Anteontem, dia 19, publicamos reportagem assinada por Ruy Sposati, com o título Mato Grosso do Sul e a indignidade e violência de cada dia: “Chamados de ‘sujos’ e ‘fedidos’, indígenas são expulsos de sala de aula”. No mesmo dia e renovando a minha crença na importância de continuarmos a lutar pela democratização do sistema de Justiça, pois há neles pessoas dignas de todo o nosso respeito, a Defensora Pública Neyla Ferreira Mendes, de Campo Grande, enviou Ofício ao diretor da escola. Após citar trecho da matéria (que imprimiu e anexou), deu prazo de dez dias para que, em nome da “grave violação dos direitos das crianças indígenas”, fossem por ele respondidas as seguintes perguntas:
“1. Os estudantes indígenas foram de fato retirados da sala de aula conforma consta da notícia que segue impressa? Se foram, qual o motivo?
2. Todos os estudantes supra mencionados estão frequentando as aulas?
2-a) Se sim, em que condições?
2-b) Se não todos, quantos não voltaram?
2-c) Para os que não voltaram, quais as providências que essa Direção tomou para trazê-los de volta para a sala de aula e motivá-los a permanecer?”
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A resposta chegou hoje, datada de ontem e seguindo a numeração das perguntas:
“Mui respeitosamente, venho pelo presente responder o solicitado no Of/12.ª DPC – 004/13 do dia 19 de março do corrente, conforme segue abaixo:
1. Como os alunos não-indígenas relutaram em não adentrar na sala de aula devido às circunstâncias do momento alegadas pelos mesmos, todos os alunos realizaram suas atividades extra-sala, no ambiente destinado ao projeto de xadrez/damas. Não houve, em nenhum momento, separação da turma, ou seja, alunos em sala de aula e alunos no ambiente externo. [grifo deste blog]
2. A matéria veiculada, totalmente descabida de verdade e sem o mínimo de averiguação da parte ‘denunciada’, citou 28 alunos, quando o total de alunos indígenas matriculados na referida turma são 9 (nove). Desses, 7 (sete) estavam presentes dia 19/03/13 e 4 (quatro) estiveram frequentes no dia 20/03/13. Acreditamos que a falta dos demais tenha sido devido a forte chuva no período que antecedia as aulas, onde muitos alunos, inclusive da zona urbana não estavam presentes.
2-a) Condições normais. Em sala de aula.
2-b) Houve mais faltas dos alunos dessa turma (1.º ano A) nos dias 4, 5 e 6. É importante registrar que tivemos faltas do transporte escolar da região do Campestre e nos dias 7 e 8 a escola teve aulas programadas devido o curso de lousas digitais para os professores da instituição.
2-c) Desde o ano de 2008, a escola tem uma política de reduzir o índice de reprovação e abandono. Em 2008 tínhamos 540 alunos matriculados e hoje estamos com 790 regularmente matriculados. A Coordenação Pedagógica tem se esforçado no sentido de averiguar os casos de alunos faltosos, sejam eles indígenas ou não, da zona urbana ou rural.
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Não conheço Ruy Sposati pessoalmente mas, mesmo se o resultado geral de seu trabalho não me levasse a respeitá-lo, só o fato de ele trabalhar para o CIMI serviria para avalizá-lo. Bem ao contrário, só a primeira resposta do diretor já é suficiente para corroborar a existência de racismo e de preconceito na escola.
Escreve ele: “Como os alunos não-indígenas relutaram em não adentrar na sala de aula devido às circunstâncias do momento alegadas pelos mesmos”… Ao deixar ele no ar quais seriam as “circunstâncias do momento” alegadas pelos “alunos não-indígenas”, só podemos entender terem sido elas exatamente as denunciadas na reportagem. Como disse Joel de Aquino, liderança da aldeia:
“Disseram pros nossos estudantes que eles não deveriam estudar ali” (…). Disseram aos nossos jovens que se eles continuassem estudando o ano todo, iam encher a sala e escola de terra, porque temos ‘pés sujos’. E ‘chulé’, que as indígenas femininas tem aquele cheiro de mulher”.
E qual foi a atitude do diretor ante essa demonstração de racismo? Simplesmente (a crermos na sua resposta negando tenha havido separação da turma) determinou que todos os alunos realizassem “suas atividades extra-sala, no ambiente destinado ao projeto de xadrez/damas”. Traduzindo: ao ar livre, onde as crianças indígenas “fedidas”, com “chulé” e com “cheiro de mulher” não maculariam os delicados olfatos das crianças “brancas”.
É quase inacreditável a “singeleza” dessa resposta! A aceitarmos como verdadeira explicação de que assim não teria havido separação entre os alunos, nossa conclusão é que ele abdicou totalmente do papel de educador, conivente com a tirania do preconceito e, acriticamente, abriu mão de ensinar, criticar, admoestar e, até, disciplinar as crianças em aprendizado racista que tinha e tem sob sua responsabilidade.
A partir desse fato, não só as demais respostas tornam-se totalmente supérfluas, como mantenho a observação que fiz ao publicar a matéria de Sposati: “as crianças indígenas foram humilhadas e expulsas de um colégio para onde espero não voltem enquanto essas ‘coisas’ lá estiverem”.
Quanto à pergunta que fiz em segunda – “para onde irão e o que acontecerá com esses simulacros abjetos de seres humanos e educadores?” -, o primeiro passo em direção a ela foi dado pela pronta ação de Neyla Ferreira Mendes, a quem rendo minhas homenagens. Agora, a partir da infeliz resposta do senhor diretor, acho que cabe às autoridades responsáveis pelo lado educacional e, preferencialmente, aquelas mais próximas e com poder de fiscalização, averiguar o que está de fato acontecendo nessa escola. E, preferencialmente, garantir às crianças indígenas um outro espaço, onde elas inclusive tenham acesso à educação diferenciada à qual têm direito.
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Em tempo: Ao terminar de postar este texto, tomei conhecimento de que o Ministério Público também irá investigar o assunto. Mais uma vez: Viva a democratização da Justiça! Que, juntos, DP e MP garantam os direitos dessas crianças.
Parabens a defensora pública!