Segunda e última parte da matéria que retrata a visita do Secretário Geral da CNBB, Dom Leonardo Ulrich Steiner, ao Mato Grosso do Sul indígena. No relato, o visto nos tekoha de Kurusu Ambá e Guaiviry numa região dominada pela violência do latifúndio
Renato Santana – de Campo Grande (MS)
Amambai é a cidade do crepúsculo – momento do dia em que não está claro nem escuro; não é dia e nem é noite. Ao cruzar sua fronteira, o viajante passa sob um grande arco, com as bases fincadas às margens da rodovia – ladeada por plantações de soja a se perder de vista num horizonte verde sem fim. Pedro Juan Cabalero, Paraguai, fica a alguns quilômetros do município.
No crepúsculo de uma região onde mais de 30 lideranças Guarani-Kaiowá foram assassinadas dos anos 1980 para cá, os pavios estão sempre acessos e prestes a explodir a violência. Na memória dos indígenas, o nome dos mortos: Marçal Tupã, Rolindo e Genivaldo Vera, Marcos Veron, Nísio Gomes e muitos outros.
Entre os sete municípios que compõem a região – Amambai, Coronel Sapucaia, Paranhos, Juti, Antônio João, Aral Moreira e Ponta Porã – latifundiários, traficantes de armas e drogas, além das milícias armadas fazem valer um código não escrito, mas quem desrespeita acaba morto, desaparecido. Os Kaiowá sabem bem disso.
Inocêncio vive na retomada de Kurusu Ambá, área da fazenda Madama, entre Amambai e Coronel Sapucaia. “O assassino de minha mãe não foi preso. Até agora não tem justiça. Anda por aí tudo bem. Até agora nem a terra que minha mãe lutou foi demarcada (sic)”, conta. Inocêncio é filho de Xuretê Lopes Guarani-Kaiowá, liderança religiosa assassinada com um tiro no peito, em 2007.
Xuretê tinha 70 anos e foi morta depois que os Guarani-Kaiowá retomaram a atual área onde se encontra uma das aldeias de Kurusu Ambá. Os pistoleiros chegaram em 12 caminhonetes, conforme a Polícia Rodoviária Federal, e realizaram centenas de disparos contra os indígenas. Xuretê era a vítima da primeira tentativa de retomada do território tradicional das mãos do latifúndio.
Mortes e envenenamento
Smart Kunumi Guarani-Kaiowá, liderança de Kurusu Ambá, lembra que na segunda tentativa de retomada o indígena assassinado foi Ortiz Lopes; na terceira, Oswaldo Lopes. Essa é a quarta vez que os Kaiowá retomam a área. A liderança Eliseu Lopes, também integrante da Articulação dos Povos Indígenas Brasileiros (APIB), é a bola da vez: está ameaçado de morte.
“Aqui, no Cone Sul do estado, as lideranças estão sendo ameaçadas dessa maneira. Corremos riscos nas estradas, nas cidades. Usam os próprios indígenas, dando dinheiro e bebida, para saber como as lideranças se movimentam”, afirma Smart. Para ele, a impunidade acostumou os poderosos a assassinar os indígenas.
A pistolagem, porém, está longe de ser a única forma de atacar os Kaiowá. O tekoha Kurusu Ambá parece uma miragem no meio do deserto verde de soja. Para chegar até ele, é preciso sair da rodovia estadual e pegar uma antiga rodovia federal, não asfaltada. Por ela se trafega durante 20 minutos tendo como paisagem campos intermináveis de soja.
Kurusu, portanto, é rodeado por plantações de soja. “Os aviões passam jogando veneno e o vento traz para a aldeia. Temos uma fonte que passa aqui na área da retomada e duas crianças acabaram morrendo depois de terem bebido a água. Tiveram vômitos, diarreia”, conta Smart. Ninguém mais usou a fonte e o pequeno rio que ela forma.
Dessa forma, o acesso da comunidade a água é restrito. O espaço que ocupam é muito pequeno, por isso não plantam. A caça ainda existe na área, mas é insuficiente. A Funai fornece cestas básicas, mas de forma irregular. A desnutrição é perceptível no olhar opaco e amarelado das crianças.
O território tradicional reivindicado pelos indígenas de Kurusu Ambá é de 18 mil hectares. Sobrevivem em apenas 10 hectares desse total. “Faltam alimentos, água, as ameaças são constantes, os venenos lançados também. Passamos fome muitas vezes”, declara Smart.
Guaiviry: o legado de Nísio Gomes
Perto de completar três meses do ataque e desaparecimento do cacique Nísio Gomes, a comunidade do tekoha Guaiviry, município de Aral Moreira, está dividida: de um lado as crianças – esmagadora maioria no total de indígenas que vivem na retomada -, sorridentes e vivas, enchem de esperança um povo tão massacrado; de outro os mais velhos, ainda em luto e sem paz por não conseguirem enterrar Nísio no tekoha – ritual sagrado para a cosmologia Kaiowá.
“Queremos o corpo de Nísio. Pedimos a vocês (religiosos e leigos que visitavam a comunidade) que nos ajudem nisso. Precisamos de nossa terra, do corpo de Nísio”, disse em Guarani uma anciã. Otoniel Ricardo, liderança Guarani e vereador no município de Caarapó (MS), se encarregou da tradução. Um dos filhos de Nísio pouco falava e quando pronunciava alguma palavra era quase como um murmúrio. Os pêlos do corpo, raspados. Sinal de luto. As crianças corriam, se penduravam em cipós, pulavam no rio, abraçavam quem quer que fosse. O legado de Nísio Gomes se manifestava, naquele instante.
Como a violência e tamanha crueldade podem se propagar frente à beleza daquelas crianças? Deus e o diabo dividem aquelas terras. Apesar de tudo, quem manda é o capital. No Guaiviry, a realidade não difere quase em nada das áreas retomadas pelos indígenas no restante do Mato Grosso do Sul. A aldeia começa onde termina a plantação de soja; a vida termina onde começa os interesses do agronegócio.
Os indígenas esperam a publicação dos relatórios antropológicos de identificação e delimitação da terra indígena. Esperam também pelo relatório da Polícia Federal (PF) sobre o ataque ao Guaiviry – seis pessoas devem ser indiciadas pelo Ministério Público Federal (MPF); Valmir, filho de Nísio, é acusado pelos federais de passar falsas informações: a vítima vira réu. No Mato Grosso do Sul, nada é muito surpreendente quando é contra os indígenas.
Dom Leonardo: “Os índios estão sendo tratados como segunda categoria de pessoa”
“Não há vivacidade nos olhos delas (crianças Guarani-Kaiowá), comum a qualquer criança. As privações desse povo são inúmeras e o motivo principal é a falta de demarcação das terras indígenas. (…) Encontrei um povo de pé, que sabe o que quer”, ressaltou Dom Leonardo Ulrich Steiner, Secretário Geral da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), durante visitas às retomadas Laranjeira Nhanderu, Kurusu Ambá e Guaiviry.
O bispo destacou que no tekoha de Nísio Gomes, o Guaiviry, a insegurança é ainda grande e que os indígenas não possuem confiança na polícia do Mato Grosso do Sul. Disse ter sentido uma comunidade amedrontada, mas disposta a lutar; se organizando e buscando justiça, sem confronto e de forma digna.
Sobre os Guarani-Kaiowá, Dom Leonardo acredita ser “um povo desenraizado não porque querem, mas porque não se sentem em casa. Casa não é um edifício; casa é onde se dá a vida, onde se criam as relações, onde se criam os filhos, onde se sonha, onde se enterra os antepassados. É um povo sem casa”.
O religioso entende que existem dificuldades dos Kaiowá de expressarem a cultura porque estão sem terra. Dom Leonardo observou que o que chamamos de céu e terra, para eles é a terra. “Essa discriminação que existe contra o índio não é só aqui, mas em todo Brasil”, pontua. Dom Leonardo atuou junto aos povos indígenas do Mato Grosso, pois é bispo da Prelazia de São Félix do Araguaia.
“Quanto Igreja, procuramos apoiar esses povos através do Cimi e com outras atividades desenvolvidas”, declara Dom Leonardo. De acordo com o bispo, a CNBB sempre buscou um diálogo intenso com o governo para que realmente aja uma demarcação das terras. Durante a visita, Dom Leonardo se reuniu com o Ministério Público Federal (MPF) de Ponta Porã (MS) e com a Justiça Federal de Dourados (MS).
Para ele, existe também a preocupação com os pequenos agricultores, que estão em terras indígenas por culpa do Estado e não podem sofrer com o abandono no processo de saída do território.
Questionado por um jornalista sobre o que deve ser feito, Dom Leonardo disse apenas uma palavra: justiça. “Os índios estão sendo tratados como segunda categoria de pessoa”.
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