40 anos do golpe no Chile: o Sul21 recorda as datas-chave dos seis meses finais do governo de Salvador Allende, deposto em 11 de setembro de 1973.
Por Maurício Brum, Especial para o Sul21
Em outubro de 1972, a situação econômica do Chile atingiu um ponto crítico por conta das sabotagens estrangeiras e dos erros estratégicos do governo de Salvador Allende. O drama se agravou com a primeira grande greve de oposição, iniciada naquele mês. Financiados pelos Estados Unidos, os transportadores estacionaram seus veículos. A Greve de Outubro paralisou 47 mil caminhões em todo o país. Em resposta, os caminhoneiros aliados ao governo formaram o Movimento Patriótico de Renovação (Mopare), mas não reuniram mais de 6,5 mil fretes. Os poucos que se atreviam pelas estradas ainda eram atacados pelos piquetes, com pedradas nas janelas ou pregos nos pneus, enquanto os produtos sumiam dos mercados e a inflação se acelerava.
O cenário parecia difícil de ser contornado, e Allende não teve alternativa além de chamar representantes militares para compor um novo ministério. O gabinete de emergência encerrou a Greve de Outubro poucos dias após tomar posse e, mais tarde, cumpriu seu objetivo principal: no início de 1973, garantiu a realização das eleições parlamentares em segurança. Três semanas após o pleito, em 27 de março daquele ano – exatamente quatro décadas atrás –, o ministério especial chegou ao fim.
O gabinete civil-militar mesclava líderes sindicais com generais da mais alta hierarquia, compondo uma experiência rara num continente em que as Forças Armadas vinham preferindo derrubar mandatários em crise para impor ditaduras. Assim, na mesma cerimônia em que o brigadeiro Claudio Sepúlveda assumiu a pasta de Minas ou o almirante Ismael Huerta ficou com Obras Públicas e Transportes, tomaram posse nomes como o comunista Luis Figueroa, presidente da Central Unitaria de Trabajadores (a CUT chilena), que passou a coordenar o Ministério do Trabalho.
Quando requisitou a ajuda dos homens de farda no outubro das instabilidades, Allende fez mais do que uma jogada necessária para reafirmar a autoridade de seu governo. Era, principalmente, uma mensagem para a opinião pública: que a Unidade Popular (UP) ainda tinha boas cartas a lançar na tentativa de estabilizar o país, e que havia oficiais militares constitucionalistas dispostos a apoiar uma saída democrática para a crise. Além de tranquilizar aliados e arrefecer os ânimos golpistas de parte da oposição, a presença dos generais reforçou o mito do Chile como uma exceção na política conturbada da América Latina.
Naquela altura, a nomeação mais importante coube ao comandante-em-chefe do Exército, general Carlos Prats González, que se tornou Ministro do Interior. O cargo equivalia à vice-presidência do país, e chegou a colocar Prats como mandatário interino quando Salvador Allende se ausentou do país nos meses finais de 1972. Na ocasião, o presidente viajou a Nova York para denunciar frente às Nações Unidas os boicotes internacionais sofridos pelo Chile socialista. Depois, seguiu para Moscou em busca de um empréstimo que reanimasse a economia chilena. Os soviéticos, porém, liberaram um valor muito abaixo do desejável: estavam insatisfeitos com a “revolução branda” da UP e, acima de tudo, não tinham condições nem vontade de financiar uma segunda Cuba na zona de influência norte-americana.
A viagem de Salvador Allende colocou Prats numa posição tão histórica quanto circunstancial: era ele quem se sentava na principal poltrona de La Moneda em dezembro de 1972, quando Pablo Neruda retornou definitivamente a Santiago. Foi o simpático general, e não Allende, quem discursou na recepção do poeta comunista diante do Estádio Nacional de futebol. Foi Prats quem exaltou a obra de Neruda e falou contra a ameaça de golpe que alguns colegas de caserna faziam chegar aos ouvidos da população. Foi ele quem ouviu o escritor relatar os horrores da Guerra Civil Espanhola, dizer que o Chile corria esse risco e, lembrando seus tempos de diplomata, contar sobre o dia em que fez uma leva de refugiados do franquismo desembarcar no porto de Valparaíso.
Mesmo após o regresso de Allende, Carlos Prats continuou sendo uma peça importante para a manutenção do regime democrático. Todos sabiam, no entanto, que sua presença no governo tinha – ou deveria ter – um prazo de validade: as eleições de 4 de março de 1973. Pelo acordo, os militares permaneciam no gabinete até que o pleito fosse concluído, e em seguida colocariam seus cargos à disposição do presidente. A renúncia coletiva foi apresentada na noite de 22 de março, uma quinta-feira, e a transição ocorreu cinco dias mais tarde. Em seus diários, Prats registrou o seguinte sobre o período na vice-presidência:
Havia terminado uma dura experiência, durante a qual recebi ataques impiedosos ou destemperados, e aplausos sinceros ou interesseiros.
Havia conhecido o pensamento íntimo de muitos homens de governo e havia medido as diferenças táticas que os separavam. Sentia sincero apreço por vários deles, com os quais compartilhei responsabilidades transcendentes. Havia tido contato com diversas personalidades da oposição e pude avaliar seus méritos e defeitos, a gravitação de suas conveniências partidárias e o nível dos seus sentimentos patrióticos.
Em particular, conheci muito de perto o Presidente Allende, quem me dedicou muitas horas de análise e, apesar da grande distância que nos separava no aspecto ideológico e em cultura política, aprendi a respeitá-lo como governante e a apreciá-lo como ser humano. Na primeira dessas qualidades, vi-o concentrar todos os seus esforços e capacidades em benefício da causa popular, antepondo seu interesse pela justiça social às conveniências programáticas ou eleitorais da combinação de partidos políticos que o sustentavam.
A renúncia ao cargo no governo devolveu Carlos Prats ao comando do Exército, que naqueles meses havia sido ocupado provisoriamente pelo segundo general em antiguidade – o ainda obscuro Augusto Pinochet Ugarte. Em fins de março de 1973, o papel futuro dos dois permanecia era insuspeitado. Prats, apesar da intenção de se afastar da política, voltaria a ser fundamental para a ala constitucionalista das Forças Armadas, lutando para manter o regime democrático em pé. Inclusive teria de reassumir um cargo ministerial nos meses seguintes. Pinochet, sempre em segundo plano, avançaria o ano fazendo jogo duplo. Apresentando-se como um leal defensor do governo, aguardaria a saída definitiva de Prats, no fim de agosto, para acionar o mecanismo do golpe.
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Enviada por José Carlos para Combate ao Racismo Ambiental.