Kabengele Munanga: Só o discurso não é suficiente para acabar com o racismo [ou O racismo brasileiro é um crime perfeito]

Recentemente aposentado após 32 anos dedicados à vida acadêmica,  mantém ativa a militância intelectual no Movimento Negro e participa de palestras pelo País em que defende ações afirmativas. O estudioso foi um dos palestrantes do 2º Congresso Anual do Instituto de Estudos Brasil Europa (IBE), ocorrido no início de março em Belém.

Nascido no antigo Zaire, atual República Democrática do Congo, Kabengele chegou ao Brasil em 1975 para o Doutorado em Antropologia na USP. Em 1977 retornou ao seu País de origem, mas por questões políticas – na época vivia-se um período de ditadura -, não pode permanecer. De volta ao Brasil, lecionou na Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Em seguida, estabeleceu-se como professor da USP e ingressou no Movimento Negro como pesquisador.

Defensor das cotas, o estudioso questiona na entrevista abaixo o mito da democracia racial no Brasil, diz que não se considera um ativista negro – e sim um militante intelectual -, e explica porque acredita que o racismo brasileiro é um crime perfeito.

– Como sua trajetória o levou ao Movimento Negro no Brasil?

Cheguei ao Brasil em 1975 para defender o Doutorado na USP, finalizando em 1977. Depois voltei ao Congo mas, por questões políticas, não pude permanecer. Alguns meses depois voltei ao Brasil e comecei minha carreira acadêmica como professor convidado da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, onde fiquei de 79 a 80. Em 80 entrei na USP e me aposentei por lá. Portanto a minha entrada no Movimento Negro foi mesmo como pesquisador. Não foi como ativista negro, mas militante intelectual. Tenho defendido as causas, realizado publicações como um estudioso engajado. Não é um discurso totalmente neutro.

– O que acha das ações afirmativas que estão sendo implementadas no Brasil nos últimos anos? O País está no caminho certo?

Estamos no início do processo. O País conviveu muitos anos com o mito da democracia racial e, por isso, nunca implementou políticas de inclusão para a população negra. O pensamento era “não somos racistas, não precisamos de políticas de inclusão.” Apesar da luta constante do movimento negro, que passou de geração em geração, a verdadeira política de inclusão começou no governo de Fernando Henrique Cardoso. Na época o Brasil participou oficialmente da Conferência de Durban (que ocorreu na África do Sul em 2001) contra o Racismo, a Discriminação Racial e a Xenofobia. De lá o governo voltou com a proposta de cotas. Em 2002, a Assembleia Geral do Rio de Janeiro adotou uma lei impondo política de cotas com porcentagem de negros e brancos nas escolas públicas. Foi o ponto de partida que fez com que a discussão alcançasse âmbito nacional.

– E as universidades acabaram adotando este modelo?

Várias universidades estaduais e federais se inspiraram, utilizando-se da autonomia universitária para adotar o sistema de cotas. A UnB foi a primeira federal. Depois vieram a UFBA e universidades do Sul do Brasil como as do Rio Grande do Sul, Santa Catarina e Paraná. Ficou a resistência nas universidades paulistas, como a USP, Unesp e Unicamp, e algumas universidades federais de Minas Gerais. Agora, com a lei aprovada pela presidente Dilma, todas as universidades federais são obrigadas a trabalhar com cotas. Mas a lei não atinge as estaduais.

– Por que acredita que o sistema de cotas é importante para o Brasil?

Entre os brasileiros que têm diploma universistário, 97% são brancos, 1% asiáticos e 2% negros e mestiços. Apenas 2%. No entanto, eles representam mais de 50% da população brasileira. Há aí um problema a se resolver, um claro abismo. E esse problema não se resolve apenas com o discurso de políticas universalistas da escola pública de boa qualidade. Por isso este caminho de políticas de inclusão foi pensado. É a porta, no modelo daquilo que foi feito nos EUA na década de 60 e que conseguiu incluir os afroamericanos, reduzindo o abismo de 50% para menos de 10%. Acredito que o sistema de cotas é um caminho de inclusão rápido. A UnB, por exemplo, em 10 anos recebeu mais negros do que em toda sua história.

– Fala-se que, em pesquisas por exemplo, muitas pessoas teriam dificuldade de considerarem negras. Acredita mesmo nessa dificuldade?

Acho que não há nenhuma. A dificuldade são os intelectuais que têm. Os policiais não têm dificudade de saber que são negros, os zeladores dos prédios também não. São os intelectuais que têm dificuldade em um país onde existe discriminação racial. Significa que quem discrimina sabe quem é o negro. Isso é na verdade um falso problema.

A criminalização do racismo é um bom mecanismo para minimizar o problema?

Sim, a lei é importante. A prática de discriminação racial é crime inafiançável. Tem de haver a lei para punir as pessoas e reprimir as práticas racistas. Mas a lei sozinha não resolve tudo. É por isso que o Supremo Tribunal Federal (STF) voltou com a constitucionalidade das cotas. Sabe que as leis são importantes, mas além deles é preciso implementar políticas públicas de mudança material. Perante a lei somos iguais, mas é uma igualdade formal, porque materialmente não somos iguais. Isso só se faz com políticas públicas, afirmativas.

O senhor já chegou a dizer uma vez que o racismo é um crime perfeito no Brasil. Por quê?

É um crime perfeito porque quem o comete acha que a culpa está na própria vítima. Além do mais, destrói a consciência dos cidadãos brasileiros sobre a questão racial. Nesse sentido é um crime perfeito.

– Algumas pessoas têm resistência com a questão de cotas, acham que aumentaria a discriminação. O que acha disso?

Esta é uma questão de consciência, porque disseram para a elas que entrar com cotas é como dizer que não são inteligentes para passar pela grande porta. Abrir a pequena porta seria discriminação. Eu entrei na universidade, fui professor da USP, cheguei no topo da carreira, formei outros estudiosos. Mas o meu caso não é como o da maioria. O sucesso individual não representa o sucesso coletivo. Essas pessoas não têm consciência disso e acham que é uma diminuição psicológica. Mas se você pensar nas vítimas do Holocausto, elas hoje recebem indenização mas não são diminuídas por isso. O que se faz são políticas compensatórias de inclusão. Essas pessoas dizem isso porque a ideologia dominante botou na cabeça delas que estão se inferiorizando pelo fato de receber cotas.

– Existe uma diferença na forma como o Congo e Brasil lidam com a questão racial?

Os problemas nos países africanos não são de discriminiação racial, mas econômica. Porque se cria cada vez mais pobreza, uma minoria se enriquece roubando o dinheiro público. A questão fundamental é da discriminação de classe, porque a maioria da população africana é negra. No Brasil o negro acumula duas discriminações: a de classe e a de cor. O branco acumula só uma.

Fonte: Assessoria de Comunicação do IBE – Publicado originalmente por CENPAH

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