Por Licio Monteiro*
Vocês lembram no 7º ano quando levei uma apresentação dos índios Fulni-ô lá para o auditório do CPII-Humaitá? Aqueles índios costumavam vir ao Rio de Janeiro todos os anos entre março e abril para fazerem gratuitamente atividades em escolas e espaços culturais com a finalidade de divulgar um pouco da cultura que eles ainda mantêm em suas aldeias no município de Águas Belas, em Pernambuco. Traziam objetos de artesanato para vender, cantavam, dançavam e contavam um pouco de sua história. Quando vinham para o Rio, sem apoio de nenhuma instituição, ficavam acampados no pátio do Museu do Índio, batizado de “Aldeia Maracanã” em 2006, depois que índios de diversas tribos do Brasil resolveram ocupar o prédio do Museu que estava abandonado, em ruínas, parece que desde 1978.
Quem passava do lado podia pensar que era uma casa mal assombrada, plantas crescendo no cimento, janelas quebradas, a cara do abandono. Mas de 2006 para cá os índios resolveram dar um novo uso para aquele lugar: transformar uma casa vazia numa grande aldeia que se tornasse uma ponte entre a cidade grande e as tribos espalhadas por todo Brasil, uma ponte entre dois mudos completamente distintos, entre a memória de um passado quase sem registro e a grande metrópole do futuro, entre os pequenos grupos de índios remanescentes em terras de lugares distantes de nós e os milhões que formam a multidão da cidade do Rio, entre duas velocidades de pensamento e dois olhares diferentes sobre, por exemplo, o que é um rio.
Como é possível brotar uma planta entre as fendas de uma construção de cimento? É mais ou menos como brotar uma aldeia indígena em plena Radial Oeste, aquela avenida com várias pistas onde carros passam em alta velocidade quando está sol e boiam quando chove, um símbolo da insensatez da vida urbana carioca.
A ponte imaginária que seria construída pelos índios na Aldeia Maracanã não era um megaprojeto, não tinha empreiteira envolvida. Não tinha prazo de entrega, nem se sabia ao certo se ficaria pronta algum dia. Provável até que não se concretizasse. Mas também não seria motivo para desvios de verba, nem para a superexploração dos peões de obra, nem ajudaria o Brasil a aumentar seu número de bilionários (atualmente são só 53, mas até 2022 serão 136). Não precisariam construir milhares de vagas de estacionamento em torno da ponte imaginária, pois as pessoas que por ela passam geralmente usam trem, ônibus, bicicleta ou vão a pé mesmo. Não seria motivo para mais remoções de pobres, paisagens e passados.
Imaginem em pleno Rio de Janeiro, do lado do palco onde acontecerá um dos maiores eventos do próximo ano, com todas as câmeras fotográficas voltadas para esse lugar, parlamentares, advogados, estudantes e toda a sorte de simpatizantes em volta. Justamente onde os índios reunidos na Aldeia Maracanã poderiam esperar estar protegidos pela “opinião pública” do mundo inteiro. Se nesse lugar é possível acontecer uma violência como a que ocorreu hoje na desocupação do Museu do Índio sem que nenhuma consequência seja tomada. O que esses mesmos índios podem esperar nos recônditos onde vivem, muitas vezes ameaçados por latifundiários, empreiteiros e grandes projetos? É ou não é desesperador viver nessa tensão? Não é à toa que o suicídio é uma das principais causas de morte dos índios no Brasil, principalmente na faixa etária entre 12 e 20 anos.
Existem várias maneiras de ser índio, embora a imagem predominante seja a de que o índio é um selvagem que vive nu na floresta caçando e pescando. Essa imagem é ambivalente, serve tanto para elogiar a beleza e a suposta ingenuidade da vida indígena ao mesmo tempo em que retira a legitimidade das diversas outras maneiras de ser índio que são assimiladas ou inventadas no Brasil e no mundo. Uma dessas maneiras poderia estar sendo inventada na Aldeia Maracanã.
Quando vocês foram ao Museu Nacional de Belas Artes, lembram-se do quadro da primeira missa que as professoras Jaqueline e a Juliana mostraram? A história é contada várias vezes, a cada vez ela se reedita, cada um coloca naquela história narrada um pouco do próprio tempo em que está vivendo. Podemos fazer o mesmo com o tempo em que estamos vivendo? Colocar um pouco das narrativas históricas para interpretar um acontecimento que estamos vivendo? Cada bomba lançada hoje poderia contar a história da pólvora, cada escudo da PM a história das cercas, cada ordem do governador Cabral a história de todas as ordens imperiais, e cada notícia do RJTV a primeira missa em tempo real.
Pode ser que, nos próximos anos, menos jovens da cidade grande como vocês conheçam índios que visitam escolas para falarem de sua cultura. São muitas mediações necessárias para que isso ocorra. Mas pode ser também que outras pontes sejam imaginadas e cultivadas fora do que tentam nos impor goela abaixo. Existe um encontro secreto, marcado entre as gerações precedentes e a nossa, disse o filósofo Walter Benjamin. Para chegar nesse encontro é que construímos pontes imaginárias, que nos conectam não aos grandes eventos, mas àquelas plantas que brotaram no meio do cimento. Espero que vocês sempre consigam ver essas plantas por aí.
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*Texto de Licio Monteiro, professor do Colégio Pedro II, direcionado a seus alunos sobre a remoção da Aldeia Maracanã.
Enviado por Beth Salgado para Combate ao Racismo Ambiental.