Procurador da República, Julio José, relata em entrevista sobre como a justiça vê os povos indígenas e cita os maiores problemas encontrados no Amazonas
Por Elaíze Farias
Como os direitos indígenas, sua cultura e a sua forma de ver e de estar no mundo podem ser compreendidos pelas regras do judiciário, dos sistemas públicos de segurança e constitucionais? Nesta entrevista, o procurador da República Julio José Araújo Júnior faz uma análise da evolução e dos avanços dos direitos dos povos indígenas. Também expõe as maiores dificuldades que ainda se perpetuam para corresponder a estes preceitos conquistados nos últimos 25 anos, desde que a Constituição Federal foi promulgada, em 1988.
Julio José Araújo, de 29 anos, é natural de São Paulo (SP). Atua no Ofício responsável pelas populações indígenas e comunidades tradicionais. Chegou a Manaus em julho do ano passado, quando foi aprovado no concurso para procurador da República.
A opção por atuar no Amazonas foi uma escolha pessoal e profissional. O interesse pelas questões indígenas também já vinha florescendo desde muito tempo. Há quase três meses, o procurador integrou uma campanha nacional do MPF de engajamento em favor da saúde indígena, o chamado Dia D da Saúde. Os primeiros resultados, com a resposta da justiça federal, foram imediatos. Leia a seguir a entrevista que Julio José concedeu ao jornal A CRÍTICA:
O senhor já conhecia a realidade indígena do Amazonas?
Sempre tive uma atração pela matéria indígena. Eu fui servidor do MPF entre 2005 e 2007 e trabalhei com essa matéria em São Paulo. Mas não tem nada a ver com a realidade indígena do Amazonas. Nem todo mundo sabe, mas em São Paulo também existem índios, embora seja uma realidade diferente. E sempre tive vontade de fazer esse trabalho. Tinha notícias de São Gabriel da Cachoeira (município no norte do Amazonas), de colegas que atuaram lá. É uma experiência muito rica e muito importante.
O senhor identificou diferença entre as realidades dos povos indígenas do Amazonas com outras regiões?
Por já conhecer um pouco da realidade no Brasil, de certa forma não me surpreendi com as dificuldades e sim com as especificidades nestas dificuldades. As dificuldades são grandes, são gerais no Brasil, que exige uma atuação articulada para atendimento. Mas no Amazonas a gente encontra dificuldades específicas, próprias da região. E essas dificuldades sim me surpreenderam. Inclusive o próprio descaso em relação a pessoas (os indígenas) em um lugar em que eles estão mais presentes.
Quando o senhor chegou ao Amazonas, quais foram as primeiras medidas que tomou? O que merecia mais atenção?
Não dá para encarar o trabalho sem continuidade. Tinha colegas que já atuavam, realizando um bom trabalho. E já me passaram muitas dificuldades e urgências. Mas a minha maior necessidade foi ir a campo conhecer os problemas e as diferentes realidades, desde a atuação junto aos waimiri-atroari até São Gabriel da Cachoeira. Que é o que continuo fazendo. É algo que me coloca sempre alerta. Nosso trabalho exige não ficar parado, não esperar as coisas acontecerem. Se a gente fica esperando, as demandas não vêm.
Desta forma, o senhor quis dar um diferencial ao seu trabalho?
É uma questão de perspectiva. É algo que eu quero incrementar ainda mais este ano. Mas o problema mais urgente que encontrei aqui foi a questão da saúde. Aqui temos muitas terras demarcadas, temos situações de reivindicação, que merece nossa atenção, mas há muita terra já regularizada. Os conflitos continuam, mas a saúde foi o ponto mais urgente.
Como o senhor descreveria a situação de saúde indígena no Amazonas e a mudança da gestão da Fundação Nacional de Saúde (Funasa) para a Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai)?
A Sesai é uma criação importante, os indígenas reconhecem isso. Mas essa direção do sistema pela Sesai foi feita de maneira muito abrupta, sem uma estruturação administrativa de gestão dos recursos e da organização do sistema. Havia uma demanda para que os DSEIs (Distrito Saniterário Especial Indígena) tivessem autonomia. Essa autonomia foi concedida. Eles podem fazer as contratações de combustível, organizar certos insumos, mas eles não têm pessoal capacitado para fazer isso. Há problemas de administração. Ao mesmo tempo, os profissionais de saúde, as chamadas equipes multidisciplinares, não são do quadro, não são concursadas. São contratadas mediante terceirização. Isso gerou em Brasília uma discussão do Ministério Público do Trabalho com a Sesai que resultou em um termo de conciliação judicial para que a Sesai fizesse um planejamento de contratação de concurso.
Qual a importância de se realizar concurso para substituir os serviços terceirizados?
Os povos indígenas têm duvidas sobre isso (terceirizado). Gera receio quanto à rotatividade de profissionais, por gente que não tenha intimidade com a matéria ou sensibilidade. Mas é uma questão que tem que ser discutida na gestão do edital do concurso. Porque o concurso é uma conquista. Permite-se que haja um compromisso do Estado, não se admite loteamentos, cooptações e se garante estabilidade. Havia um prazo para março, mas isso foi negociado e adiado para o fim do ano. Isso deve considerar a participação dos povos indígenas na adaptação e na formulação de suas necessidades.
Entre as dificuldades encontradas pela Sesai, quais as que o senhor poderia citar?
No Amazonas, o que a gente encontra é uma política da Sesai que não considera toda a população indígena que está aqui. A Sesai tem critérios muito formais para identificar quem é indígena e quem não é. O que contraria a ideia da auto-identificação e a forma de organização. Por mais que haja muitas terras já demarcadas e homologadas. Por mais que hajam muitas regularizadas há outras pendentes de qualquer tipo de reconhecimento pelo Estado brasileiro. E muitas vezes a Sesai se vale só do critério da delimitação e da identificação para prestar atendimento. Isso gera problemas. É o caso do povo Maraguá, no rio Abacaxi, em Nova Olinda do Norte. O Tarumã, em Manaus, também. Curioso é que Fundação Nacional de Saúde (Funai) e Dsei/Manaus não conversam muito. Então estamos promovendo uma conversa entre eles para que a Funai forneça informações que permitam esse atendimento.
A Sesai teria condições para atender todas as comunidades, inclusive as não demarcadas?
É uma questão de reconhecimento de obrigação dentro da saúde básica. Essa é uma situação que encontramos dentro do Amazonas. E a gente nem está discutindo a questão dos índios dentro da cidade, que entra uma articulação com os municípios e os Estados. Esse é um problema grave que encontrei aqui. Outro problema, e que atinge todo o Estado, é o de atendimento das equipes. Quanto mais longe a gente vai, mais difícil se torna esse atendimento, que é o problema do fornecimento de combustível, da não ida das equipes às aldeias, às áreas. A falta de medicamento, a falta de contato entre as comunidades e o DSEI. Esse distanciamento, esse acompanhamento que não é permanente. Muitas vezes essas idas que não se confirmam. Essas idas registradas no papel que não se confirmam no contato.
A judicialização da prestação de serviço tomou lugar da obrigação que o Estado?
Não é nosso objetivo chegar ao ponto de ir ao judiciário. Se pudéssemos resolver no nosso âmbito, com as nossas recomendações e dialogando seria o melhor caminho. O problema é que chega em um ponto em que a urgência continua flagrante. A situação só se deteriora e não se vislumbra soluções. Foi por conta disso, inclusive, que em todo o Brasil, os procuradores do MPF ajuizaram no dia 10 de dezembro de 2012 ações para tratar da saúde indígena que a gente chamou de Dia D da Saúde Indígena. Justamente porque há uma necessidade por conta dessa falha na prestação do serviço e de uma política público que já existe, mas não vem sendo cumprida…
É o caso da liminar que obrigou o Distrito Sanitário Especial Indígena (Dsei) do Rio Negro a liberar medicamentos aos indígenas?
Sim. Existe uma lista de medicamentos do Ministério da Saúde que ele considera essenciais para a saúde indígena. A gente quer que simplesmente se cumpra essa lista. Não é o Ministério Público Federal que está querendo uma lista nova. Então nesse Dia D o espírito foi justamente para mostrar para o judiciário que há uma situação ruim na saúde. Mostrando de forma articulada que o sistema não está funcionando bem. Às vezes se judicializa aqui, ali, e se vai convivendo com esta situação. Agora a gente mostrou a necessidade de uma resposta do judiciário para que as coisas mudem. Que melhorem. Se há falta de probidade, que a Sesai se organize para que tenha controle e organização melhor, para que de fato esse recurso chegue.
Como o senhor analisa as condições físicas e estruturais das Casas de Saúde Indígena (Casai)?
Há uma preocupação grande. No mesmo dia 10 de dezembro eu ajuizei uma ação civil pública em relação a Casai de Lábrea, que passa por uma situação muito complicada. Há fotos, relatos, informações do próprio secretário da saúde indígena reconhecendo que ali não é uma situação boa. O fenômeno que acontece no sul do Amazonas é que os índios da região do Médio Purus ao invés de ficarem lá ou pedirem deslocamento para Manaus vão para Porto Velho (RO). E isso gera superlotação lá. Uma dificuldade por conta da ineficiência da prestação do serviço. Mas a gente tem apuração em várias outras Casai. De Manaus, de Maués. Em Maués há um inquérito civil público. Se for o caso, a gente vai levar ao juízo. Em relação a Casai de Lábrea a gente conseguiu uma liminar para estabelecer um cronograma de reforma, de contratação para reparações. E o Tribunal manteve essa decisão.
Como o MPF está atuando na questão fundiária das terras indígenas?
No Amazonas, felizmente, há menos problemas de territórios e conflitos como se vê no Mato Grosso. Há menos conflito, mas isso não é menos prioritário. E tem situações em que os povos indígenas estão muito urgentes de identificação e demarcação. E de conflito também. Você tem Pantaleão, dos índios Mura. Os Mura em geral. E há toda intenção de cobrar da Funai que ela dê agilidade a esse processo. Todas as comunidades da região da BR-317, de Boca do Acre. Há preocupação de mesmo nas terras já demarcadas de fazer revisão dos seus limites. Temos várias situações nesse processo. Principalmente na região do Médio Rio Negro, de Barcelos, Santa Isabel do Rio Negro. Tem a região do rio Cuieiras. A região dos Mura: Guapenu, Pantaleão, Capivara, toda essa região. A Funai diz que é uma prioridade nos estudos e estamos acompanhando.
O senhor tem acompanhado o retorno da discussão que regulariza a mineração em terra indígena?
A mineração se insere justamente nesse momento posterior àquela situação que os índios conseguem a sua terra. Se insere na questão de geração de riqueza e gestão. O que a gente vê é um assédio muito grande de não-índios para exploração de riquezas presentes nessas terras. E isso gera conseqüências muito complicadas. A gente vê que os próprios indígenas em alguns casos aceitam ou não aceitam. Os Yanomami de Roraima são totalmente contra a mineração e por ter identificado todo o tipo de conflito que eles viveram. Eles não querem porque conheceram os malefícios. Já no Alto Rio Negro há uma expectativa de regulamentação não tão oposicionista.
De que maneira essa discussão deve ser encaminhada?
Existe um projeto de lei que foi pinçado para tratar especificamente da mineração de terras indígenas. A Constituição coloca que isto dependerá de lei. Enquanto não tem lei específica, não pode ocorrer. O problema é que muitas vezes o interesse econômico não se compatibiliza com o interesse dos povos indígenas. Aí é um cuidado que se tem que ter nessa discussão. Muitas vezes há uma ansiedade grande pela possibilidade de geração de renda, que é um interesse dos povos indígenas, mas isso pode ser feito de uma maneira muito predatória, não de uma maneira artesanal, extrativista. De uma maneira muita pesada, representando de fato uma ocupação dessas terras indígenas, a despeito de haver um regime próprio de Constituição. É um tema que exige discussão e cuidado. E ao mesmo tempo, exige que o Estado brasileiro se preocupe com a geração de alternativa e receita para os povos indígenas. Acho que retirar a discussão do Estatuto do Índio não é um bom caminho porque já leva um viés para a mineração. Segundo, tem que passar por um processo de consulta. Teria que ter esse espírito na formulação legislativa. Não basta haver uma palestra, um mero debate. No projeto não fica claro como se dará a vontade dos povos indígenas. Não se respeita efetivamente a posição dos povos indígenas. Merece muita reflexão e discussão, sem se afobar.
O Projeto de Lei do novo Estatuto do Índio está parado há muito tempo no Congresso. De que maneira isso pode ser preocupante?
Existe um Estatuto do Índio que está há 20 anos parado no Congresso. A Constituição de 1988 mudou muito a lógica do índio. Você pega o estatuto de 1973 e fala do índio aculturado, integrado, que a função do Estado brasileiro seria integrar o índio à comunhão nacional. Isso é totalmente fora da lógica da Constituição de 1988, que visa respeitar e fazer valer os seus costumes, tradições, línguas e suas terras. A lógica do Estatuto não é a da Constituição. Isso é um grande problema no nosso dia a dia, inclusive na justiça, nos tribunais, porque está muito enraizado na população e nos órgãos jurídicos esse tipo de concepção. E esse estatuto poderia regular todas as questões,os direitos, os deveres, a própria exploração econômica, turístico. E tratar isso dentro de um conjunto que tenha essa perspectiva.
Por que há tanta dificuldade de se entender e se aplicar os direitos indígenas no sistema judiciário e de segurança pública?
O Estatuto do Índio cria categorias de índios. O índio não integrado, ou que se chama de aldeados. O índio em vias de integração e o índio integrado (aculturado). E são termos terríveis. Qual a perspectiva do Estatuto do Índio? O índio vai ser preparado para integrar a comunhão nacional. E isso era na perspectiva da ditadura militar, inclusive para tirar terra dos índios.. A lógica presente é isso. E qual o raciocínio? Quando ele está aldeado, não integrado, ele é incapaz. E o índio quando é aculturado, plenamente na sociedade envolvente ele é capaz. Criando duas categorias de índio. Antes da Constituição não se falava que a justiça federal tem competência para a disputa de direitos indígenas. Hoje ela fala. Mas direitos indígenas, para uma jurisprudência um pouco mais conservadora, são só aqueles relacionados ao aldeados. Aquela ideia de aldeado, do índio pelado, selvagem, amazônico. Essa é a visão do estereótipo. Quantas vezes você não ouve falar? “Hoje o índio está tão integrado que tem até celular”. Que é um discurso comum.
É um olhar pejorativo e que naturaliza a identidade étnica do índio e de seus costumes…
O fato de ser índio não está relacionado a isso. Porque tem a Constituição, tem a auto-identificação, tem a questão da 169 (Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho, um tratado internacional que também legisla sobre povos indígenas). Independente se está na cidade ou não, ele é índio. Merece ser reconhecido. O fato de ele ir pra cidade é um direito. Ele pode vir se quiser, se integrar à sociedade envolvente. É um direito dele. Ele não deixa de ser índio por causa disso.
Como a relação do índio com a sociedade envolvente é vista pelo sistema judiciário?
O que existe é que nem sempre o índio consegue internalizar aquela norma e agir de acordo com ela. E quem teria que fazer isso é o profissional competente, que é o antropólogo. O que acontece na prática? As autoridades, sejam policiais, judiciais ou mesmo no MPF, ficam na condição de definir se tem ou não condição de entender a licitude de um ato. E desde já definir isso. Isso baseado em parâmetros antigos. Quando a questão não se resolve assim. A Constituição diz: disputa sobre direitos indígenas na justiça federal. A jurisprudência diz: quando tiver uma repercussão coletiva na comunidade. O problema é que quase sempre pode ter uma repercussão coletiva. Uma situação individual pode ter. Os índios se organizam de uma forma diferente da nossa. Então reconhecer essa diferença implica ampliar essa competência da justiça federal. Aí reconhecer isso necessitaria que o juiz reconhecesse a incapacidade, no sentido técnico, de dizer o grau de entendimento. Precisaria de um técnico para isso. Então eu defendo que sempre deveria ser da competência federal. Mas o que acontece na prática? Muitas vezes crimes isolados, situações específicas entre indivíduos, muitas vezes acaba indo para a justiça estadual. Acaba tendo o tratamento como se eles fossem não-índios. Há um julgamento prévio de que eles são aculturados ou capazes. Capazes eles são de fato. Mas não cabe fazer a distinção “capazes e não-capazes”.
Quando comete um crime, sob a lógica da legislação brasileira, como o índio pode ser punido?
Eles podem ser punidos. O ideal é que você tivesse um acompanhamento técnico de um antropólogo para saber se de fato ele (o indígena) entende a ilicitude daquela conduta. Muitas vezes por conta desse entendimento de que conflitos individuais nada têm a ver com o grupo ou se o índio é da cidade e porque é mais prático gera esse tipo de confusão. Entendo que a atuação do MPF é mais ampla do que se prega. E avalia que o problema está nessa percepção de que não cabe aos juízes, aos promotores, definirem qual é que vai para a justiça estadual ou não. Situações isoladas justamente demonstram o impacto cultural e étnico que eles focam nessa convivência. Não é o profissional do Direito que tem que dizer isso, mas a antropologia.
Desde que chegou aqui, quais as áreas que o senhor já visitou no Amazonas?
São Gabriel da Cachoeira, região dos Waimiri-Atroari, região de Manaus, Careiro, Manaquiri. Pretendo visitar neste ano a região do baixo Amazonas e o sul do Amazonas. Visitar os tenharim, discutir a gestão de terra indígena. A questão da terra está mais na geração de renda, que é um debate nacional, mas no Amazonas se mostra bem peculiar.
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