Em sua autobiografia, Um gosto amargo de bala, Vera Gertel recorda a militância política e artística de sua geração

Atriz, Vera Gertel atuou como jornalista quando o teatro brasileiro sofria perseguições da censura

Atriz destaca papel dos artistas na resistência à ditadura civil-militar

Ana Clara Brant – EM Cultura
Um fato curioso marcou a vida da militante, atriz e jornalista Vera Gertel assim que ela veio ao mundo. Ganhou o nome de Anéli, uma homenagem da mãe, Raquel, à Aliança Nacional Libertadora (ANL), frente de oposição à ditadura Vargas. Mas só foi registrada dois anos depois e mesmo assim como Vera, apesar de alguns familiares a chamarem carinhosamente por Néli. “Minha mãe era tão comunista e tão prestista que colocou esse nome em mim e ainda batizou o meu irmão mais novo de Luiz Carlos. Mas eu sou Vera”, assegura.Casos como esses estão no primeiro livro de Vera Gertel, a autobiografia Um gosto amargo de bala, que ela acaba de lançar pela Civilização Brasileira. Em quase 280 páginas, que vão do início dos anos 1940 até 1974, a autora proporciona uma viagem ao passado, intercalando momentos da sua vida com a própria história do Brasil. Aliás, em várias passagens é difícil separar um e outro, pois Vera viveu de perto e esteve presente nos fatos mais importantes da política e da sociedade brasileiras. “Planejava este livro há um tempo e ele não saía da minha cabeça. Queria contar um pouco dessa vida incomum que tive, de presenciar tanta coisa marcante seja na política, nas artes ou na cultura. Sou filha de dois militantes comunistas, meu pai foi preso; acompanhei de perto duas ditaduras, a de Vargas e a militar. Tenho muita coisa para contar”, ressalta.

A moça, filha de Noé e de Raquel Gertel, queria cursar medicina, mas, como achou muito difícil passar no vestibular, decidiu abraçar a biologia. Não concluiu o curso e quando viu estava no palco fazendo parte do Teatro de Arena – um marco da dramaturgia nacional.

Conviveu com gente como Gianfrancesco Guarnieri, Augusto Boal, Zé Renato e Oduvaldo Vianna Filho, o Vianninha, com quem se casou e teve seu único filho, o roteirista Vinícius Vianna – a quem ela dedica o livro –, que é um dos colaboradores de Walther Negrão, na novela Flor do Caribe. “Optei pela biologia porque na época era muito difícil fazer medicina. Mas a vida me atropelou, acabei trancando matrícula e virei atriz de teatro sem a menor noção do que isso significava como carreira”, recorda.

Entre outras peças, Vera brilhou na primeira e antológica montagem de Eles não usam black-tie, de Gianfrancesco Guarnieri, em 1958, no Teatro de Arena, no Rio. Também participou de filmes e novelas como O acusador, com Jardel Filho, primeira trama de Janete Clair produzida para a televisão e que foi exibida na extinta TV Tupi, em 1964.

Sobrevivência

Assim como os pais, Vera Gertel foi parar no jornalismo. Não por vontade própria, mas pelo acaso e pela necessidade, como relata no livro: “Desempregada por períodos maiores que os anteriores, já que o teatro passava a ser cada vez mais perseguido pela censura, comecei a fazer trabalhos de tradução e a procurar empregos. Fui estagiária no jornal Última Hora, na seção Internacional, durante a reforma empreendida pelo editor Jânio de Freitas. Apesar de ser filha de jornalistas, nunca me passou pela cabeça adotar a profissão. Aconteceu. E tão despreparada estava que, quando o secretário do jornal, Mário Rolla, baixou uma primeira página diagramada em minha mesa e disse ‘três de nove’, fiquei perplexa.”

“Sou jornalista do tempo em que não precisava de faculdade. Na hora que você tem que sobreviver, acaba indo para o jornalismo. Não foi uma escolha consentida”, declara.

Vera conta que sentiu uma espécie de alívio quando terminou de escrever suas memórias e que o que mais lamenta é não conviver mais com personalidades admiráveis como Joaquim Câmara Ferreira e Carlos Marighella, homens que entregaram suas vidas pelos ideais. “Sinto muita saudade também dos meus pais, não só pelo aspecto afetivo, mas porque eram figuras com quem podia discutir de tudo: política, cinema, teatro, literatura. Sinto falta desse tipo de conversa e hoje tenho raras pessoas amigas com as quais consigo debater esses assuntos”, desabafa Vera Gertel, que, além de Oduvaldo Vianna Filho, foi casada com o compositor Carlos Lyra e com jornalista Jânio de Freitas.

A atriz e militante diz que tem recebido comentários elogiosos e surpreendentes de colegas e amigos sobre seu livro e confessa que ficou satisfeita com o resultado. Um gosto amargo de bala pode, quem sabe, indicar um caminho pela literatura, apesar de ela ainda não ter refletido sobre isso. “Se continuar a escrever, acho que não seria pela ficção. Sou jornalista e tenho o vício da profissão, que é o de contar a coisa como realmente foi. Gosto muito de biografias e considero uma maneira interessante de aprender a história, principalmente quando é escrita por jornalistas. Mas não sei ainda dizer o que vai acontecer”, declara, aberta para os desafios da vida.

Trecho

“As reuniões da base teatral estavam ficando cada vez mais inflamadas. Eu defendendo o caminho armado para a derrubada da ditadura, Vianna, do outro lado, pela linha pacífica. Estávamos discutindo teses do VI Congresso do Partido Comunista e teríamos de mandar um delegado ao encontro. O nível das discussões foi sendo elevado a tal ponto que alguns nos acusaram de extrapolar para briga de ex-marido e ex-mulher. Não creio. Pelo menos para mim, aquilo era um caso encerrado. De qualquer modo, confesso ser de uma teimosia sem par quando discuto. A base estava dividida, e acabei eleita delegada ao Congresso.”

Um gosto amargo de bala

. De Vera Gertel
. Civilização Brasileira, 272 páginas, R$ 29,90

Enviada por José Carlos para Combate ao Racismo Ambiental.

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