONU, ratificadas pelo Brasil, também resguardam os direitos originários dos Povos Indígenas.
Para esclarecimentos, reproduzo abaixo duas declarações:
“O direito indigenista não foi criado pelos índios, mas lhes foi imposto pelos brasileiros não índios e se define como um conjunto de regras pelas quais a sociedade brasileira enquadrou os povos indígenas dentro do seu sistema jurídico” (Dalmo de Abreu Dallari , 1984 em “Direito Antropológico e Terras Indígenas no Brasil” – Barbosa M.A- Fapesp-2001).
“Os brancos tem que respeitar o que eles próprios criaram até hoje. Não fomos nós que criamos, nós só estamos marcando presença. O branco votou, fez essa lei, vai ter que cumprir. Nós vamos cobrar essa lei que está aprovada aí” (Megaron Metuktire – 1988, idem).
Para entendimento completo da questão é preciso observar que o Brasil está, finalmente, entrando em efetivo estado de direito. O Poder Judiciário vem se renovando e se fortalecendo nas grandes cidades e no interior. Inúmeras comarcas foram criadas Brasil afora. Os novos juízes, promotores e procuradores, contratados através de concursos públicos vem retomando e julgando processos que estavam paralisados, muitos deles por conivência ou conveniência de antigos magistrados. Nem sempre os indígenas ganham essas questões e também estão sendo, individualmente, julgados e penalizados. Também nas esferas intermediárias e superiores, o judiciário brasileiro vem se aperfeiçoando em seu papel de fazer cumprir as leis e a Constituição Brasileira. Observa-se que a criação e implantação do CNJ- Conselho Nacional de Justiça contribuiu com essa modernização.
Assim, podemos afirmar que a grande maioria de demarcações, seguidas de retiradas de ocupantes não indígenas, de terras indígenas, que vem aparecendo no noticiário nacional, são frutos de desfechos de demandas judiciais antigas, iniciados muitas das vezes nas décadas de setenta e oitenta. A FUNAI, como organismo governamental encarregado da questão indígena, via de regra, vem apenas cumprindo mandatos judiciais.
Obviamente as demandas dos povos indígenas por novas demarcações e ampliações continuam, mas, invariavelmente, também acabam no judiciário. Nesse item, a FUNAI precisa eleger prioridades, coisa que, aparentemente, não vem ocorrendo, vide a questão Guarani-Kayowá, no Mato grosso do Sul.
A meu juízo, se alguma observação deve ser feita para dentro do sistema de demarcação de terras indígenas é que, ao fazer os levantamentos de campo para as delimitações, os antropólogos devem estar atentos às mudanças culturais ocorridas nas comunidades indígenas, nos últimos tempos. Muitas delas, tidas nos compêndios como nômades, semi-nômades, caçadoras, coletoras, podem ter mudado substancialmente seus modos de vida, não sendo mais necessárias, eventualmente, grandes extensões, para exercerem o direito estabelecido na Constituição Federal, aqui já citado. Muitas demarcações são conflituosas e traumáticas aos povos indígenas, gerando verdadeiros ódios, que perduram por décadas. Entendemos que é necessário discutir em profundidade com as comunidades envolvidas, sobre o custo-benefício de algumas demarcações.
O governo vem dando mostras que está perdido. Tentou fazer valer as condicionantes do STF pela portaria 303 da AGU e foi obrigado a recuar, pois feria a Constituição e Tratados Internacionais. Agora fala em repassar a identificação de Terras Indígenas para a EMBRAPA ( coitada da EMBRAPA!). Ameaça também substituir a cúpula da FUNAI. Pergunta-se: a nova cúpula da FUNAI vai deixar de cumprir as sentenças e mandatos judiciais? Ou de acatar as reivindicações de novas demarcações e revisão de limites? Nesse caso, pela ordem jurídica vigente, ela poderá ser obrigada também a fazer isso por ordem judicial, já que os indígenas, pela Constituição de 1988, podem ingressar em juízo em defesa de seus interesses.
Enfim, o que se vê, é a resistência das forças conservadoras em aceitar o estado de direito. Não é a toa que tramitam as PECs. no Congresso, para retirada dos poderes do Ministério Público Federal e do Poder Judiciário, como um todo.
Aí é que mora o perigo!
*Fernando Schiavini é indigenista da Funai.
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Enviada por Ro’otsitsina.