Por Conrado Carlos, O Jornal de Hoje
A disputa por um terreno em Baía Formosa entre uma comunidade indígena e um empresário promete escrever novos capítulos na relação desenvolvimento econômico, proteção ao meio ambiente e tradições culturais. Localizada no município que divide o Rio Grande do Norte da Paraíba, a Fazenda Pituba acomoda 43 famílias, cujos 217 integrantes descendem, em sua maioria, de índios potiguaras. No último dia 13, a juíza Daniela do Nascimento Cosmo, da comarca de Canguaretama, deu ganho de causa a Waldemir Bezerra de Figueiredo, dono de um das principais corretoras imobiliárias de Natal e presidente do Conselho Regional dos Corretores de Imóveis (Creci/RN), que move ação de reintegração e manutenção de posse por ter firmado um contrato de promessa de compra e venda da área de 75 hectares com uma pessoa que recebeu uma procuração do antigo proprietário, Thomaz Soares de Melo, morto em 2011.
A operação foi efetuada em 2005 e, desde então, conflitos foram travados na Justiça – a construção de um eco resort está no centro da disputa. Na manhã desta terça-feira (26), a equipe d’O Jornal de Hoje esteve na comunidade conhecida pelos herdeiros da cultura potiguara como Sagi-Trabanda (Sagi é distrito de Baía Formosa e também nome de uma praia paraibana; trabanda é um neologismo por estar ‘na outra banda’ da localidade). Na companhia do cacique Manoel Leôncio, o terreno com vista para o mar foi percorrido. “Aqui todo mundo é descendente de índio. Pelo menos uns 90%. Mas muitos não assumem, por puro preconceito”. O imbróglio começou, segundo ‘Manoelzinho’, no momento em que Thomaz Soares de Melo deu uma procuração para um homem conhecido como Paulo. “Foi ele que negociou com Bezerra [Waldemir Bezerra de Figueiredo], mesmo sem a assinatura da viúva ou o pagamento ser feito”.
Negociação concluída, sempre segundo Manoel Leôncio, o empresário teria oferecido R$ 1 mil para cada família, enquanto exigia a desocupação da casa por indígenas e descendentes que moram há mais de 100 anos em Sagi-Trabanda. “Minha bisavó, por exemplo, morreu com 105 anos e sempre viveu aqui. E antes dela, tinha índio também. Se somos considerados posseiros, o senhor Thomaz pode ser chamado assim também, pois ele simplesmente chegou aqui e ocupou a terra com os capangas dele”. Toda a comunidade vive do plantio de mandioca, batata, milho e da pesca artesanal. “Para piorar, a prefeitura de Canguaretama construiu uma ponte [sobre o rio Cavaçu] e jogou 62 carradas de pedra que acabou com nossa cultura do caranguejo”. O cacique acredita que o conjunto de situações é responsável pela decisão da juíza Daniela do Nascimento. “Ela inclusive esteve aqui, vendo a comunidade, antes da sentença. Não sei de onde foi que ela tirou essa ideia de tirar nosso terreno”.
A justificativa da juíza veio a partir da resposta da Fundação Nacional do Índio (Funai) quanto aos questionamentos sobre a existência de população nativa em Baía Formosa. “Não havia posse de terra indígena em termos jurídicos. Para a Funai, não existe índio em Baía Formosa. Nós mandamos ofícios e nenhum chegou com resposta positiva. Se tivesse informação sobre índios no local, nem teria passado por mim, pois isso é de competência Federal”.
Informada de que advogados iriam recorrer de sua decisão, a juíza Daniela do Nascimento Cosmo foi enfática. “É um direito que eles têm. Fiz o que era de minha alçada. Estive no local e não vi nada que caracterizasse uma comunidade indígena” – várias reuniões na sede da Funai, em Brasília, contaram com a presença de representantes da Comunidade Sagi-Trabanda, como fez questão de mostrar Manoel Leôncio em fotografias no celular. Outro encontro com funcionários da seção potiguar do órgão ligado ao Ministério da Justiça que defende a cultura indigenista e professores da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), na noite de terça-feira (26), determinaria novos rumos a serem tomados no caso da posse de terra.
“Eles podem morar na terra há muito tempo, mas isso não quer dizer que é deles. O terreno sempre foi do senhor Thomaz, que apenas permitiu que eles permanecessem, em troca do trabalho e um pedaço de terra para plantar”, diz a juíza Daniela do Nascimento. O fato é contestado pelo advogado dos índios, Luciano Ribeiro Falcão. “Essa área foi ocupada há mais de 40 anos, e não foi pelos índios. Os antepassados deles trabalharam na terra e nunca receberam indenização. Isso só foi feito quando o Sr. Thomaz quebrou. Então ele sugeriu pagar a dívida com terras, mas isso ficou de boca. Mas mesmo se isso não tivesse acontecido, tem o fato de que aquela terra é ocupada por índios potiguaras há mais de um século” – em 1850, a Lei das Terras já previa uma política nacional de miscigenação para homogeneizar a população indígena com o intuito de espoliar pedaços de chão ocupados por ‘mestiços’, não por índios legítimos.
“O Paulo, com a procuração dada por Sr. Thomaz, negociou com o Waldemir Bezerra, sem consultar ninguém. Em 2007, o Waldemir, então, chamou os índios e fez a proposta de comodato, como se a terra ficasse emprestada até ele definir o que faria com ela. Agora com o projeto do resort, a briga voltou à tona”, complementa Luciano. “No próprio julgamento, uma testemunha trazida por eles, um vigia contratado para tomar conta da fazenda, identificou que essas pessoas estão ali há décadas. O que precisa ser feito, antes de qualquer decisão precipitada, é um estudo antropológico para reconhecer ou não a comunidade indígena. Solicitei isso com a juíza Daniela, mas ela negou. Ouvir e decidir pelo que disse a Funai, que está distante e não veio fazer um levantamento, não funciona” – a Constituição Federal, no Art. 231 § 1º, diz que: “São terras tradicionalmente ocupadas pelos índios as por eles habitadas em caráter permanente, as utilizadas para suas atividades produtivas, as imprescindíveis à preservação dos recursos ambientais necessários a seu bem-estar e as necessárias a sua reprodução física e cultural, segundo seus usos, costumes e tradições”.
“Aqui ninguém vai abrir”, assegura o cacique Manoel Leôncio. Adornado com um cocar de pena de carcará, ele fala diante do túmulo do pai, de um irmão e de tios. “Querem tomar nossa terra na marra. Até o cemitério ele disse que ia mudar de lugar. Onde já se viu mudar cemitério?” Aos 44 anos, um dos remanescentes de uma cultura que se expandia do Maranhão à Paraíba vê a luta contra o ‘homem branco’, apesar do tom de guerra ao garantir que permanecerá na terra, com desdém. “Claro que irei até onde posso. Vou de novo à Brasília e convoco a classe política e quem mais puder nos ajudar. Não queremos nada de ninguém. Apenas o que é nosso. Meu pai morou aqui. Meus avós também. Não sei mais o que querem para saber que aqui em Baía Formosa, na Comunidade Sagi-Trabanda, que eles chamam Fazenda Pituba, tem índio potiguar”.
A reportagem tentou contato com o empresário e presidente do Creci/RN, Waldemir Bezerra de Figueiredo, e com seu advogado Gleydson Kleber Lopes de Oliveira. O primeiro não atendeu às chamadas. O segundo, através do número de seu escritório, ouviu o assunto e confirmou que falaria pelo celular. Mas a ligação também não foi atendida. Em seguida, refeito o contato com o escritório, sua secretária informou que ele acabara de entrar em reunião.