Por João Paulo
Há 50 anos morria Hermann Hesse (1877-1962). Curiosamente, ouvi esta semana de muitos amigos e conhecidos a referência à data, como se tratasse quase de uma homenagem prestada à memória de um sábio que ajudou uma geração a se tornar melhor. Parecia a todos eles que era bom se lembrar de Hesse. Mais que isso, que em algum lugar da alma ele estava vivo, o que, de certa forma, era reconhecer que ainda carregamos alguma jovialidade e revolta no coração. Desde que li Gertrud, ainda na adolescência, ganhei a certeza de que há verdades profundas só acessíveis pela arte. Antes daquela novela romântica, tudo era ciência e filosofia. Hesse revelou a via da sensibilidade e da beleza, mesmo que seja para a pesquisa das verdades mais duras e exigentes. Adolescente gosta de complicação.
Nome hoje pouco conhecido para quem não viveu os anos 1960, o escritor ficou mundialmente célebre quando recebeu o Nobel de Literatura, em 1946. No entanto, somente se torna o mestre de seu tempo pouco antes da morte, quando seu nome ficou associado ao movimento da juventude que buscava renovar a arte, a política e a moral. Hesse foi sobretudo um poeta, mas no Brasil sua obra mais conhecida são os romances que, um a um, foram compondo as estações de alma de adolescentes em estado de revolta. O que a política convocava por um lado, a busca da sabedoria das profundezas de Hesse evocava por outro. A razão e a sensibilidade, o Ocidente e Oriente, a revolta e o autoconhecimento. Suas novelas criaram um caminho ascensional que dialogava com os grandes dilemas do século. Hesse atirava o leitor no coração do mundo. Fui em busca de novas leituras de Hermann Hesse e encontrei algumas reflexões antigas, que ainda hoje me parecem próximas da emoção de reler o escritor e pensar em sua importância na formação das almas dispostas a arriscar.
A valorização de Hermann Hesse pelos jovens dos anos 60 tem boas explicações. O poeta e romancista alemão havia, como poucos, condenado o materialismo; tinha dado mostra de sua fascinação (e profundo conhecimento) pelo Oriente e suas vias de contemplação; era autor de uma obra que tinha uma veneração pela natureza e pelas formas de retorno à vida mais simples; demonstrou, talvez como nenhum escritor antes dele, uma compreensão do significado da psicanálise para o entendimento do homem. Hermann Hesse trazia ainda a marca da filosofia de Nietzsche, em sua recusa ao comando das massas e defesa de um individualismo radical. Em outras palavras, era libertário, profundo, místico e anarquista. Um coquetel explosivo, temperado por uma arte equilibrada entre a forma clássica e o temperamento romântico.
Se o guru que ficou está mais próximo de nós em termos de tempo, o verdadeiro Hermann Hesse, escritor, chega ao auge muito antes, logo depois da Primeira Guerra. Em 1919, o escritor publica o romance Demian, um marco na literatura do século 20. Os anos 1920, na Alemanha, podem ser considerados os mais fecundos da história cultural do país. Foi a década da renovação do teatro, da criação do cinema como arte pura (Marnau e Lang), da música de Schoenberg, da fundação da Bauhaus e das exposições de vanguarda. Saída da experiência da guerra, a civilização alemã parecia buscar na cultura sua via de reintegração com o mundo. Nesse cenário, o expressionismo literário ganha uma de sua obras mais importantes, Demian.
Com a história do jovem Emil Sinclair, Hesse concentrou os dilemas de toda a geração que vivia sua entrada em mundo em que os valores viraram de cabeça para baixo. Hesse tinha como grande trunfo de sua arte a capacidade de dar a uma vida singular o condão de representar toda uma época. Por isso seus livros são tão caros aos jovens: ninguém como eles sentem com tanta intensidade que suas vidas são o centro do mundo. O livro traz uma tentativa de estabelecer um novo sistema de valores, que rompa com tudo que burguesia significa, trazendo em seu recheio todas as ânsias dos corações jovens: a recusa da religião, o anarquismo político, o sexo, a radicalidade moral que não teme nem mesmo a proximidade do mal.
Há muitas influências fortes em Demian. A fonte filosófica mais presente é Nietszche, em sua indicação de que o homem, para existir de fato, precisa se alimentar dos frutos do bem e do mal, não como antinomias, mas como manifestações da força mais elevada que compreende a ambos. Mas é também, sob certos aspectos, um dos primeiros romances em que a psicanálise tem força tão determinante, na compreensão da formação da personalidade, da força do inconsciente, do sentido da sexualidade e do poder dos mitos na vida individual. Sobretudo, é um livro de humanista – e nisso se distancia tanto de Freud quanto de Nietzsche – que apela aos simbolismos para afirmar sua crença na humanidade. Mesmo que o caminho não seja fácil, como de fato não é para nenhum de seus personagens, dispostos a tudo para afirmar o sentido da suas vidas.
A hora do lobo
Demian marca o início da fase madura de Hermann Hesse. Antes do romance, ele havia se firmado como um dos mais importantes poetas pós-românticos e autor de romances autobiográficos. No momento de transição para a segunda fase, depois de uma viagem à Índia, entre a rebelião e a fuga das alternativas ocidentais, escreve duas obras notáveis, Viagem ao Oriente e Sidharta. Com Demian ele inicia o ciclo de seus poemas mais profundos e dos romances que funcionam como a jornada da alma ocidental marcada pelas circunstâncias do século das guerras, do capital e da bancarrota moral. Se Emil Sinclair foi o retrato do artista quando jovem nos anos 20, O lobo da estepe é o retrato de Harry Haller, um típico homem de meia idade, cuja crise neurótica coincide com a doença moral do mundo do entregueras. Com sua obra máxima, O jogo da contas de vidro, Hesse imagina a utopia de um mundo guiado pela arte combinatória da música: uma ilha de civilidade que parece apontar o tempo todo seu negativo: a barbárie do mundo pós-Segunda Guerra.
Hermann Hesse sempre gostou de personagens jovens, viajantes, artistas e marginais. Talvez porque a ele interessasse menos a localização social que a psique. Seu conhecimento de psicanálise, que era extenso e intenso (ele mesmo foi analisado por muitos anos) o fazia concentrar nos tipos humanos de suas histórias tendências míticas. Seu assunto não era o mundo exterior, mas como ele se reflete no mais profundo das pessoas. Nesse sentido, chegou a afirmar que todos os seus romances eram biografias de almas. Num texto autobiográfico escreveu, sobre suas novelas, “que nenhuma delas se ocupa de histórias, de complicações, de tensões. Pelo contrário, todas elas são basicamente o discurso na qual uma pessoa singular – aquela figura mítica – é observada em suas relações com o mundo e com o próprio eu”.
O sábio ermitão de Montagnola, na porção italiana da Suíça, estampava na porta de sua casa um verso do poeta chinês Meng Hsich, que dizia merecer a solidão para se acostumar com a ideia da morte, sem que os estranhos o importunassem. O gesto aparentemente arredio e o local que escolheu para sua aproximação com o mistério não devem enganar: Hesse nunca fugiu ao contato com os homens, sua obra foi um dos mergulhos mais destemidos no coração da humanidade; a escolha de um país neutro não era gesto de recolhimento, mas de afirmação de pacifismo em tempos de beligerância latente.
Hesse foi um sábio que apostou na psicologia para acertar na política. Sua mensagem tem tudo para tocar os jovens cansados da superficialidade e do consumismo. E, ao contrário do que se pensa, eles são muitos e já estão fazendo um bom barulho. Hesse deu a chave para a revolta moral e o estímulo para a busca da verdade interior. Os jovens, e todos nós, andamos claudicando nos dois caminhos.
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Eu não imaginava que a década de 1920 tivesse sido a mais fecunda culturalmente da alemanha! Schoenberg? E Beethoven, e o alto romantismo que se seguiu após ele? E o classicismo de Weimar? Mas gostei muito da matéria. Obrigado.