Por José Coutinho Junior, da Revista Sem Terra – Edição Especial*, página do MST
Se as estradas do Mato Grosso do Sul têm algo para ensinar ao viajante é o quão presente o latifúndio se faz no estado. No trecho de 120 quilômetros entre os municípios de Dourados e Ponta Porã, o que mais se vê são as plantações de cana, eucalipto, soja e usinas de grandes empresas, como a Bunge, uma corporação dos Estados Unidos. São enormes extensões de terras onde não se avista ninguém: é como se aquelas plantações tivessem surgido ali naturalmente, sem precisar do cuidado de seres humanos.
Não é para menos. Mato Grosso do Sul ocupa o primeiro lugar em concentração de terras no Brasil, com os estabelecimentos acima de mil hectares nas mãos de 10,18% de latifundiários, propriedades essas que totalizam 77% do território total, segundo dados do último Censo Agropecuário, de 2006.
Em meio a essa alta concentração de terras, surge em 2002 o assentamento Itamarati, fruto de duas ocupações de terras (uma em 2002 e outra em 2005). A área de 54 mil hectares que pertencia ao proprietário Olacyr de Moraes, conhecido como “Rei da Soja” assentou 17 mil pessoas de diversos movimentos sociais, como MST, Central Única dos Trabalhadores (CUT), Federação dos Trabalhadores na Agricultura (Fetagri) e os ex-funcionários da fazenda, organizados na Federação dos Agricultores Familiares do Itamarati.
Com tamanho contingente de pessoas, o Itamarati não apenas conta com os lotes rurais dos assentados, mas também é constituído por áreas de agroindústrias, de responsabilidade das cooperativas, e por um pequeno centro comercial, no qual existem restaurantes, brechós, bares e mercados.
Além disso, o assentamento tem quatro escolas e um posto de saúde, que em breve deve se tornar um hospital. Por conta do tamanho e da quantidade de demandas no assentamento, será instaurada uma subprefeitura, para levar as demandas do assentamento a Ponta Porã.
Duas formas de trabalhar a produção agrícola caracterizam os cultivos das famílias: individual e coletiva. Nos lotes individuais de até 10 hectares, vivem as famílias, que produzem uma grande diversidade de produção de frutas e vegetais, como acerola, laranja, mandioca e criação de animais, voltadas ao consumo e para vender.
Já as 66 áreas coletivas têm por volta de 120 hectares e um pivô de irrigação compartilhado, capaz de concentrar a produção em larga escala, de onde se extraem os alimentos para a comercialização. Há plantação de milho, soja, amendoim, feijão e pastagem para o gado.
Cooperativas em desenvolvimento
O Itamarati conta com duas cooperativas, responsáveis em grande parte pelo crescimento econômico e desenvolvimento do assentamento. A Cooperativa dos Agricultores Familiares do Itamarati (Cooperafi) é responsável pela venda da produção de leite, a mais expressiva do assentamento, e pelo tratamento dos grãos produzidos. Dados da Cooperafi apontam que a produção de leite chega a 500 mil litros por mês, ao passo que soja, milho e feijão (produção mais recente), atingem um milhão, 800 mil e 200 mil sacas por safra, respectivamente.
Para realizar o tratamento dos grãos, a cooperativa conta com o maquinário que já pertencia à fazenda: galpões que fazem a secagem e limpeza, além de 10 silos de armazenagem, que comportam 70 mil sacas cada, e um silo maior, atualmente desativado, capaz de comportar 1,5 milhão de sacas. A prestação de serviços, que é o tratamento e armazenamento dos grãos de outros produtores e empresas, é uma das principais fontes de renda da cooperativa, além de uma pequena porcentagem nos lucros da venda do leite.
“Temos planos de reformar pelo menos 25% do silo maior até fevereiro do ano que vem, assim vamos ter uma capacidade boa de armazenamento, e poderemos fechar uma parceria com a Conab (Companhia Nacional de Abastecimento) para prestar serviços”, afirma Jacob Alberto Bamberg, presidente da Cooperafi.
A Cooperafi tornou a produção de leite do Itamarati economicamente viável. Apesar da grande quantidade produzida pelos assentados, não era possível competir com outras empresas da região, pois havia um cartel para baixar o valor pago aos produtores, estabelecendo um preço de R$0,30 centavos por litro de leite. Depois do surgimento da cooperativa, em 2010, a situação dos produtores mudou. A Cooperafi paga R$0,78 por litro de leite, um dos melhores preços do estado, e consegue estabelecer a competiçãodevido à grande quantidade comercializada.
“O objetivo da cooperativa não é obter lucro, e sim desenvolver o assentamento. O dinheiro que ganhamos é investido no Itamarati, e muitas vezes temos prejuízo. O pagamento do leite é algo que nos dá prejuízo, mas fazemos porque sabemos da importância para o assentamento e os produtores. Se o assentamento vai mal, a cooperativa vai mal”, afirma Valdecir Kreusch, funcionário da Cooperafi.
Vendo a precariedade da assistência técnica oferecida pelo poder público, a cooperativa também contratou técnicos que vivem no assentamento, especializados na recuperação do solo e uma veterinária. Além disso, há planos de construção de um laticínio (para agregar mais valor ao leite), de frigoríficos, de cisternas para o período das secas e a correção do solo.
Sementes crioulas
Da necessidade dos assentados de suprir a demanda por sementes de melhor qualidade, surge no ano de 2006 a Cooperativa Agroindustrial Ceres (Coopaceres). Seu principal objetivo é produzir sementes para fora do assentamento, o que não significa que os assentados não sejam beneficiados pela cooperativa.
Ao contrário, além de receberem as sementes, os produtores do Itamarati iniciaram a produção de 500 toneladas de feijão, plantadas por 180 assentados. Parte foi exportada para a Venezuela, que comprará mais mil toneladas na próxima safra.
Além desse feito, a cooperativa, em parceria com a Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa), já produziu sementes de girassol, que foram vendidas à região nordeste do país. Outro êxito foram as produções de sementes de feijão e milho, iniciadas em 2011 e que foram compradas pelo Programa de Aquisição de Alimentos (PAA).
A gestão de ambas as cooperativas funciona por meio de assembleias com os sócios (que são os produtores filiados às cooperativas) onde é avaliado o que fazer com os recursos obtidos.
Desafio da produção 100% agroecológica
Ao andar pelo assentamento e observar a qualidade de vida das milhares de famílias que ali vivem, com suas casas muito bem estruturadas, os mais variados cultivos e formas organizativas e coletivas de produção, não resta dúvida de que a Reforma Agrária no Itamarati foi muito bem sucedida, principalmente por ter sido capaz de assentar uma grande quantidade de pessoas e dar a elas condições de produzir.
No entanto, desafios a serem superados também fazem parte do dia a dia do assentamento. O principal deles, talvez, seja revolucionar o modelo agrícola, eliminando a produção de soja e milho transgênicos e o uso de agrotóxicos.
Para Olívia de Moraes, diretora do colégio Carlos Pereira, isso ainda ocorre porque “nos dois primeiros anos de assentamento as pessoas foram convencidas por agrônomos da região de que estas terras eram uma mina de ouro, e que todos ficariam ricos rápido. A maioria dos produtores investiu nas lavouras, mas como tivemos um período de seca, eles perderam tudo. Muitos inclusive deixaram o assentamento por conta desses primeiros anos”.
Some-se a isso os cartéis aplicados pelas empresas, principalmente para diminuir o valor do preço do leite e do feijão, e muitos produtores que criavam gado venderam seus animais e se voltaram para a soja transgênica para garantir renda. Com o surgimento da Coopaceres em 2006, e da Cooperafi em 2010, há possibilidades reais de alterar a produção. “Muitas pessoas que plantavam soja já começam a voltar a criar gado, pois a Cooperafi torna a produção do leite cada vez mais viável. E a renda do leite é regular, diferente da soja, que só vem no fim da safra”, acrescenta o assentado André Aparecido Bispo.
Da mesma forma, com as sementes de feijão produzidas pela Coopaceres, a produção desse grão começa a crescer no assentamento, oferecendo mais uma alternativa economicamente viável à soja.
O uso de agrotóxicos também preocupa os assentados. Para Ana Carla Ferrari, moradora do Grupo Coletivo Eldorado dos Carajás, a bandeira da produção orgânica é a mais importante nos próximos anos.
“Sabemos da importância da produção orgânica, tanto para a nossa saúde quanto para o meio ambiente, mas não é algo que podemos fazer sozinhos. A área em que plantamos é coletiva, então não adianta nós plantarmos o orgânico e todo o resto continuar plantando transgênico, pois o orgânico seria contaminado. Para dar certo, vamos precisar conscientizar todos que produzem dos benefícios do orgânico. É um desafio grande que temos para os próximos anos”.
Sebastião Simão, também membro do Grupo Coletivo, convive com a aplicação de agrotóxicos diariamente, sem o uso de equipamentos. “Muitas vezes tenho náuseas só de sentir o cheiro do veneno. Se um dia começarmos a planar orgânico, tenho certeza de que vou viver alguns anos a mais”.
A Coopaceres também exerce um trabalho de conscientização dentro do assentamento para que produtores parem de usar sementes transgênicas de soja e milho. “Já fomos convidados pelas empresas para produzir sementes transgênicas, mas recusamos pois sabemos dos seus impactos. As transnacionais não se preocupam com o pequeno produtor ou o meio ambiente. Nosso primeiro passo é convencer os produtores a produzir o não transgênico, alertando para os danos à saúde causados pela cultura e mostrando que a rentabilidade da variedade convencional é pelo menos de dois a cinco reais maior por saca”, afirma Ronaldo José Pucci, militante do MST e presidente da cooperativa.
Os avanços pelos quais o Itamarati passa são grandes. As cooperativas realizam ações concretas há apenas dois anos, e os resultados já alteram a dinâmica de produção do assentamento. Se esse ritmo continuar, em alguns anos o Itamarati pode, além de produzir em alta quantidade, quebrar com a lógica agrícola estabelecida pelas grandes empresas. “É possível realizarmos esse rompimento aqui, só precisamos de mais tempo e recursos”, finaliza André.
Os frutos da prioridade à educação
Os 4 mil alunos dos ensinos fundamental e médio do Itamarati são contemplados com as quatro escolas públicas existentes dentro do assentamento. A enorme quantidade de crianças e jovens faz existir no Itamarati a maior escola em área de assentamento do país, chamada Nova Itamarati, com 1600 educandos.
Criadas em 2002, as escolas surgiram logo após a consolidação do assentamento. Com uma educação precária, de início a escola Itamarati ainda pertencia ao dono da fazenda, que não permitia a entrada dos alunos assentados e não existiam outras escolas por perto. O Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) então negociou com o governo, e a escola José Edson foi a primeira a ser criada.
Logo depois se construiu a Nova Conquista, Carlos Pereira e a Itamarati, que foi apropriada pelos assentados, tornando-se a Nova Itamarati. De acordo com André Luiz da Silva, coordenador pedagógico e professor da escola José Edson, a estrutura da escola é suficiente para garantir a qualidade do ensino. “Temos professores formados, bons materiais pedagógicos, sala de tecnologia com 25 computadores. No ranking municipal do Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (Ideb), ficamos em quarto lugar do primeiro ao quinto ano, enquanto que nosso nono ano ficou em primeiro lugar. Temos também um projeto de horta coletiva, no qual todos os alunos se envolvem para cuidar e plantar”, comemora o educador.
Uma frota de ônibus escolares que circula por todo o assentamento é responsável por trazer e levar os alunos. Mas o principal aspecto do ensino no assentamento é o processo de aprendizado crítico dos estudantes.
Segundo Olívia de Moraes, diretora do colégio Carlos Pereira, a educação no campo precisa se adaptar à realidade vivida pelas crianças. “Estamos trabalhando com as nossas crianças no sentido de criar um senso crítico. Mostramos os dois lados da moeda de temas como o agronegócio, mas a opção é ele quem vai fazer. Nossos estudantes apresentam seminários bem polêmicos e criam um clima de debate entre eles, algo que não vemos em outras escolas, onde os estudantes saem de forma passiva. Aqui eles se preparam para sair melhor nos debates em sala de aula”, comenta.
A demanda por educação no Itamarati não se supre apenas nestas escolas. Há um projeto de se criar uma creche para as crianças menores, além de outra escola que está sendo construída para comportar novos alunos. Os assentados também estão em contato com o Instituto Federal do Mato Grosso do Sul (IFMS) para tentar abrir cursos de nível superior dentro do assentamento. Segundo o militante do MST, André Aparecido Bispo, “há uma demanda grande no Itamarati por cursos de graduação. Se conseguirmos abrir cursos de zootecnia e veterinária, por exemplo, a procura seria alta, além de ser uma forma de manter a juventude no assentamento”, acredita.
* essa matéria faz parte da Revista Sem Terra Edição Especial – Produção nos assentamentos, que está em processo de finalização, e será lançada em 2013.