Crônica de 2006
Tive um colega de nome Ildefonso. Achava meio pomposo mas nunca perguntei de quem sua mãe havia tirado o nome.
Desde o início do século, aliás, Poços de Caldas era uma cidade de nomes enjoados, conforme anotou o professor Antônio Cândido em um de seus livros. Como havia uma clientela internacional bastante intelectualizada atrás dos supostos poderes miraculosos das águas de lá, tinha motorista de táxis de nome Platão, professores de nome Leibniz e assim por diante.
Muito tempo depois vim a saber que era em homenagem ao seu Defonso, Ildefonso de Souza, primeiro dentista de Poços, falecido em 6 de setembro de 1932.
Acho que toda cidade tem a obrigação de honrar a memória do seu primeiro dentista. Mas estou para ver história mais interessante que a do seu Defonso. Nem se fale do seu modo de tratar os clientes, extremamente fidalgo no trato pessoal, e mais para analista de Bagé quando pegava o marmanjo de jeito na cadeira, suando frio. Ou de seu prestígio político, como chefe e adversário principal do grande prefeito Francisco Escobar. Ou de sua casa, bem em frente à Igreja Matriz, nos tempos em que a rua Assis Figueiredo era chamada de Paraná, onde dona Zefa, sua mulher, exercitava as prendas de quituteira de primeira.
As pessoas iam à missa das 6 e depois entravam livremente na casa do seu Defonso para tomar café, incluindo todos os bispos e padres que iam visitar Poços.
Pesava a seu favor, também, o fato de ter sido considerado o decano dos dentistas brasileiros, quando faleceu, e de ter uma clientela internacional, que ia a Poços especialmente para se tratar com ele. E também seu espirito pioneiro, que o fez ter o primeiro rádio de Poços, e ficar no quintal de casa acompanhando o vôo dos urubus, e prevendo que em breve o homem voaria.
Era de assinar todos os jornais e revistas da época, e enviou aos Estados Unidos dois de seus filhos que seguiram a profissão de cirurgiões-dentista -Salomão e Ossian de Souza que, décadas depois, tornaram-se dois dos nomes mais prestigiados da profissão em São Paulo. Os meninos foram aos Estados Unidos e logo depois dispensados, porque os mestres diziam nada ter para ensinar-lhes.
Seu Defonso, que por obra de um coice na boca ficou com uma fenda nos lábios que o fazia falar assobiado, que nem preto velho de umbanda, não perdoava o cliente que entrava no consultório querendo um dente de ouro: “Chê tá ficando louco. Onde que chá che viu isso. Cheu dente vale mais do que ouro”.
A alusão ao preto velho não foi coincidência. Seu Defonso era negro, e não apenas isso. Nasceu escravo, em 16 de agosto de 1850 -21 antes da Lei do ventre Livre, portanto– em Santo Antônio do Machado, conhecido por Machadinho, perto de Machado, no sul de Minas. Há informações de que escrava era também sua esposa dona Zefa, filha de uma escrava com o dono de uma fazenda em Capivari.
Até os 40 anos, seu Defonso era apenas exímio carpinteiro, depois marceneiro. Para se aprimorar na profissão de marceneiro, seguiu a pé para o Rio de Janeiro, atrás de ensinamentos de grandes artesãos alemães que lá trabalhavam. Foi dispensado por não ter o que aprender mais com eles.
Amigo de um de seus netos, o professor Antônio Cândido guardou a informação de que conseguiu, com seus recursos, não apenas a própria alforria como a de dona Zefa. Foi aos 40 anos que seu Defonso iniciou seus estudos primários. Depois, decidiu ser protético. Mais tarde, dentista prático. Estudou, praticou, tornou-se o melhor.
Para calar a boca dos críticos, em 16 de abril de 1902, doze anos após ter se alfabetizado, prestou exame de habilitação na Faculdade de Farmácia e Odontologia de São Paulo, e tornou-se o dentista da região até pouco antes de sua morte.
Na primeira metade do século, Poços criou fama na área. Havia outro dentista que chegou a desenvolver técnicas reconhecidas internacionalmente, de utilização de pequenos choques como anestésico. Esse dentista trouxe como protético, do Rio, um mulato magrinho e maneiro de nome Assis Valente, um dos futuros maiores compositores brasileiros do século, mas isso lá pelos anos 30, quando seu Defonso já havia morrido.
Em Poços, foi vereador, chefe político acatado, convivendo de igual para igual com todas as famílias influentes da região.
Quando Ildefonso de Souza morreu em 1932, a revista “Odontologia Moderna”, de propriedade do “Ao Boticão Universal” –cujo slogan era “o nosso passado é a garantia do que afirmamos”– dedicou-lhe necrológio respeitoso, tratando-o como um dos líderes da classe.
Só vim a saber do seu Defonso há alguns anos, quando me reuni aqui em São Paulo com algumas senhoras poçoscaldenses da época que me contaram sobre ele. Os livros dos historiadores locais falam de passagem de seu prestígio político, mas nada mencionam de sua origem. E não lembro de ter ouvido uma palavra sobre ele do “Chico Rei” de Poços, o movimento negro liderado há anos pela Tita.
Aí fico pensando cá com meus botões que a condição de negro bem sucedido ainda não goza de muito prestígio nem entre brancos nem entre negros. Para os brancos, pesa a pele negra. Para os negros, a suposta alma branca.
Se eu fosse do “Chico Rei”, tratava de substituir a estátua do Zumbi pela do seu Defonso. Mas acho que não vão apreciar muito a minha sugestão.
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http://www.advivo.com.br/blog/luisnassif/o-preto-velho-de-pocos-0. Enviada por José Carlos para Combate ao Racismo Ambiental.
Gosto de saber que existiram pessoas assim, honradas em suas funções, e honesta em suas atitudes, além da prova de superação, que é praticamente algo a ser admirado. Poxa isso para os negros deve ser visto como um ícone alguém que superou as dificuldades e preconceitos, em uma época onde isso era muito assíduo, pena que a maioria não ve assim, e não digo só dos negros como do povão em geral, acabam perdendo essas referências. Essa coisa de cor, só dá mais motivo, para segregar as pessoas, caráter não tem forma ou cor, e cada um faz o seu.
Conheço esta reportagem de Luis Nassif. Faz alguns anos que li, apesar de minha apatia por ele ser grande, sou obrigado corroborar nesta matéria. Foi sim, um personagem da história brasileira que permanece escondida nas histórias orais da nossa sociedade.O único documento oficial que li e vi,estava em mãos de uma moradora no asílo de velhos em SAPUCAÍ MIRIM (MG). Este documento, em 1964, foi ROUBADO disse ROUBADO com palavras mansas pela DIRETÓRIA CULTURAL do falecido “Clube” ou sei lá o que “ARISTOCRATA”. Neste doc. constava recibos de pagamentos de Rui Barbosa e outras possíveis personalidades da história brasileira