O evangelho no poder

Rui Martins

Berna (Suiça) – Ao que me levaram minhas pesquisas, um dos primeiros a se levantar contra a ascensão do Evangelho ao poder no Brasil, foi Paulo Wright, mais conhecido no Paraná e assassinado pelo Doi-Codi em São Paulo. Seu irmão, todos conhecem, pastor James Wright, demitido da Igreja Presbiteriana na época da ditadura militar, que se tornou secretário de dom Paulo Evaristo Arns, na época arcebispo de São Paulo.

A tentação de unir o poder divino ao poder temporal político sempre foi grande entre os cristãos, uma espécie de antecipação do reino de Deus sobre a Terra. Pena que essa louvável ambição não esteja vacinada contra os desvios que levaram o cristianismo pós-Justiniano a se tornar mais reino dos homens, antecipando-se também às penas do inferno, previstas por Deus, aos inimigos políticos, chegando-se à teocracia da Idade Média e aos diversos tipos de inquisição.

A jovem geração de hoje tem o privilégio de assistir ao vivo, como num laboratório de ciências exatas, o que foi a ascensão dos monoteistas cristãos ao poder, durante séculos, na Europa e colonias, olhando ao que se passa no Magreb e no Oriente Médio depois da fracassada primavera árabe hoje transformada em primavera islamita, coordenada pelos mentores de outra crença monoteista.

Em poucas palavras, o casamento do poder político com o chamado poder espiritual provoca sempre intolerância, perseguição, condenação das minorias e a submissão se transforma num dos principais valores na tábua das leis e da moral defendida pelos supostos delegados de Deus.

O citado Paulo Wright pagou com a vida não ter aceitado compactuar com um dos primeiros desvios político-religiosos do protestantismo brasileiro, cuja bandeira até o golpe de 64 tinha sido (talvez por ser minoria) a da laicidade. Quando os presbiterianos de Boanerges Ribeiro decidiram apoiar o golpe militar contra a “ameaça comunista” de Goulart, sendo seguidos por batistas e metodistas, foi ultrapassado o limite que poderia manter, no futuro (os dias que hoje vivemos), a separação entre Igreja e o Estado.

Apesar de binacional, americano-brasileiro, Paulo Wright divergiu e apostatou, como já estava no fichário do FBI por deserção, foi sacrificado em nome de uma futura evangelização brasileira, com suas escolas e universidades ensinando o criacionismo e o conformismo, antidotos seguros contra o pensamento livre. Inoculados na tenra idade, esses princípios são a garantia de populações pacíficas respeitadoras das multinacionais, do capitalismo no molho calvinista e do conformismo filantrópico diante da miséria.

Mas os presbiterianos, batistas, metodistas, luteranos nunca conseguiram ser populares, sempre foram assimilados a uma elite religiosa vinda da Europa e dos EUA e não conseguiam penetrar no legado católico trazido pelos portugueses, do qual derivou-se um sincretismo de crendices e um comportamento determinista. Poderia ser uma solução para um confortável imobilismo social não ameaçador, porém, o catolicismo, com sua estrutura de potentado conservador, não era herméticamente fechado. O vazamento mais importante tinha sido o da teologia da libertação e os padres dominicanos com seu Brasil Urgente apoiavam as reformas de base dos anos 60.

Era preciso algo diferente – que tolerasse e suportasse a desigualdade social e que transportasse para o além os idéias de justiça social, transformados numa futura justiça divina. Um analgésico capaz de acalmar as dores vindas de injustiças e explorações, conjugado com eficientes anestésicos. Alguma coisa sutil, capaz de distribuir a leitura, dando a impressão de instrução popular, mas privilegiando um único livro de lendas, como vindo de Deus, em detrimento de todos os outros livros.

Encontrada a fórmula minimalista desse evangelho de consumo popular, dádiva de Deus açucarada ao alcance de qualquer um, onde cada pastor é como um imã ou molá islamita, sem ter de prestar contas a ninguém, sem necessidade de uma preparação maior, o Brasil foi alvo de enxurradas de dólares para a compra de rádios e teves prepagadoras do reino de Deus. Excelente o resultado, hoje o Brasil segue rumo a um país teocrático evangélico.

Mas não é bom se ter um país temente a Deus? O temor não é nenhum código de conduta a se seguir. O temor é sinônimo de intolerância, de perseguição, de recuo, de aniquilamento e rima com humilhação e subserviência. O homem se colocou de pé depois de milhões de anos de evolução, que não sejam religiões que o façam ficar de joelhos ou de se prostrar no chão. Deus quer homens servis?

A presidenta Dilma quase não foi eleita por ter falado demais e defendido, como mulher, a legalização do aborto. Evangélicos, que dizem defender a vida mas que impedem o desenvolvimento livre do pensamento humano, mais outros religiosos, forçaram a então candidata a se desdizer e a prometer que no seu governo não haveria legalização do aborto. Tanto faz se milhares de mulheres ainda morrem por tentativas de aborto clandestino.

Agora é a Comissão dos Direitos Humanos e Minorias presidida por um pastor evangélico que, fiel ao livro santo, é contra homossexuais e que, baseado numa deturpação da lenda original bíblica, acredita serem os negros, descendentes de Cam, amaldiçoados pelo pai Noé depois de uma bebedeira.

Para que serve uma Comissão de Direitos Humanos regida pela intolerância e ignorância?

Na verdade, estamos também colhendo hoje os frutos da ditadura militar que aniquilou, em vinte anos, todo o pensamento livre brasileiro, seus intelectuais nas univerdades, substituídos por pessoas mal preparadas ou simplesmente sem formação. Está na hora de nos revoltarmos contra o loteamento do céu por corretores inescrupulosos, que vendem títulos de propriedade e apólices de bolhas de sabão.

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Enviada por José Carlos para Combate ao Racismo Ambiental.

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